La Veneno: quando existir é resistir e inspirar outras vidas Trans

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Veneno (Hbo)
Daniela Santiago como Cristina Veneno. Foto de Atresmedia/HBO Max

La Veneno: quando existir é resistir e inspirar outras vidas Trans

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Veneno, a série espanhola que nos chega pelas mãos de Javier Calvo e Javier Ambrossi acompanha a vida de Cristina Ortiz Veneno. Há quem diga que Cristina se tornou uma ativista LGBTQI+ sem intenção; a sua existência era o seu trabalho ativista, movido pela resistência de ser sempre quem queria ser.

“¡Hola, mi arma!” — esta seria, provavelmente, uma das formas possíveis com que Cristina Veneno nos cumprimentaria se passássemos por si numa rua em Madrid. Fôssemos ou não seus amigos ou conhecidos, iria dirigir-se a nós com o à vontade com que alguém se dirige a alguém que conhece há anos. É o que várias pessoas que tiveram a oportunidade de se encontrar consigo ao longo da sua vida dizem, em diversas entrevistas, e que a série Veneno, recentemente estreada na HBO, vem refutar. Cristina foi a mulher que todos queriam conhecer, mas que nem todos souberam respeitar e compreender; Veneno vem recuperar as subnarrativas da sua história que ficaram fora dos ecrãs que tantas vezes a receberam.

Veneno, a série espanhola que nos chega pelas mãos de Javier Calvo e Javier Ambrossi – a dupla carinhosamente conhecida como “Los Javis”, responsável também por Paquita Salas – e que é uma co-produção entre os estúdios Atresmedia, a Suma Latina e a HBO Max, acompanha a vida de Cristina Ortiz Veneno em dois tempos: um “presente” que nos mostra o seu declínio e a decadência dos dias passados à espera do regresso de um tempo que não volta, e um “passado” que recupera os seus tempos áureos  o percurso da sua vida até se tornar em Veneno. Nesta ficção que se encontra com o real, o livro ¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno, escrito por Valeria Vegas, serve de base à narração feita, na primeira pessoa, por Cristina e é, inclusive, um elemento central na história. 

Cristina cresceu em Adra, uma pequena aldeia em Almería, onde nunca se sentiu confortável sendo quem era. Foi quando se mudou para Madrid que se encontrou, junto de uma comunidade cujas vivências se pareciam com as suas. Foi também lá que se cruzou com uma repórter do programa televisivo Esta noche cruzamos el Mississippi no Parque del Oeste, onde trabalhava enquanto prostituta, e fez disparar audiências. Pepe Navarro, o apresentador do programa, recorda que “houve uma atração magnética, a primeira vez que ela apareceu na televisão, e que acontecia sempre que ela aparecia”. Segundo Cristina contava, foi o próprio Pepe que tentou convencê-la a integrar o programa e, cerca de um mês e meio depois, conseguiu. 

Na série dos Javis, são Faela Sainz (Lola Dueñas) e Machús Osinaga (Ester Expósito), duas repórteres que tentam convencer Cristina (Daniela Santiago) a entrar para o Mississipi, mas há uma parte que corresponde com certeza à realidade: Veneno não queria aceitar o convite porque o medo de que os seus pais a vissem na televisão a assolava. Nunca a tinham visto assim, mulher — ainda que a própria sempre se tenha sentido mulher, desde que se lembrava de ser gente. Com o apoio de Paca La Piraña (Desy Rodriguez), sua amiga e conselheira, acaba por ceder, dando-se assim o começo de uma carreira televisiva fazendo de si mesma. Sem papas na língua, com uma sinceridade brutal e um sentido de humor capaz de colar qualquer pessoa à televisão, independentemente da idade ou da origem. O segredo, acredita Pepe Navarro, estava na tremenda ternura que emanava, e sobretudo que contrastava com essa aparência atroz, com essa aparência exuberante, com essa voz sempre subida de tom”.

