Disco Elysium e o colectivo ZA/UM que conquistou o gaming mas acabou conquistado

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Disco Elysium e o colectivo ZA/UM que conquistou o gaming mas acabou conquistado

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Prémios, entrevistas, um estúdio em expansão… Os fãs celebravam a grande vitória da criatividade sobre a incessante repetitividade de franchises e o fetichismo do realismo, e os criadores agradeciam publicamente a Marx e Engels na recepção dos Video Game Awards. Mas, como diz a frase tornada célebre pelo antropólogo russo Alexei Yurchak, “tudo era para sempre, até não o ser mais.”

[Este artigo terá uma versão em inglês a publicar em breve]

Caiu-nos em cima como um cometa. Num dia não existia, ninguém sabia o seu nome. Formou-se como uma aglomeração precisa de partículas, até então invisíveis, na superfície dum tableau negro, uma luminosa constelação de pó e nada.

Sugestão: Disco Elysium. Combinação entrópica de palavras, esta. 
Enciclopédia: Disco — dança, bolas-de-espelhos, celebração, casacos de pele, óculos extravagantes, calças boca-de-sino, substâncias a rodos. 

Enciclopédia: Elysium — residência das almas nobres e abençoadas, isolado do gelo e campos de lava do reino de Hades.

Conceptualização: Um paraíso no inferno. Lógica: Duas palavras denominando um jogo que iludia qualquer destas descrições.

Disco Elysium é um top-down cRPG (Role Playing Game de computador com câmara isométrica) na velha tradição de Dungeons & Dragons, narrando a história de Harrier Du Bois, detetive toxicodependente e melancólico com 24 personalidades diferentes — algumas das quais exemplificadas nos primeiros parágrafos deste texto — que dá por si a investigar um homicídio. Tudo isto enquanto procura recuperar a memória, apagada do seu cérebro como giz dum quadro gasto, após três dias de consumo ininterrupto de álcool e drogas. Esta figura cómico-trágica reflete a ruína de Revachol, a decadente cidade fictícia do jogo, estagnada pela aliança centrista neoliberal que tomou o poder após uma revolução comunista falhada contra o antigo regime monárquico.

Esta eclética mistura de ingredientes foi concebida por um coletivo estónio, até então totalmente incógnito: ZA/UM. Um conjunto de indivíduos para quem a criação e divulgação artística serviam de ponta de lança contra a estagnação cultural na Estónia, e para quem a recepção da crítica foi surpreendentemente efusiva. 

Disco Elysium foi imediatamente aclamado como um dos exemplos primordiais do poder narrativo e artístico que poderia ser alcançado no meio dos videojogos. Um guião denso mas convidativo, surpreendentemente reativo ao jogador, composto mais de um milhão de palavras (o dobro de Guerra e Paz de Tolstoi); uma direção de arte altamente estilizada que se relaciona na perfeição com a majestosa banda sonora dos Sea Power (antigamente British Sea Power), retratando de forma sublime o coração pulsante duma cidade defunta. Um jogo sobre derrota e as suas consequências, como o grotesco animal humano a esta responde: seja individualmente, socialmente ou politicamente.  E zás! Tornou-se um fenómeno mundial. 

Prémios, entrevistas, um estúdio em expansão… Os fãs celebravam a grande vitória da criatividade sobre a incessante repetitividade de franchises e o fetichismo do realismo, e os criadores agradeciam publicamente a Marx e Engels na recepção dos Video Game Awards. Em 2021, saía Disco Elysium: The Final Cut, uma versão atualizada do jogo com atuações vocais completos para todo o texto e conteúdo adicional, e era lançada também uma loja de roupa artesanal baseada em designs do jogo. A ZA/UM parecia concretizar as suas largas ambições. Mas, como diz a frase tornada célebre pelo antropólogo russo Alexei Yurchak, “tudo era para sempre, até não o ser mais.”

