Adam Tooze: “Estamos muito, muito longe de ver a Bitcoin desafiar a hegemonia global do dólar”

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Adam Tooze: “Estamos muito, muito longe de ver a Bitcoin desafiar a hegemonia global do dólar”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Adam Tooze, um dos mais conceituados historiadores económicos da actualidade, em entrevista sobre o papel das cripto no mundo, a garantia da moeda fiduciária e o futuro da política da moeda.

Um dos intuitos do The Crypto Syllabus é, gentilmente, incentivar os intelectuais públicos a levarem as cripto e as tecnologias que lhes estão associadas (como as blockchains) mais a sério. Nesse aspecto, Adam Tooze, um dos mais conceituados historiadores económicos da actualidade, não precisou de um empurrão da nossa parte: em Março de 2021, já tinha escrito um pequeno ensaio sobre criptomoedas para a sua excelente newsletter, Chartbook

Uma das coisas mais interessantes na entrevista que se segue, é a crítica de Adam à crença, partilhada por muitos cripto-entusiastas, de que a moeda fiduciária não é garantida por nada. Como observador veterano das recentes crises financeiras, Adam está bem posicionado para notar o papel que a macrofinança desempenha na garantia das moeda fiduciárias tal como as conhecemos. Como diz mais abaixo, “O que garante a moeda é o gigante aparato da macrofinança. Não é garantido por “tudo” mas por “todos”, ou talvez devamos dizê-lo de forma mais precisa, por “todos os que são alguém”. 

Esta afirmação aponta para um tipo de formalismo unidimensional, que já tinha reparado noutros discursos à volta das cripto. Estas tecnologias apresentam soluções para deficiências institucionais e problemas de vários tipos. Contudo, a sua visão das instituições que criam esses problemas é excessivamente simplista, baseada em interpretações excessivamente literais de conceitos formais (exemplo “fiduciário” = “não atrelado”; “governança” = “voto”; “instituições” = “entidades com um organograma“; “lei” = “contratos”). Talvez, olhar para a História — a área de especialização de Adam —  com um olhar detalhado e atento seja a forma de preencher estas lacunas analíticas.  

EM: Antes de mergulharmos nos detalhes, talvez possa fazer um breve resumo de como interpretar as criptomoedas e qual a sua importância política e económica numa perspectiva mais ampla. São moedas? Porquê ou porque não?

AT: De forma simples, do ponto de vista funcionalista, podemos definir que o papel da moeda reside numa combinação de três fatores: meio de pagamento, reserva de valor e unidade de conta. Nesse sentido, em determinados círculos, algumas pessoas começaram a atribuir preços a bens e serviços em criptomoedas — NFTs, objetos de arte digital, etc. — e nesse caso as criptomoedas estão a servir, de alguma forma, como unidade de conta. Mas as cripto não são uma forma particularmente útil de unidade de conta dado que o seu valor, medido em relação a outras unidades de conta, flutua bastante, o que também as torna uma má reserva de valor(a não ser que alguém tenha uma preferência por apostas especulativas) e torna improvável que se tornem um meio de pagamento amplamente aceite. (Durante um período de subida, o risco é que, ao usar cripto, estejas a subestimar os seus tokens. Em períodos de queda dos preços de cripto, só um comerciante com alta tolerância ao risco as aceitaria como forma de pagamento, a não ser que as receba a uma cotação acima do mercado). 

Se abandonarmos a perspectiva funcionalista da moeda e, ao invés disso, focarmo-nos no papel da moeda como forma de construir comunidades, fundar entidades políticas, etc, as cripto claramente têm ganho aceitação em certas comunidades, ajudando a moldá-las e construí-las. Então, a pergunta é: Quão estáveis, robustos e difundidos são estes grupos sociais que se organizam em torno das cripto e/ou quão poderosos são os seus oponentes?


EM: Numa das suas newsletters, em Março de 2021 – a sua primeira incursão pública na análise das cripto – parafraseia Gramsci ao escrever que “As cripto são um sintoma mórbido de um interregno, um interregno em que o padrão ouro está morto mas onde uma moeda totalmente política, digna desse nome, ainda não nasceu. As cripto são uma criação libertária do condenado esforço neoliberal para despolitizar a moeda.” Poderia desenvolver um pouco como é que uma “moeda totalmente política” poderá parecer, talvez contrastando como a moeda que existe hoje? 

AT: Devo admitir antecipadamente que a ideia de uma “moeda totalmente política” não é nada mais que uma aspiração, um telos, uma direção. De facto, pode perguntar-se se podemos viver com algo que é “totalmente político”. No final de contas, a nossa política desvia-se frequentemente para actos fundamentalmente anti-políticos, não muito diferentes de quando tentamos ver a moeda no ouro, a independência nos bancos centrais, ou uma regra de política monetária mecanizada, ou um algoritmo. 

Nesse sentido, concordo em absoluto com o meu amigo Stefan Eich quando diz: “sempre existiram pronunciamentos históricos acerca da fragilidade da moeda fiduciária, mas… no fundo, podemos olhar para essas vozes como parte da política da moeda”. A política da moeda contém uma tensão anti-política.

No final de contas, o mesmo acontece com o Direito, que penso ser o mais próximo que temos de uma arquitetura totalmente política de uma organização social. No limite, e com bastante frequência, as estruturas legais tentam ancorar-se em fundações mais sólidas do que aquelas que lhe foram garantidas por acordos sociais mais ou menos aceites e deliberados. As constituições recorrem a deus, ou à natureza, para basear a sua legitimidade. Talvez não consigamos fazê-lo sem estes gestos. Mas é para aí que eu aponto: a possibilidade de nos organizarmos em torno de uma moeda que é aceite pelo aquilo que ela é, ou seja, um sistema de convenções que resultam de interações políticas e sociais complexas, parte da constituição material da sociedade, incluindo os seus aspectos mais negativos.

EM: Entendo o que diz sobre a influência neoliberal nas cripto e as ligações que se podem identificar com uma visão Hayekiana mais ampla de desnacionalizar a moeda, que Stefan Eich relata, de forma brilhante, no seu ensaio e próximo livro. Mas eu considero que existe uma segunda fonte de legitimidade – pela esquerda – por vezes menos visível mas talvez mais importante do ponto de vista ideológico nos projectos cripto, que é frequemente ignorada por vários críticos. Há décadas que a ideologia a que podemos chamar de “localismo” capturou o imaginário da esquerda, em especial das correntes que olham de forma bastante favorável para o legado comunitarista do início do anos 70: pessoas que celebram cooperativas, bancos de horas, e inevitavelmente, moedas alternativas e complementares (estou a pensar no livro Money and Liberation do Peter North).
Não diria que estes movimentos criticam o estado exactamente da mesma forma que os neoliberais; eles queixam-se de estruturas hierárquicas, rígidas e burocráticas – mas é sobretudo uma crítica humanista e não económica. Muito disto passa sob a bandeira da “economia solidária” ou “economia alternativa”, e não é muito difícil ver como isto se encaixaria numa concepção de uma sociedade pós-capitalista mais descentralizada, mais autónoma, e, talvez, mais democrática. Para começar, a maioria destas “economias alternativas” funcionam com tokens – por isso, uma viragem para cripto é natural. Eu próprio sou crítico destas tendências localistas, visto que as considero incapazes de oferecer um contraponto a organizações como a BlackRock ou Amazon. Contudo, consigo facilmente ver como é que as cripto lhes permitem reavivar várias das iniciativas utópicas e apresentá-las de uma forma muito mais inovadora. O que pensa destes esforços em geral? A “moeda totalmente política” que defende deve ser global, em vez de local, nesta perspectiva? As pessoas que procuram encontrar usos locais para as cripto estão a viver num mundo da fantasia — não muito diferente do consumo ético?

AT: De facto, eu tenho muita simpatia por esse tipo de projectos de moeda local. No final de contas, eles reconhecem explicitamente o projecto social, ou contra-projeto, onde estão incluídos e eu acabo por simpatizar mais com a sua política do que com a dos libertários e anarco-capitalistas. Se pensarmos naquilo que uma moeda totalmente política envolve, não podemos fugir de considerações políticas. É isso que torna a ideia tão desconcertante. Se a moeda é um mecanismo de organização colectiva, os propósitos do projecto coletivo são antes de tudo o que importa. Aquilo que lamento nas visões localistas não é o localismo em si mas a ideia que o localismo deva estar ligado a um movimento fundacionalista, isto é, algo que não faz parte da comunidade, mas fora dela. 

Alem disso, até moedas locais irão necessitar de política monetária. Como um bom Keynesiano, nunca irei esquecer a análise do Paul Krugman sobre uma comunidade de babysitting e a armadilha de liquidez que a Capitol Hill Babysitting Co-op sofreu. Promessas de pequena escala não escapam da política. E isso não deve ser considerado uma maldição mas o seu oposto, uma oportunidade para a aprendizagem através da prática e experimentação coletiva. Essa é outra forma de colocar a questão essencial. A política monetária não é uma maldição a ser eliminada por mecanismos não-políticos, algoritmos, mas uma oportunidade de expandir o alcance da nossa política e auto-organização colectiva.

No plano de fundo da verdadeira crença, do pensamento cripto, está algum modelo de colapso social gerado por políticos irresponsáveis.

EM: O novo campo da “criptoeconomia” parece ignorar o nível macroeconómico e focar-se meramente em colocar o Homo Economicus a comportar-se melhor através de melhorias no desenho de incentivos… Se alguém for escrever a história intelectual da criptoeconomia vai ser quase exclusivamente dominada por mecanismos/design de mercados e teoria dos jogos; a não-existência de macroeconomia está presa numa negação algures entre os extremos (todos na extrema direita) de alguém como Murray Rothbard e os seus oponentes libertários que pregam o sistema bancário livre. Esta ignorância sobre a macrofinança é baseada em premissas que parecem erradas sobre a natureza da moeda fiduciária — de que esta não é garantida por nada… Poderia dizer-nos, porque é que, na sua opinião, a cripto-critíca comum da moeda fiduciária comete um erro ao ignorar a forma como as estruturas da macro-finança na verdade garantem, por exemplo, o Dólar americano? 

AT: Bem, é uma percepção vertiginosa, não é? A moeda não ser garantida por “nada”. Ano após ano, surpreendo muitos alunos universitários inteligentes com essa realidade. Há sempre uma minoria significativa que se agarra de alguma forma a uma certa versão do padrão ouro. Eles de facto acreditam que quando alguém “entrega uma nota ao banco central”, recebe algo em troca. Não é uma ideia fácil de abandonar. Não é diferente do sentimento instável que é gerado ao perceber que a língua não é “garantida” por nada. Nós estamos habituados a soluções para este problema. Criamos objetos físicos que podem ser usados como uma referência para uma palavra, uma definição, uma norma, etc.

Mas depois também acho que não é difícil reverter a corrente de ceticismo e niilismo e simplesmente respondo: “Não. A moeda não é  garantida por “qualquer uma coisa”. É muito melhor que isso. É garantida por “tudo”. O que garante a moeda é um gigante aparato de microfinança. Não é garantido por “tudo” mas por “todos”, ou talvez devamos dizê-lo de forma mais precisa, por “todos os que são alguém”.” