Valeria Vegas: “Nem sempre nos apercebemos de quantas vidas uma série ou um filme pode mudar”

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Valeria Vegas / © Mista Studio

Valeria Vegas: “Nem sempre nos apercebemos de quantas vidas uma série ou um filme pode mudar”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Horas antes da sessão especial no Batalha do filme “Vestida de Azul”, organizada pelo Queer Lisboa, Valeria Vegas, autora da biografia de Veneno, encontrou-se com o Shifter no foyer de um hotel da Avenida dos Aliados.

Numa sala a meia luz, ouve-se uma voz peculiar a sair da televisão. É Cristina Ortiz, ou apenas “Veneno”, que partilha as suas histórias na televisão. A espreitar do piso de cima está uma criança que está a ser atraída pelo magnetismo e o carisma de Veneno — mas não é só isso. Há algo que a faz continuar a espreitar o conteúdo dos adultos quando devia estar a dormir: inconscientemente, está a encontrar algum sentido para algumas coisas que sente, pela primeira vez na vida. Esta é a primeira cena de “Veneno”, série da dupla Javier Calvo e Javier Ambrossi, a que toda a Espanha chama de Los Javis, que catapultou a história de Cristina Ortiz para o mundo. 

A criança que assiste ao programa de televisão em que Veneno aparece é Valeria, uma das personagens principais da série. E a sua história não é muito diferente da de Valeria Vegas, autora do livro biográfico de Cristina Ortiz, “¡Digo! Ni Puta Ni Santa”, publicado pela primeira vez em outubro de 2016. Cristina tornou-se um ícone nos anos 90, com a sua presença regular no programa de televisão “Esta noche cruzamos el Mississipi”, mas acabou por atravessar um período de decadência — que também foi tornado público. O livro que Valeria Vegas, sua amiga, escreveu trouxe-lhe alguma justiça e dignidade. A série dos Javis voltou a torná-la um ícone, agora à escala global. E elevou a ícones todas as atrizes trans que deram corpo à série, de Lola Rodriguez a Daniela Santiago ou Paca, La Piraña. 

A escrita de Valeria Vegas é assertiva, mas contagiante. E o livro que serviu de inspiração à série sobre Veneno não é o único exemplo disso. É jornalista, escritora, documentarista, produtora, e vai sendo atriz quando faz sentido. Em 2019 publicou “Vestidas de Azul”, um livro que analisa a representação das mulheres trans no cinema espanhol durante o período de transição para a democracia. O título é homónimo do documentário que serve de grande caso de estudo à investigação, feito por António-Gimenez Rico em 1983. E foi este o pretexto para uma vinda ao recentemente restaurado Cinema Batalha, no Porto, a propósito do ciclo “El Futuro Ya No Está Aquí”, onde se projetou esta “pérola” a que Valeria Vegas teve acesso pela primeira vez pelas mãos de uma amiga especial, Cristina Ortiz.  

Horas antes da sessão especial no Batalha, com uma conversa pós-filme entre Valeria Vegas e Jo Bernardo, organizada pelo Queer Lisboa, Valeria encontrou-se com o Shifter no foyer de um hotel da Avenida dos Aliados. 

Shifter (S.) : Em “Vestidas de Azul”, que é o motivo que te traz ao Porto, escreves sobre a representação de pessoas trans na televisão e no cinema. Mas quando é que te sentiste representada pela primeira vez, consegues lembrar-te? 

Valeria Vegas (V.V.) : Eu recordo-me que descobri a transexualidade precisamente através de um filme, de que também falo no livro “Vestidas de Azul”, que se chama “Cambio del Sexo”. É um filme muito forte, dos anos 70, com a Victoria Abril, e foi o primeiro em Espanha a falar sobre a transexualidade na ficção. Não o vi em 1976, obviamente,  porque ainda não tinha nascido; vi-o muitos anos depois, nos anos 90, através de uma cassete de VHS. Quando vi a protagonista, pensei: “É isto que se passa comigo.” É muito curioso, hoje em dia o coletivo LGBT já se sente representado através de séries, mas nos anos 80, 90, princípio dos anos 2000, era um tabu falar sobre o assunto. Ainda não era, inclusive, um tema nas campanhas eleitorais dos políticos, por isso a única forma de te veres representada era através do cinema ou da televisão. 