Martin Luiga (foto de Madli Lippur)

No primeiro dia do passado mês de Outubro, Martin Luiga, membro fundador da ZA/UM, publicou no seu blog pessoal um anúncio da dissolução efetiva da ZA/UM (o coletivo, não a empresa) por já “não representar o ethos sobre a qual se fundou”. Anunciou também que as três das mentes principais por detrás de Disco Elysium — Robert Kurvitz, Helen Hindpere e Aleksander Rostov — haviam abandonado a ZA/UM (a empresa, não o coletivo) de forma “involuntária”, e não estavam envolvidos no desenvolvimento da tão antecipada sequela. 

Este tipo de acontecimento tem imensos precedentes na indústria de videojogos. E ironicamente, apesar de o próprio jogo parecer advertir-nos contra os perigos da nossa ingenuidade coletiva — como diz Joyce Messier, uma das muitas personagens do jogo, “o capital tem a habilidade de absorver todas as suas críticas.” — a dissolução do colectivo surgiu de forma inesperada para muitos.

Noutro post no seu blog, Luiga detalhou o sucedido. Aqui, a sua atenção recaiu sobretudo na forma como Kurvitz, principal ideólogo e escritor em Disco Elysium, terá sido tratado aquando do seu despedimento. “O que aconteceu a Robert é o que acontece à maioria dos grandes talentos aclamados durante a nossa era — acabou manipulado por psicopatas, e as pessoas que se insurgiram contra ele e seus companheiros também acabaram manipulados por psicopatas (…)” 

Segundo Luiga, os principais culpados foram Kaur Kender e Tõnis Haavel, os líderes executivos da ZA/UM. A viragem de Kender, em particular, merece atenção. O escritor e empreendedor extremamente controverso na Estónia, foi quem financiou o desenvolvimento de Sacred and Terrible Air, romance e primeira história publicada que antecede Disco Elysium, convenceu o escritor a desenvolver o seu imaginário sob a forma dum videojogo, angariou a corrente inicial de investidores…mas terá, no fim de tudo, segundo Luiga, sido um dos principais instigadores da saída de Kurvitz.  Deve-se realçar também que, durante a década passada, Kender recebeu ajuda de Kurvitz deixar de parte o seu alcoolismo (sendo este último também um ex-alcoólico).

Procurámos então contactar Martin para saber mais sobre o sucedido. Numa longa troca de emails, quisemos saber mais detalhes sobre toda esta controvérsia, ao mesmo tempo que, como fãs confessos do jogo, procurámos obter algum contexto por detrás da sua génese, o seu impacto, e como acaba corrompido algo que, para muitos, se tornou um marco cultural.

A conversa decorreu por e-mail, em inglês e foi traduzida e ligeiramente editada para melhor compreensão dos leitores de toda a dimensão desta história. Ao longo do diálogo as anotações surgem na forma de algumas das identidades do personagem principal de Disco Elysium, Harrier Du Bois.

Shifter: Passaram-se três anos desde o lançamento de Disco Elysium e já é um marco cultural na história do meio. Poucos jogos causaram tanto impacto cultural, e menos são aqueles que o conseguem, não através de controvérsia, mas inovando e interrogando o meio, o mundo e as suas flutuações políticas e sociais de forma honesta. Como olhas todo este trajeto?

Martin Luiga: Bem, deixem-me dizer que tem sido uma aventura, ainda é uma aventura. Talvez até seja uma aventura da qual já me cansei um pouco, mas que ainda assim é difícil abandonar

Toda a qualidade e sucesso do jogo foram e não foram uma surpresa. Por um lado, sempre acreditei nas nossas capacidades e talento, uma crença que foi absolutamente necessária para o nosso sucesso. O Robert foi muito mais pessimista — incrivelmente pessimista, aliás, o que também se revelou ser essencial para nós..

Tudo o que aconteceu foi incrivelmente extenuante para os envolvidos. Mas não quero com isto dizer que me arrependo. Não consigo imaginar outra vida melhor que esta. Se não tivéssemos sido explorados pelos abutres estes simplesmente teriam arranjado outro grupo de pessoas para explorar, talvez menos resilientes que nós.