O encontro destes dois momentos temporais da vida de Cristina na série acontece quando Valéria Vegas, na altura estudante de jornalismo, interpretada por Lola Rodríguez, entra na sua vida e decide que quer escrever as suas memórias. Esse encontro traz um misto de emoções, vindas de lugares conduzidos por sentimentos dúbios, ao sentir que alguém se interessa pela sua história, quer ouvi-la, dá-lhe importância, e quer que mais pessoas a conheçam. “A minha história é bonita, não é?”, pergunta Cristina vezes sem conta a Valéria. Não só a sua história é bonita, com todas as suas cicatrizes e tristezas, como serviu de exemplo a outras tantas histórias (por muito que, provavelmente, Cristina não o soubesse de forma consciente). Há quem diga que Cristina se tornou uma ativista LGBTQI+ sem intenção; a sua existência era o seu trabalho ativista, movido pela resistência de ser sempre quem queria ser. 

A ida de Cristina para a televisão foi o mote para que se tornasse conhecida e vista, e foi também o grande motivo do seu declínio, aliado a relações tóxicas que cultivou ao longo da vida e que a deixaram em situações de extrema vulnerabilidade. Este regresso à televisão, já depois da sua morte trágica, vem resgatar a dignidade de uma mulher que foi posta constantemente numa posição de elemento atrativo, para fazer disparar audiências, fosse através do que dizia para provocar gargalhadas entre o público e os espectadores, fosse através de confrontos emocionais promovidos à frente de câmeras. São disso exemplo o reencontro de Cristina com os seus pais no Mississipi, momento que aconteceu no começo do seu percurso e foi recriado na série, um encontro com uma “falsa cirurgiã” ou a ida ao Polígrafo, já mais tarde, também replicada em Veneno, onde uma série de convidados a confrontou com as mentiras que supostamente havia dito. 

A passagem de Cristina Ortiz Veneno pela televisão pode ter sido agridoce, mas no fim de contas teve um papel fundamental para a comunidade Trans espanhola. Não fosse essa sua presença encorajadora para outras pessoas que se sentiram menos sozinhas, que sentiram que a sua identidade era válida, que sentiram em Veneno a sua existência. De forma subtil, mas carregada de intenção, é também isso que a série acaba por querer deixar bem claro: falar de Cristina é falar das muitas Cristinas que existem ou existiram, dentro e fora dos limites da televisão. 

“Os Javis elevaram-nos para contarmos a nossa história” 

Cristina foi uma mulher Trans, grande parte das suas amigas eram Trans, e era na sua existência que resistiam perante uma sociedade que constantemente as desumanizava e expunha os seus corpos e identidades. Ter mulheres Trans a interpretar Cristina, em três fases da sua vida, bem como as suas amigas, era uma condição para avançarem com o projeto — e tem sido, certamente, um dos segredos para o seu sucesso. Para dar vida a Cristina escolheram Jedet, reconhecida ativista LGBTQI+, Daniela Santiago, que nunca tinha tido um papel desta dimensão (por muito que, ao vê-la, seja quase impossível acreditar), e Isabel Torres, atriz e apresentadora de televisão. 

Tanto com Jedet, no início da sua vida adulta, como com Daniela Santiago, na fase pós-transição em que entra para o Mississipi, e com Isabel Torres, nos últimos anos de vida, as semelhanças são inegáveis, não só no aspeto, como nos jeitos e modo de falar. Paca La Piraña, que entra a fazer de si mesma no tempo “presente” da série, não escondeu a emoção assim que viu Daniela Santiago em Veneno, no set de rodagem, pela primeira vez; quem o conta é a própria Daniela, numa entrevista feita antes da estreia da série em Espanha: “quando a Paca me viu, tocou-me na cara, tocou-me no corpo e disse-me ‘belisca-me, parece que estou a alucinar’ e começou a chorar”.   

Lola Rodríguez, cujo papel de Valeria Vegas na série reforça a ideia de que cada história é uma história e cada transição é uma transição, nasceu em 1998, um dos anos de maior esplendor para Cristina e, ao contrário do que acontece na série, não teve tão presente o percurso de Veneno, mas não nega que esta é “uma referência”: “[é] alguém que sente o mesmo que nós, que mostra a sua realidade; porque não se fala sobre isto, tu pensas que és a única no Mundo. E saberes que há outra pessoa que te pode entender de alguma maneira é muito importante”. “Esta é uma realidade que sempre esteve aí, mas que ninguém queria olhar de frente”, diz na mesma entrevista à Vodafone Yu, que deu junto a Daniela Santiago. 

À medida que vamos pesquisando sobre a produção de Veneno, é como se começássemos a desenrolar um novelo de histórias, referências e ligações. Tal como Paca La Piraña entra fazendo de si mesma, também Juani Ruiz, amiga de Cristina já nos anos 2000, surge na sua própria pele após ter ido ao casting e ter mostrado vontade de fazer parte desta homenagem — e, como conta numa entrevista na Formula TV, para recuperar uma dignidade que sente que não teve (ou não lhe deram) na sua curta passagem também pelo Mississipi, onde importavam sempre “as audiências” e quanto mais disparatado parecesse o que se dizia, melhor. 

Sobre esta série, neste registo, Lola Rodríguez elogia a sensibilidade de Javier Calvo e Javier Ambrossi: “deixaram-nos falar e contar a nossa história”. “Em cada departamento havia uma personagem trans que, ao fim ao cabo, puseram a sua sensibilidade e as suas vivências para consciencializar o resto da equipa. Então a própria equipa estava muito consciencializada, e tudo ia dar a um lugar de liberdade, de respeito, de empatia. Os Javis deixaram-nos fazer parte de um projeto enorme, mas sentiamo-nos livres para  poder contar (a nossa história). Elevaram-nos para contarmos a nossa história”, diz na entrevista à Vodafone Yu. Já Isabel Torres, não tem dúvida de que “os Javis criaram algo que vai mudar a história da televisão”.

Torres não tem dúvidas de que “esta série tem algo que vai mexer com a consciência de muita gente”, porque mostra esse outro lado de Cristina e todo o sofrimento que passou enquanto Joselito, na sua infância em Adra, nos tempos em que trabalhava na prostituição porque, enquanto mulher Trans não tinha outra hipótese, e com todas as pessoas que se aproximaram de si com segundas intenções e a levaram à ruína, ou até mesmo à prisão. Mostra o que estava para lá das câmaras, das revistas cor de rosa e do que a própria Cristina dizia publicamente. O que aconteceu com Cristina ao longo da sua vida e além dos momentos de gargalhada foi, na sua opinião, o que acontece sempre que surge alguém desconhecido e que não entra nos modelos normativos e binários do que se pressupõe ser um ser humano nos lugares mainstream: “quando alguém vê uma pessoa que não conhece, tende a excluí-la ou a atacá-la, porque não a conhece”. 

“Creio que esta série vai mudar muitas mentalidades porque há sempre juízos de valor, como ‘transexuais-prostituição-mundo escuro’. Não, senhores, somos seres humanos”, diz também Isabel Torres. E garante que para que isso aconteça, todas as atrizes puseram “tudo nesta série para que chegue [aos espectadores] com a carga emocional que merece”, para que “as pessoas entendam que nós [mulheres Trans] somos iguais a qualquer outra pessoa, e que não nos podem discriminar nem relegar-nos ao subsolo da sociedade, como sempre têm feito”. 

Em Veneno, há um cuidado em cada pormenor estético – que inevitavelmente nos transporta para o cinema de Almodóvar – , como em cada pormenor técnico e temático. Como se qualquer pessoa pudesse, por momentos, mergulhar num Mundo que pode estar mais ou menos distante do seu, mas em que se consegue encontrar algo familiar; algo que nos faz querer ficar e saber mais, como se estivéssemos num momento de escuta que poderíamos ter com alguém do nosso círculo mais íntimo de amizade. E para Valeria Vegas, autora do livro de memórias sobre a Veneno, o mais importante desta série, como disse em entrevista, é que “[os Javis] remaram a favor de que se dignifique a história”; “é tão fácil num frame cair em algo que confunda, que se mal interprete, mas tudo remou a favor… não da Cristina, mas de um coletivo”. “Tenho amigas a contactar-me da Argentina, de Inglaterra, alucinadas, que se sentem dignificadas com esta história”. 

Paca La Piraña e Lola Rodríguez como Valeria Vegas. Foto de Atresmedia/HBO Max

Representatividade Trans importa

Valeria Vegas escreveu e publicou, já depois de ¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno (2016), um livro que marcava os 35 anos da estreia comercial de Vestidas de Azul (1983), um documentário de Antonio Giménez Rico sobre um grupo de seis mulheres Trans espanholas que se tornou num filme de culto. Vestidas de azul: Análisis social y cinematográfico de la mujer transexual en los años de la Transición española parte desse filme de culto, mas alarga a análise à representação de mulheres Trans no cinema, numa altura em que grande parte dos filmes as enquadravam de forma questionável. 