S. : E foi essa a primeira vez que te encantaste pela Victoria Abril?

V.V. : Sim! Ela fascina-me. É uma das minhas atrizes favoritas, sem dúvida.

Também a Carmen Maura, pelo que li. 

V.V. : Elas as duas são os meus totens de atrizes. 

S. : Creio que te é próximo todo o universo cinematográfico do Almodóvar. 

V.V. : Eu gosto muito do cinema do Almodóvarque, aliás, também foi muito defensor da transexualidade. Quando digo “muito defensor” refiro-me à visibilidade que trouxe ao tema, de uma maneira muito positiva. Por exemplo em “La Ley del Deseo”, a Carmen Maura faz de uma mulher trans que cuida de uma menina. Nos anos 80 isto era impensável. Hoje em dia questiona-se tanto se as pessoas LGBT podem adotar ou não, mas nos anos 80 o Almodóvar decidiu pôr num dos seus filmes uma menina que tinha como cuidadora uma mulher trans. Isso é muito importante para os espectadores que não são trans. Ou a personagem da Agrado em “Todo sobre mi Madre”, que é maravilhosa porque é a mais engraçada do filme. Acho que gosto tanto do cinema do Almodóvar porque me vi tantas vezes representada nele, e construí-me um pouco com base nessas personagens que não existem [na vida real]. 

S. : Em janeiro deste ano houve uma ação em Portugal, na apresentação de uma peça de teatro do “Todo sobre mi Madre”, que exigiu o fim do transfake, porque a personagem de Lola era interpretada por um um ator cisgénero. Foi levada a cabo pela atriz e performer brasileira Keyla Brasil. Como é que este debate está a acontecer em Espanha? Por lá usa-se o termo “transfake”? 

V.V. : Essa notícia chegou até Espanha, mas não estou muito por dentro do que aconteceu. Bom, eu sou cinéfila, amo o cinema e tento pensá-lo muito friamente. Creio que houve tempos no passado, em que Victoria Abril, a Carmen Maura ou a Maria Barranco faziam papéis trans — o mesmo acontecia na América —, e faziam-no muito bem porque eram boas atrizes. E naquele momento não havia tantas atrizes trans para conseguir chegar a uma boa atuação porque, afinal, o importante era que a atuação fosse boa, credível, que a personagem fosse forte. Hoje em dia, sim, há muito boas atrizes trans, e creio que “Veneno” mostrou isso. Ninguém acreditava que era possível, ouvia muita gente a dizer: “Não vão conseguir três Venenos, nem vão conseguir o resto das personagens”. E conseguiu-se. Hoje em dia, se procurares, podes conseguir. Nos anos 80 era mais difícil, agora há mais meios para procurar uma agulha no palheiro. O que estou super contra é que uma personagem de uma mulher trans seja interpretada por um homem, porque a informação que o espectador recebe é: “Claro, [as mulheres trans] são homens porque é um homem que o está a fazer”. A intenção de uma mulher trans é ser uma mulher, portanto se for uma mulher cis não me parece mal. É possível interpretar muitos papéis sem ter que o viver na vida real. Se disseres que é uma mulher cis que vai fazer melhor esse papel, acho que pode fazer sentido; no entanto, estou super contra que os homens o façam. Também te digo que o verdadeiro êxito seria que as mulheres trans nem sequer tivessem de fazer personagens trans; que as atrizes cis fizessem personagens trans, e que as atrizes trans fizessem personagens cis. Isso seria maravilhoso — imagina que uma mulher trans podia fazer a personagem de Rojo, a diva do teatro, ou da mãe, em “Todo sobre Mi Madre”. 

S. : No cinema do Almodóvar tanto vemos mulheres como homens cis a interpretarem personagens trans. Mas não me lembro de ter lido alguma vez sobre isto ser considerado problemático, no caso da cinematografia dele em específico. 

V.V. : Claro, o caso de “Todo sobre mi Madre”, com a personagem da Lola, que era interpretada por um ator, aconteceu em 1999. Passaram-se 25 anos e mudou tanta coisa, felizmente. Se em cinco anos há muito que muda, quanto mais em 25. Nessa altura não o questionavam, nem o coletivo [trans] o questionava. Nós, enquanto coletivo, estávamos habituados a ser rebaixados e não nos dávamos conta desse tipo de coisas. Agora sim. Acredito que hoje em dia o Almodóvar jamais faria isso, foi uma coisa do passado. Penso que ele está muito consciencializado em torno da luta da comunidade [LGBTQI+]. 

S. : Não só nesse assunto. Ontem estava a pensar em como a vida está a acontecer para ele; antes odiava o cinema de Hollywood, agora está a trabalhar com atores dessa indústria. E a pensar em filmar o próximo filme em Nova Iorque. 

V.V. : As pessoas crescem; nós crescemos. Nesse filme do Almodóvar com atores americanos, o que muda é o elenco e o seu ideal do passado, mas a essência vai continuar a estar lá. O que importa é que sejas, de certa maneira, fiel a ti mesma. A verdade é que as pessoas evoluem, e eu gosto muito disso. É como quando dizem que os últimos discos do David Bowie eram muito maus; não, ele evoluiu. Não pode estar a fazer Ziggy Stardust durante toda a sua vida. O mesmo com a Madonna…

S. :  Com a Rosalía.

V.V. :  Com a Rosalía! As pessoas vão mudando. E é bonito que o quinto disco não se pareça com o primeiro. Com os realizadores passa-se o mesmo, e com as pessoas também. As pessoas, mesmo que não se dediquem a algo artístico, também se desenvolvem na forma de pensar, dadas as circunstâncias em que vivem em cada momento. 

S. :  O mesmo contigo, enquanto escritora, guionista, atriz, … ?

V.V. :  Estou certa de que também evoluí. Não enquanto atriz, porque atuar deixa-me muito mal; se tenho um guião, não consigo ser natural. Sou boa quando posso ser espontânea. Mas de uma forma geral, tenho a certeza de que evoluí. Continuo a ser muito parecida ao que era há 3 ou 4 anos porque passou pouco tempo, mas se me comparo com quem era quando tinha 20, sou uma pessoa completamente diferente. 

A mochila que carregamos às costas, com todo o mal que tem lá dentro, também é pesada porque se perpetua constantemente uma imagem negativa ou, pelo menos, muito repetitiva do que é ser trans.

S. :  Quando falamos de evolução, também penso no trabalho de investigação que fizeste com este livro [“Vestidas de Azul”]. Sentiste, em algum momento, que o cinema abriu caminho para a política e para a vida real? É possível, de facto, o cinema e a televisão terem um papel tão importante na mudança da sociedade?

V.V. :  Creio que sim. Creio que o cinema e a televisão – seja ficção, reality ou talk shows – têm o que toda a gente consome diariamente. É como um pacote de batatas: toda a gente tem acesso a um pacote de batatas. Uma caixa de caviar não, mas um pacote de batatas toda a gente compra. A televisão e o cinema também são o que toda a gente consome, e acabam por ser a forma mais direta de chegar à sociedade. Creio que nesse sentido, o cinema hoje em dia é um grande aliado. Vemos em séries como “Euphoria”, “Transparent”, “Veneno”, “POSE”: são um reflexo de que a sociedade evoluiu porque são histórias positivas, que contam algo e têm a capacidade de gerar emoções. Tudo isso chega à sociedade, e o que chega à sociedade chega à política também. Às vezes a sociedade avança mais rápido do que os políticos. Aliás, a sociedade, por sensibilidade e empatia, conecta-se com as minorias antes dos políticos. Parece que [os políticos] se dão conta tarde porque outras coisas vão sendo consideradas prioritárias, e por isso creio que o cinema, a televisão, a literatura, fazem com que também os políticos abram um pouco os olhos e percebam que as pessoas estão interessadas no avanço. E aí unem-se ao movimento. 