As coisas sempre foram mais duras para aqueles que, digamos, estão meio passo à frente do ritmo geral do mundo. Relembra-me um dito de Žižek: “a revolução chega necessariamente sempre cedo demais.” 

(Enciclopédia: Martin, num dos posts já mencionados do seu blog, reflete mais a fundo sobre o aniversário e legado do jogo).

Shifter: O próprio nome [ZA/UM] indica que vocês tinham uma missão, uma intenção de abrir a tampa para algo novo. Achas que foram bem sucedidos? Vêem-se a vós próprios como algum tipo de pioneiros? 

Martin Luiga: Bem, não tínhamos um manifesto público. O Robert dizia que bandas como Einstürzende Neubauten não têm um manifesto e eram para si as melhores, mas havia, claramente, coisas que estávamos interessados em fazer, como “rumar até ao topo”, “salvar a cultura da URSS”, “transpor alguns formatos modernos online para a língua estónia”, etc. Bem, sim, fomos de alguma forma pioneiros. Não havia realmente mais ninguém a fazer qualquer tipo de movimento cultural [na Estónia]. Claro que sem antecedentes e nenhum outro movimento cultural, alguns jovens sem instrução que fazem uma organização de cultura comunista parece algo gangster, e sociologicamente é precisamente isso: um mecanismo de sobrevivência psicológica. 

Mas também observámos, quer no comunismo quer no jogo, que se tratava de preservar algo. E, claro que uma das melhores formas de preservação é construir com base na tradição. Só que nós apenas decidimos preservar outras coisas que não eram geralmente a norma. A minha querida mãe, entretanto, disse na televisão que a sua família era inteiramente comunista, isto enquanto escritora condecorada. Ela fê-lo porque víamos os poderosos a tentar “apagar a existência” de estónios que eram ideologicamente comunistas. 

Shifter: Como foi criada a ZA/UM? E porquê o nome ZA/UM?

Martin Luiga: A ZA/UM (movimento cultural) foi acordada e fundada em 2009 com um blog já defunto. Era suposto servir para enviar um sinal para pessoas com as mesmas ideias que nós, para aprimorarmos as nossas várias capacidades. Como com qualquer obra humana, pode ser vista tanto como um sucesso e um falhanço. O nome ZA/UM deriva dos antigos futuristas russos.

[Enciclopédia: ZAUM era um grupo que pretendia romper com todas as definições e significações linguísticas, procurando, por assim dizer, transcender o sentido das palavras. Para uma explicação mais detalhada, recomendamos a leitura de “ZAUM: The Transrational Poetry of Russian Futurism”, de Gerald J. Janecek. Poderão ler a introdução aqui]

Shifter: Como era a dinâmica da ZA/UM inicialmente? O que fizeram vocês durante os primeiros anos? 

Martin Luiga: No primeiro ano não fiz muito. Éramos, em grande parte, rapazes a escrever em blogs sobre coisas que achávamos interessantes. No segundo ano parecia que o blog ia morrer, e de repente passei para secretário, comecei a publicar bastante e a apertar com os outros para publicarem também. 

Eu e o Robert éramos os representantes ideológicos da coisa; Ruudu, a minha namorada de então, era a super-anfitriã responsável pela maioria das festas e a fotógrafa residente; Rostov era o artista residente e o perito/connoisseur de jogos indie… assim eram os bons velhos tempos. Fizemos um blog, organizávamos festas, fazíamos algumas exposições, finalizámos o Sacred and Terrible Air, a minha mãe tornou-se escritora… de facto ela escreveu um relato fictício dos primeiros anos de ZA/UM que pode ser encontrado aqui como audiolivro em série — ainda não está completo e ainda não foi publicado em inglês. A narrativa é situada numa Polónia falsa, e não é especialmente dirigida aos fãs de Disco Elysium, já que foi escrita antes do jogo ficar conhecido. No entanto, parece ter qualidades adequadas o suficiente, já que o livro acabou com o prémio de literatura da União Europeia atribuído. Na minha opinião o prémio é completamente inútil, mas significa algo, muito provavelmente que a minha mãe é de alguma forma intuitivamente boa a política — Deus sabe que ela não está a tentar.