Se olharmos ao contexto americano, rapidamente podemos apontar outro documentário de culto que acabou por se tornar uma referência a nível internacional sete anos depois de Vestidas de Azul: Paris is Burning, de Jennie Livingston. Em Paris is Burning o contexto é diferente, e a forma como as personagens surgem também; entramos na cultura do ballroom e conhecemos as vidas (que nos são apresentadas como sendo) decadentes da comunidade queer, sobretudo negra e latina, nos subúrbios de Nova Iorque. Na tela, drag queens e mulheres Trans em processo de transição partilhavam as amarguras das suas vidas, a que estavam condenadas pela sua identidade, por serem quem eram; nas cadeiras das salas de cinema, grande parte dos espectadores eram brancos e cis, e distantes das rotinas destas personagens da vida real que ali viam pela primeira vez.

bell hooks, que dedica a Paris is Burning um texto que integra o livro Black Looks, recorda o momento em que o viu na sala de cinema da seguinte forma:

“Ao ver Paris is Burning, comecei a pensar que muitas das pessoas aparentemente yuppie, com comportamentos aparentemente heterossexuais, intrometidos e predominantemente brancos na audiência, estavam lá porque o filme não questiona de modo algum a branquitude. Essas pessoas saíram do filme a dizer que era “fantástico”, “maravilhoso”, “incrivelmente engraçado”, merecedor de frases como “não adoraste, simplesmente?” E não, eu não o adorei.”

O desconforto de hooks ganha outras proporções quando cruzado com o testemunho de pessoas que participaram no documentário, como Kevin Omni Burros, que disse ao The Guardian que Jennie Livingston “apareceu e enganou toda a gente”, dizendo que “estava a fazer uma tese”. Octavia Saint Laurent, uma das personagens com maior destaque no filme, disse anos mais tarde em How do I Look? (2006), documentário de Wolfgang Busch, que “Paris is Burning é um filme péssimo”, que “ridiculariza” os seus intervenientes.

Quando confrontada com o nível de intimidade que aparentemente teve com as pessoas que entram no seu filme, Livingston diz numa entrevista que escolheu “pessoas que eram articuladas, que tinham coisas que queriam dizer e que estavam muito felizes por alguém as querer ouvir” (Livingston citada por hooks 2015, 151). Em momento algum, no filme ou em entrevistas, a realizadora questiona a sua branquitude ou explora o facto de ser um corpo estranho ao lugar em que filmou durante vários anos. Na verdade, Livingston mostra-se crítica quanto à apropriação de Madonna do voguing (género de dança que surge na cultura do bal room) e, usando as palavras de bell hooks, “não percebe em que medida o seu trabalho difere” da apropriação cultural que aponta a Madonna. Porque se Madonna seguiu com a criação de “Vogue”, faixa lançada e popularizada em 1990, e não deu nada em troca à comunidade queer que o criou, a não ser uma esperança de valorização que acabou por não acontecer na época, o mesmo aconteceu com Jennie Livingston.

Quase trinta anos depois da estreia de Paris is Burning, POSE (2018) estreou-se na televisão americana, no canal FX. A série ficcional produzida por Ryan Murphy e Janet Mock conta, também, o que se passa na cultura do ballroom, ainda que com um contexto para cada personagem que ajuda a perceber melhor o contexto geral. Em POSE, a grande diferença é que a narrativa parte de dentro — tanto de quem filma, como de quem interpreta — e cujo distanciamento histórico em relação aos acontecimentos, por um lado, permite criar ligações entre acontecimentos que surgem em consequência uns dos outros.

Em POSE, as mulheres trans são interpretadas por mulheres trans, os homens gay são também homens gay, e têm um papel ativo na construção da série que conta com um elenco e uma equipa queer a trabalhar em torno do mesmo produto, tal como acontece agora em Veneno. Desta forma, o resultado é uma série televisiva com subnarrativas que conferem a cada personagem uma vida, uma identidade, um contexto; ao contrário de Paris is Burning, POSE permite entender a complexidade das vidas dos diferentes intervenientes do ballroom que são, antes de mais, pessoas com histórias individuais, mas que ao fim do dia se reúnem. São mais do que um grupo homogéneo problemático, com um humor ácido — como Livingston enquadra o elenco de Paris is Burning.