S. :  No livro falas da representação da mulher trans, tantas vezes estereotipada, e de como existe a ideia de que procura sempre ser “uma mulher completa” e de que é sempre trabalhadora do sexo. Esses estereótipos são globais; mas quando é que acaba a perpetuação do estereótipo e começa a representação de uma realidade, e vice-versa? A bell hooks escreveu um texto que toca neste ponto, “Is Paris Burning?”.

V.V. :  Apesar de eu dizer atualmente que o cinema e a televisão hoje são grandes aliados, no passado não o eram. A mochila que carregamos às costas, com todo o mal que tem lá dentro, também é pesada porque se perpetua constantemente uma imagem negativa ou, pelo menos, muito repetitiva do que é ser trans. E sobretudo as mulheres trans; os homens trans não existem na ficção, por sorte e por desgraça deles. Sorte porque são menos gozados, desgraça porque, na verdade, os invisibiliza, é como se não existissem. No caso de “Paris is Burning”, acho que se estava a mostrar a realidade que existia naquele momento. Aquele documentário representava uma realidade, por muito triste ou decadente que fosse. E está tudo bem com termos estes documentos e podermos ver um “Vestidas de Azul” e um “Paris is Burning” porque são um bofetão, e percebemos como evoluímos. Hoje em dia seria muito mau existir um tratamento como o desses dois filmes, porque não corresponderia à realidade. Hoje a realidade é muito distinta, e há mulheres trans que chegam a cargos importantes em qualquer tipo de trabalho, que estudam, que abrem caminho. Um documentário feito atualmente teria que refletir isso. Creio que tivemos uma evolução positiva e hoje estamos a abrir um pouco mais o campo de visão, como é o caso de “Euphoria”. Afinal, é indiferente se a Jules é trans porque os problemas dela vão muito além disso. 

S. :  Além desses estereótipos de que falas no livro, também mencionas a perspetiva patologizadora, e ao ler-te lembrei-me do livro “Yo soy el monstruo que os habla”, do Paul B. Preciado. Também é muito comum nas narrativas estereotipadas virem por arrasto os médicos, a polícia… como se o corpo trans estivesse sempre do outro lado: é o médico que fala sobre este corpo, a polícia que criminaliza.

V.V. :  É uma visão interessante porque de facto parece que dependes sempre do que tens ao redor: ou para que te salvem, no caso do médico, ou para que te rebaixem mais, no caso da polícia quando há abuso policial, ou das leis que existiam antigamente. Isto demonstra que estávamos no subsolo, não existíamos socialmente. Não se podia reclamar nada legalmente porque não se concebia que uma pessoa trans tivesse direitos — decidias mudar e passavas a assumir que estavas num terreno de ninguém. Hoje, mesmo tendo em conta todas as mudanças que aconteceram ao longo destes anos, tudo depende das pessoas. Um polícia que tenha uma má prática, fá-lo porque tem más motivações, não porque há uma lei que o obriga a deter uma pessoa trans. Mas sou positiva, acredito que atualmente há mais polícias e médicos bons, que tratam as pessoas com empatia. 

Se queres incluir personagens trans na tua história, ao menos que tenham uma vida própria e histórias próprias como qualquer pessoa.

S. :  O trabalho sexual foi um dos motivos que levou muitas pessoas trans a serem detidas, a dado momento — tanto em Portugal como em Espanha. No caso da representação dessa realidade, da prostituição, achas que a diferença pode estar na forma como se conta a história e não propriamente no facto desse ser o emprego da personagem em questão? 

V.V. :  Há um filme maravilhoso que se chama “Tangerine” (está disponível no Filmin), que conta a história de duas amigas de um extrato social muito baixo, que são trabalhadoras do sexo, e que saem da prisão. Mas o filme é sobre uma noite com elas em que o importante é ir mais além, não ficar pela superfície. Se queres incluir personagens trans na tua história, ao menos que tenham uma vida própria e histórias próprias como qualquer pessoa. Quando fazes uma série e os diretores criam uma personagem que não é trans, carregam-na de camadas e valores. Devia fazer-se o mesmo com as personagens trans, seria o mais justo. Pode contar-se a história de uma trabalhadora do sexo, se se for além do facto de ela ser uma trabalhadora do sexo; podemos escrever-lhe aventuras, desamores, cenas ao redor, e quando acaba o filme percebemos que podia ter outro emprego qualquer. 