Shifter: Estás creditado como Editor de Disco Elysium. Quais eram as tuas responsabilidades? 

Martin Luiga: Honestamente, acho que os créditos estão totalmente errados. Acho que deveria ser creditado como “escritor”, Robert como “escritor e editor”, dado que ele leu e editou todo o diálogo que não era dele. Kaur Kender devia ser creditado como “editor”, tendo lido todo o diálogo do Robert e feito sugestões. Não editei nada no jogo, mas sim o livro de Robert [Sacred and Terrible Air].

Shifter: Kurvitz disse numa entrevista que muitos membros da equipa de desenvolvimento saltaram entre papéis, com designers e programadores a participar no desenvolvimento do guião, por exemplo. Isso é relativamente incomum na indústria, onde pessoas, mesmo tendo vários papéis, costumam manter-se no seu território. Como era isso?

Martin Luiga: Bem, não é propriamente difícil escrever diálogo. Escrever diálogo no jogo também envolvia programar dado que usávamos Booleans, e tínhamos membros da equipa de escrita que sabiam programar e vice-versa. Durante o meu tempo na empresa, não saltei muito entre papéis. Fiz algum trabalho de edição, sim, mas não o suficiente para ser creditado como “editor”. 

Shifter: Disseste numa entrevista que o incentivo inicial para criar Disco Elysium veio de Kaur Kender por volta de 2014 ou 2015. Antes disso, será que a ZA/UM alguma vez pensou o mundo de Elysium em formato de videojogo? Porque acharam que era o meio adequado? 

Martin Luiga: Bem, nós na ZA/UM éramos todos grandes fãs de cRPGs, até a minha mãe. O Robert tinha pensado em fazer filmes ou desenhos animados. O sistema original do jogo foi concebido como um RPG de papel e caneta, pelo que foi um salto que no passado já tinha sido feito várias vezes, de um sistema PnP (caneta e papel) para um cRPG. Mas também poderia ter sido feito melhor. Pelo menos, eu fiquei um pouco insatisfeito com o renascimento dos RPGs de computador dos anos 2010.

Shifter: A teu ver, de que forma foi Disco Elysium um sucesso comparado com outros?

Martin Luiga: Penso que fomos bem sucedidos enquanto literatura, mesmo. De uma forma que só os jogos Fallout 1 e 2 e Planescape Torment tinham sido antes. Também o combate maioritariamente não letal foi, na minha opinião, um forte passo em direção ao realismo. Mas eu sou um certo tipo de purista de histórias e também alguém que espera um progresso por alguma razão. O primeiro Baldur’s Gate foi um jogo épico para o seu tempo, mas se nos dias de hoje fosse feito algo igual, deixaria muito a desejar… basicamente, um homem enviesado é enviesado. 

Shifter: Harrier Du Bois é um personagem com o qual imediatamente empatizamos, quase como um Sísifo, um personagem caótico e entrópico que subsume à sua rotina. Por outro lado, Kim Kitsugari é o homem da razão, uma espécie de bússola lógica e moral do Harry. Poderíamos dizer que é uma relação dialética, de uma forma totalmente holística. Como vês esta relação, não tanto em termos clássicos de buddy-cop, mas mais na forma como isso vem a refletir a cidade de Revachol e a nossa realidade?

Martin Luiga: Bem, em retrospectiva, Robert disse que Disco Elysium era um jogo moralista — isto de forma depreciativa. O que significa que também se trata de um jogo dominado pelo Kim Kitsuragi. Isto faz sentido dado a pontuação de Autoridade, atributo dominante em Kim.

(Autoridade: Podem crer. Nada a acrescentar.) 