Emmy Awards batem recorde de representatividade negra, mas “o que é preciso para MJ Rodriguez ser nomeada?”

A série de Ryan Murphy e Janet Mock representou um marco na representatividade no panorama mainstream americano, ao ter uma equipa que se preocupou, desde o começo, em respeitar o tema e as pessoas retratadas, mas também a comunidade queer que trabalha na indústria cinematográfica. Respondendo a um apelo do Shifter para este artigo, onde a pergunta de partida era “porque é que a representatividade Trans importa?”, Mó partilha connosco a sua visão:

“O cinema e as séries têm uma capacidade incrível de nos transportar até outros universos e criar empatia por vivências diferentes da nossa, desmistificando preconceitos, enquanto simultaneamente chegam até um público grande e variado. O cinema aproxima-nos de diferentes realidades, o que nos aproxima da empatia, que por sua vez nos leva a alcançar uma sociedade mais justa e inclusiva. Mas mais importante que isso é o valor que têm para as pessoas Trans poderem finalmente encontrar personagens e histórias com as quais se identifiquem e revejam, principalmente quando ainda é tão difícil encontrar esses exemplos no mundo que nos rodeia.” 

Para melhor explicar as lacunas pré-existentes no cinema, no que toca à representação Trans, Sam Feder e Amy Scholder fizeram Disclosure: Trans Lives on Screen (2020), um documentário que passa em revista a representação trans no cinema de Hollywood desde o início da História do Cinema, e o impacto que a mesma teve em profissionais do cinema da comunidade LGBTQI+, sobretudo Trans, quando os viram, mas também nas reações dos espectadores para com pessoas trans. A certa altura, a atriz Laverne Cox, cuja participação na série Orange is the New Black (2013-2019) foi também um marco na representatividade trans num plano mainstream, fala sobre os comportamentos que os espectadores são repetidamente treinados a ter, através das representações estereotipadas no cinema:

“Não consigo dizer precisamente o número de vezes que estive num lugar público, sobretudo no início da minha transição, ou quando entrava no metro, e as pessoas desatavam a rir. E acho que as pessoas estão – têm sido – treinadas a ter essa reação.”

Ao longo do documentário surgem filmes como The Birth of a Nation (1915) de D.W. Griffith, onde entra uma personagem que é um homem a vestir-se de mulher numa toada cómica, quase ridícula, ou Ace Ventura: Pet Detective (1994), de Tom Shadyc, onde uma mulher Trans é despida em público e, quando o grupo de homens presentes na cena descobre que não fez a cirurgia de resignação sexual, e aí a passa a ver enquanto homem, começa a vomitar num gesto coletivo. Esta repetição da ridicularização, o desprezo, e o enquadramento desviante feito às pessoas Trans, que surgem em grande parte dos filmes como o elemento exótico tem, naturalmente, consequências nos espectadores e na forma como olham para, e se relacionam com, pessoas Trans na vida de todos os dias. De acordo com um estudo do GLAAD Media Institute, citado no filme, cerca de 80% das pessoas americanas admite não conhecer nenhuma pessoa transgénero e, por isso, o único contacto que tem é através dos filmes.

“A forma como temos vindo a ser representadas faz-nos parecer doentes mentais, põe-nos num plano em que não existimos. E no entanto aqui estamos, sempre estivemos” é outra das intervenções de Laverne Cox ao longo do documentário que lembra que essas representações importam também para espectadores trans, que sentem desconforto e, a certa altura, questionam a sua própria existência. bell hooks explica essa relação entre a auto-percepção e o que se vê na tela dizendo que “o racismo e o sexismo têm um impacto muito grande nos espectadores — não só em relação ao que vemos [n’o outro] mas também com quem nos identificamos” (hooks 2015, 130). Se o que o espectador vê se parece superficialmente consigo mas, no fim de contas, vai sempre ser enquadrado como algo (não alguém) que está errado, é risível e agressivo, é possível que este se venha a questionar quanto a quem é e o que quer ser, e que se crie desconforto quando, numa mesma sala de cinema ou de estar, se veja essa representação na tela ou na televisão, junto a outros espectadores que se enquadrem na norma.