S. :  Achas que é importante que exista uma pessoa que faça consultoria? Tu, por exemplo, trabalhas muito de perto com os Javis [a dupla Javier Ambrossi e Javier Calvo], a série “Euphoria” também tem um consultor, o ator Scott Turner Schofield.  

V.V. :  É muito importante, como acontece também em “POSE”, com as próprias atrizes. Por isso é que essas séries que estás a nomear são boas: “Euphoria”, “Veneno”, “POSE”. Porque são autênticas, têm credibilidade. Porque há uma pessoa que viveu o que está no guião e que diz: “Não, quando isso nos acontece não fazemos isto, fazemos aquilo”. Claro que cada pessoa é diferente, somos seres individuais, no entanto há coisas dentro do coletivo que são universais. Há danos, medos, sensações, até alegrias, que passámos todas. Quando tens um consultor, o resultado final acaba por ser muito mais polido e elaborado. Se formos ver uma série de há 10 anos (nem precisa de ser há 20), vamos encontrar coisas que achamos que estão mal feitas porque não havia nada atrás. Muitas vezes os produtores não se preocupavam com essa consultoria. 

S. :  Faz a diferença ter pessoas trans a trabalhar na produção e noutros postos atrás das câmaras, como os Javis estão a fazer na série “Vestidas de Azul”?

V.V. :  Eu estive na semana passada nas rodagens de “Vestidas de Azul” porque não vou sempre, e tive uma sensação de paz tão importante. Dei por mim a pensar: que bem que estão a trabalhar estas atrizes porque estão num contexto seguro. Em toda a equipa — da maquilhagem aos cabelos, figurinos, câmara, som — há sempre uma pessoa trans em cada departamento. Gera-se uma consciência muito maior e não há um comentário inadequado. Oxalá isto acontecesse noutras produções. Esta conquista dos Javis é muito importante porque, como dizes, não há que integrar apenas pessoas trans nos papéis disponíveis para atrizes, há muita gente que quer trabalhar na produção, como assistente de realização, e todas são muito úteis. A verdadeira integração é essa, porque à frente da tela tudo é visto e vão sempre existir mais técnicos do que actrizes. Ter essas pessoas nas equipas vai gerar sobretudo uma maior empatia, porque ao passar tempo com elas na sua equipa, as pessoas cisgénero podem dar-se conta de que não mordemos e somos pessoas normais. 

“As séries que têm surgido são produtos excelentes, mas no final, a Jules em “Euphoria” ou a personagem da Valeria em “Veneno”, são quase Disney. São belas, são adequadas, cumprem a norma, e é uma primeira forma de chegarmos à sociedade, mas acaba por ser muito limitado porque é claro que essas são imagens que, apesar de tudo, são mais aceites pela maioria”

S. :  Todas estas séries de que temos estado a falar estão disponíveis em plataformas de streaming. Fala-se muito sobre como essas plataformas vieram ocupar um espaço importante para que se possa ter acesso a essas narrativas que nem sempre vão parar aos canais de televisão — o que é que tu pensas? 

V.V. :  Seria muito bom que todas estas narrativas também chegassem à televisão — “Veneno” esteve, por sorte, mas foram só dois episódios. Acredito que numa questão de tempo isso aconteça, porque já provámos que temos conteúdo de qualidade. Na televisão, vai chegar a um público a que não chegaria de outra forma. De repente, uma pessoa de 10 anos que não pode pagar HBO pode ver uma série que lhe pode salvar a vida, como aquele filme com a Victoria Abril salvou a minha. Nem sempre nos apercebemos de quantas vidas uma série ou um filme pode mudar. Chega-me muito feedback de pessoas que contam que puseram “Veneno” para a mãe ou a avó verem, e elas adoraram e acabaram a chorar com a história. Isto é tão importante. Neste caso, há filhos ou netos que põem a série para estas pessoas de outra geração verem, mas se passasse na televisão, podia chegar-lhe na mesma, mas de outra forma. Há um ponto médio em que estou a favor das plataformas de streaming porque têm conteúdo de qualidade e para todos — porque também há conteúdo que não é LGBTQI+ e é maravilhoso —, mas é verdade que às vezes temos de reforçar que ter estas produções na televisão aberta é mesmo fundamental para chegar a mais pessoas. 

S. :  Lembras-te de alguma história em que tenhas sentido o poder da representatividade com o teu trabalho? 

V.V. :   Sobretudo pessoas que dizem que viram a série e contaram à família quem são, porque a série lhes deu força. Necessitamos sempre de um empurrão, e muita gente se encontrou a si mesma ali. Há casos que são curiosos, tipo uma mulher cisgénero que estava grávida quando viu a série e decidiu chamar a filha de Valeria, e tantas pessoas que fizeram uma tatuagem da Veneno. Há muita tinta em vários corpos com a cara da Veneno! Mas o mais bonito é quando serve para dar força a alguém. 

S. :  Na nota inicial do teu livro contas que tiveste contacto com o filme “Vestida de Azul” através de uma amiga que te ofereceu a cassete, e sei que essa amiga era a Veneno. É muito bonito como podes ter contacto com um património a que não terias acesso pela tua família de sangue, através das tuas amigas ou da família que escolheste. 

V.V. :  É algo muito curioso na comunidade LGBTQI+ em geral: formamos estas famílias escolhidas , mesmo que nos demos muito bem com a tua família de sangue, e que nos entendem muito melhor. Dentro desses grupos que formamos, que são muito distintos, recomendamos coisas umas às outras. “Tens que ver o ‘Paris is Burning’” ou “tens que ler este livro’” — o boca à boca é poderosíssimo. Isso chega até ti porque fazes parte deste coletivo que antes vivia na sombra e era minoritário, e que criou um património que é quase de culto. É um património que não tem um acesso comum, está fora do marketing, porque sempre foi underground. Mas temos de ter força, na comunidade, para que siga vivo. Hoje à noite vamos ver um documentário que tem 40 anos, foi feito há muitíssimo tempo, e que está disponível por esse boca a boca ter existido, e por ter havido interesse dos programadores, claro. Mas também acontece com canções, com ícones, com tudo. 

S. :  Algumas das referências que incluiste no “Libérate”.  

V.V. :  Exato! No “Libérate” reuni um monte de referências que são canções, pessoas, filmes, e tantas outras coisas. 

S. :  Na série “Vestidas de Azul” que, como disseste, já está a ser rodada, vamos ver algumas das mesmas personagens de “Veneno”, inclusive as amigas dela, que têm tido um duplo papel de visibilidade: não só por serem mulheres trans, mas por também serem mulheres mais velhas. Porque as pessoas queer não são só jovens.

V.V. :  Essa é a minha luta atual, creio. É verdade que as séries que têm surgido são produtos excelentes, mas no final, a Jules em “Euphoria” ou a personagem da Valeria em “Veneno”, são quase Disney. São belas, são adequadas, cumprem a norma, e é uma primeira forma de chegarmos à sociedade, mas acaba por ser muito limitado porque é claro que essas são imagens que, apesar de tudo, são mais aceites pela maioria. Mas as mulheres trans também envelhecem e fico muito feliz que em “Veneno” ou “Vestidas de Azul” estejam pessoas como Paca, La Piraña ou Juani Ruiz, que são felizes enquanto mulheres mais velhas e conseguem demonstrá-lo. É importante que possamos ver outras realidades, porque se a realidade se cristaliza na juventude, há um pouco de mentira em tudo isto. Nem todas as pessoas trans são jovens e belas — e as que são, um dia deixarão de sê-lo. Portanto, é importante que nos familiarizemos e que apostemos na pluralidade. Somos plurais como o resto das pessoas. 

S. :  E tu procuras sempre a verdade?

V.V. :  Eu procuro sempre a verdade porque acredito que se vive mais comodamente. Acho que a verdade torna o teu caminho mais leve.  

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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