Observando o nosso mundo, é claro que se trata de uma justaposição de dois destinos desgraçados diferentes. Dois tipos diferentes de workaholics condenados. É evidente que o destino do mundo não depende destes dois nem das ideologias que eles representam. A propósito, aqui está um belo tweet que de certa forma ecoa a transformação de Kim como moralista face a uma ideologia diferente, do mundo real:

[Enciclopédia [tradução]: “Enfatuação ideológica é tipo dizer ‘o Stalin não fez nada de errado’, enquanto usas um fato revestido de bandeiras soviéticas, em vez da versão mais sombria e inteligente, que é dizer ‘o Stalin não fez nada de errado’ como uma reflexão dele ter dado o seu melhor, não ter sido suficiente, e agora vamos todos morrer.”]

O moralismo não diz a última parte em voz alta, claro.

Shifter: Portugal, tal como a Estónia, encontra-se abaixo do nível de desenvolvimento médio europeu. Uma das consequências lógicas que daí advém é um incremento no consumo de substâncias psicotrópicas, em particular o álcool. O jogo tem várias personagens dependentes das mais variadas substâncias, usando-as como forma de escape dos seus problemas — o jogo até arranca com o protagonista a acordar com amnésia após um quasi-coma alcóolico. Vêm o vício como um sintoma da alienação pelo capital? 

Martin Luiga: Bem, eu acho que todos os vícios são “co-sintomas” de outras enfermidades psicológicas e cuja abundância deriva desta era que certamente é a mais “disciplinada” da história do mundo — ou seja, as condições de vida em geral não são nada propícias ao animal humano. Não querendo valorizar as eras anteriores, claro. Perdem-se coisas tal como se ganham, o animal humano está num perpétuo desequilíbrio. Mas podemos certamente imaginar condições menos extenuantes que aquelas que temos, e a maior parte daquilo que ao longo do tempo fomos imaginando conseguimos concretizar. 

Shifter: O Fasmídio no final do jogo…

(Enciclopédia: Fasmídeos são um tipo particular de inseto com uma camuflagem característica que lhes permite misturar-se com a vegetação, nomeadamente galhos e folhas. Em Disco Elysium, diz a lenda urbana que um fasmídeo gigante habita a zona costeira onde decorre a ação do jogo. Um dos momentos mais icónicos do jogo ocorre precisamente quando o jogador se depara com a criatura e conversa com ela)

…representa uma busca por sentido: para alguns seria a procura pelo próprio Phasmid, para outros a manutenção da ordem vigente ou o comunismo. O que achas que é o nosso Fasmídio coletivo? Achas que alguma vez o vamos encontrar? 

Martin Luiga: Sim, acho que o vamos encontrar. Não sei o que será, penso que se trata de cultura e pensamento, uma mudança qualitativa nesses campos, ultrapassando a forma atual e dominante de produzir sentido.

Há uma canção sobre este assunto:

E uma citação também: “Não esperes o inesperado, não o vais encontrar, pois não é suposto ser encontrado por busca ou rasto.” –  Heráclito

Shifter: Voltando à história do ZA/UM, quando foi esta convertida a empresa? Sentiste alguma diferença na equipa antes e depois? Manteve a estrutura horizontal que tentaram cimentar, ou tornou-se mais hierárquica? 

Martin Luiga: A primeira empresa que foi criada em 2015 para fazer o jogo ainda não se chamava ZA/UM. E ZA/UM nunca foi propriamente uma organização horizontal, era uma organização ao estilo  da revolução Nestor Makhno ou em Yo el Supremo, embora eu quisesse que fosse uma organização horizontal, isso teria exigido mais vontade e atividade dos outros membros. 

(Enciclopédia: O ucrâniano Nestor Makhno foi o líder da revolução de Makhnovtchina, uma tentativa de sociedade anarquista e horizontal falhada. Yo el supremo é romance histórico escrito por Augusto Dos Bastos, uma narrativa biográfica sobre José Gaspar Rodríguez de Francia, ditador paraguaio do século XIX.)

Martin Luiga: Penso que o Robert uma vez definiu a ZA/UM como uma organização não-democrática baseada na vontade, embora, evidentemente, todas as organizações tenham uma dimensão democrática na medida em que as pessoas que nelas se encontram têm sempre meios de protesto- especialmente em organizações pequenas onde o poder dos líderes é precário e depende em grande parte de persuadir as pessoas. 

Mas, estruturalmente falando, tornou-se mais empresarial. Para mim, a vibe ficou demasiado má para continuar a trabalhar na empresa. 

Shifter: O que queres dizer com má vibe? Talvez estejamos a entrar em território NDA (acordo de não-divulgação), mas gostaríamos de mais algum contexto, se possível.

Martin Luiga: Bem, eu nunca tinha trabalhado numa empresa antes, por isso pode ser que sejam praticamente todas assim. Durante o início a dinâmica talvez tenha estado desequilibrada, pois ainda ninguém sabia realmente como fazer as coisas e o Robert tinha demasiado para fazer. Já em 2021… bem, eu tenho um NDA sobre isso, mas todos sabemos o que aconteceu no final do ano [o despedimento de Kurvitz, Hindpere e Rostov da ZA/UM].

Digamos que testemunhei a evolução disso. Foi uma atmosfera concebida para obter algo mais do que o trabalho feito.

Shifter: Como é que o colectivo reagiu aos investidores que intervieram? Quando eram um coletivo, mesmo que financeiramente modesto, estavam basicamente livres de quaisquer restrições externas quando se tratava da forma como funcionavam. Mas agora, precisavam do dinheiro e viam-se obrigados a “nadar contra a vossa própria corrente” . Que discussões tiveram? Houve hesitações?

Martin Luiga: A maioria achou necessário para concluir o projeto, e alguns membros pensavam que a ZA/UM já tinha falhado de qualquer forma, com a entrada de Kender, pelo que não havia muito a perder. Ninguém formulou um plano alternativo.

Como cantam os velhos pregadores de Manic Street: “With grace we will suffer/With grace we shall recover.”

(Enciclopédia: “Com graciosidade vamos sofrer/ Com graciosidade vamos recompor-nos.” da música There by the Grace of God.)

Shifter: Circulavam rumores que “Sacred and Terrible Air” teria uma tradução para inglês algures durante 2020. Obviamente, isso nunca aconteceu. Alguma coisa que possas dizer sobre o assunto?

Martin Luiga: Com tudo o que está a acontecer, infelizmente não é uma prioridade neste momento.

Shifter: Perderam os direitos do livro? E do universo Disco Elysium?

Martin Luiga: O que acontecerá com o livro será decidido pela diretoria da empresa, creio. Idem para o universo.

Shifter: O que achas de fãs que possam vir a piratear uma eventual sequela de Disco Elysium

Martin Luiga: Eu acho que a pirataria é, na verdade, uma forma de promoção. Eu venho de uma cultura que é muito a favor da pirataria, apesar de já ter pago por  cerca de 10 jogos.  Não sou propriamente um gamer. Mas olho para o Pirate Bay como uma biblioteca pública…e não vejo a pirataria a matar a indústria, os jogadores estão em geral muito dispostos a recompensar o que amam, se for possível. 

Shifter: Mais alguma coisa que queiras dizer sobre esta situação que talvez não tenhas mencionado até agora?

Martin Luiga: Tõnis Haavel, um dos produtores executivos de Disco Elysium e atual diretor de toda a produção no estúdio ZA/UM é um criminoso comprovado. Aliás, foi a primeira pessoa a ser condenada por fraude fiscal na Estónia. Muitos na empresa nem sequer sabem o nome dele, usando o handle “Denis Havel” nas comunicações internas. Soube também recentemente que Kaur Kender, o produtor executivo e CCO (chief creative officer), tem estado de “baixa médica involuntária” desde Agosto, o que significa que atualmente Haavel tem total controlo da companhia.

Shifter: Como não implodiu a empresa depois dessa revelação? Estavam vocês (refiro-me a principal força criativa da ZA/UM) cientes de quem ele era quando apareceu? Porque estava o Kaur Kender okay com isso? Foi ele quem o trouxe?

Martin Luiga: Sim, foi o Kender quem o trouxe. 

Nunca estive muito perto do  dinheiro. Penso que o Sr. Kender seria o melhor a responder porque é que não se importava que ele interviesse. Penso que a empresa não implodiu porque o envolvimento do Sr. Haavel estava suficientemente bem escondido, e na Estónia as pessoas estão mais distantes de assuntos como este. A acumulação primitiva de capital foi apenas há algumas décadas atrás, quando o estilo de barão-ladrão ainda era o habitual. Algumas pessoas mudaram, de facto, com o tempo, outras menos. É também uma coisa que acontece com as pessoas que são alvo de algum tipo de preconceito: podem ficar demasiado desprovidas deste para o seu próprio bem. 

Shifter: Continuarás a criar, sozinho ou com pessoas do colectivo? Caso continues, tencionas explorar outros géneros e outras formas de arte?

Martin Luiga: Continuarei a criar, e penso que os outros também o farão. Resta saber se vou voltar a trabalhar em videojogos, e com quem. Atualmente, estou a fazer colagens digitais, remixes de músicas e também a escrever um tratado político.


O sentimento que ficou após a conversa é duma esperança miúda e teimosa, por um futuro em que Disco Elysium poderá retornar às mãos dos talentos que o conceberam. O percurso histórico do jogo e da ZA/UM encapsulam na perfeição a constante tensão entre a expressão artística e os inevitáveis constrangimentos que o corporativismo financeiro lhes impõe. Com a situação no seu estado corrente, Disco Elysium tornou-se, talvez da pior forma imaginável, uma obra de maior urgência, uma obra de total intemporalidade. 

Fazendo nossas as palavras de Luiga: Revachol Para Sempre.

Após a entrevista, o caso sofreu uma série de desenvolvimentos:
Soube-se que Kurvitz instaurou um processo contra a ZA/UM, no qual batalhará pelos direitos do universo Disco Elysium.

Luiga partilhou uma noticia que confirma o despedimento de Kaur Kender, deixando assim Tõnis Haavel e Ilmar Kompus, elemento até então desconhecido no caso, como atuais líderes da ZA/UM.

No mesmo dia, Robert Kurvitz e Aleksander Rostov lançaram um comunicado conjunto sobre a situação, onde acusam Tõnis Haavel e Ilmar Kompus, donos da empresa estona Tütreke OÜ, de comprarem uma maioria nas ações da ZA/UM com o dinheiro da própria empresa. Sucedeu-se um takeover agressivo da organização que, com a ajuda de Kaus Kender, resultou no despedimento de Kurvitz, Rostov e, assume-se, Helen Hindepere. 

Poucas horas depois deste comunicado, saiu uma reportagem na GameIndustry.biz onde a direção da ZA/UM acusou Kurvitz e Rostov de abusos verbais a membros da equipa de desenvolvimento, e de tentarem roubar propriedade intelectual da empresa. 

Foram revelados os primeiros desenvolvimentos do processo em tribunal. Sabe-se pela primeira vez que Kurvitz e Rostov ainda detêm uma percentagem pequena da ZA/UM, e Kurvitz tem o direito de bloquear qualquer tentativa de aquisição da companhia. O impasse atual resume-se na seguinte passagem: “Kompus e Haavel querem vender os direitos [de Disco Elysium], mas, como Kurvitz pode bloquear qualquer tipo de negócio, eles não são capazes de o fazer. Do outro lado, Kurvitz, que trabalhou durante duas décadas na criação deste universo tão rico, já não poderá trabalhar nele porque os direitos residem com a ZA/UM UK.”

Índice

  • Duarte Cabral

    Tem 26 anos, tirou o mestrado em Engenharia Informática e de Computadores e trabalha atualmente como engenheiro de dados. A sua real paixão reside nas artes, nomeadamente no cinema, literatura, e videojogos. Planeia eventualmente aventurar-se na área de cinema, mas até lá contenta-se a escrever sobre tudo aquilo que o inspira.

  • Luís Duarte

    Tem 19 anos é estudante de filosofia no Porto. Interessado na transversalidade/pós modernidade da literatura e no cinema. Pretende eventualmente, superando o forte sentido autocrítico, aventurar-se na escrita de ficção.

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