À medida que novxs realizadorxs, intérpretes e produtorxs queer reclamam os seus lugares de fala e justiça para as suas histórias, primeiro num campo independente e, mais tarde mainstream (Ortner, 2013), vão-se formando públicos e reconfigurando relações com as visões estereotipadas que não passam em branco, como em tempos poderiam passar. Ter pessoas diretamente implicadas com os temas a filmar ou, em última instância, a acompanhar a criação do objeto cinematográfico não tem apenas que ver com uma confirmação de verdade, mas também com a naturalidade com que se aborda o tema. Um enquadramento será sempre um enquadramento, mas importa garantir que será respeitador para com quem é filmado ou com quem é representado no filme.

Nos prémios que distinguem o melhor de cada ano na televisão, como os Emmy Awards ou os Golden Globes, estes continuam a não ser fatores a ter em conta no momento de nomear “os melhores”. E se por um lado as nomeações são sempre uma questão de escolha de um júri, por outro reforçam que estas narrativas continuam a ser ignoradas e desvalorizadas pela indústria — mesmo que não sejam obrigatoriamente de nicho. Dois exemplos claros são a ausência de nomeações para POSE nos últimos Emmy, e o mesmo ter acontecido esta semana com I May Destroy You nos Golden Globes; duas produções exemplares, que trazem frescura ao que têm sido as produções mainstream nos últimos anos, mas que não se enquadram na narrativa dominante de pessoa-branca-cis. Ainda assim, todos os anos, o GLAAD – Gay & Lesbian Alliance Against Defamation organiza prémios anuais que distinguem o melhor conteúdo audiovisual LGBTQI+. Este ano, xs nomeadxs vão de Veneno a Disclosure, de We’re Here a Steven Universe

Sobre a importância de quem filma e quem é filmado, na senda da pergunta também respondida por Mó, Sol diz o seguinte: 

“Representação Trans criada por pessoas que partilham destas identidades é urgente. Quando falamos de espectadores Trans, quando nos conseguimos finalmente rever no ecrã e sentirmo-nos empoderadas e validades nas nossas existências, das experiências mais mundanas às mais intensas, esta representação pode ter um impacto real e extremamente regenerativo na vida das pessoas para além do ecrã. Penso também ser importante no sentido de espectadores que não partilham destas identidades poderem observar representações reais e circulares ao invés das tantas que já temos, que perpetuam estereótipos e têm um impacto real e negativo na vida das pessoas trans fora do ecrã. O impacto das imagens não pode ser minimizado nem banalizado, as fronteiras entre o que vemos e o que fazemos não são rígidas, para o bom e para o mau.”

Num pequeno texto que integra o livro To Exist is to Resist – Black Feminism in Europe, a realizadora britânica Dorett Jones sugere que através do cinema “podemos usar o nosso poder e diferença enquanto agentes para fortalecer, conectar e determinar como é que o nosso futuro se parece e como o partilhamos e arquivamos”. Seja através do documentário, como é o seu caso, ou da ficção, como acontece com Javier Calvo e Javier Ambrossi ou Janet Mock, há uma nova geração de profissionais do cinema e audiovisual, mas também de espectadores, conscientes do poder que as imagens em movimento podem ter para criar enquadramentos sobre comunidades, desumanizando as individualidades num processo que vai beber ao legado colonial, transfóbico e machista. É (também) para reverter esse poder, usando-o para contar histórias alternativas, que filmam, que se exprimem e que exigem mais. Que tornam visíveis as histórias que não podem mais ficar “no subsolo onde sempre as quiseram pôr”.  

Referências Bibliográficas

HOOKS, bell 2015. Black Looks – Race and Representation, Nova Iorque: Routledge editado por Gloria Watkins

ORTNER, Sherry B. 2013 Not Hollywood – Independent Film at the Twilight of the American Dream , Duke University Press

JONES, Dorett 2019. “Through Our Lens: Filming Our Resistance. Does the Future Look Black in Europe?” , in To Exist is To Resist – Black Feminism in Europe, Londres: Pluto Press, editado por Akwugo Emejulu e Francesca Sobande

Índice

  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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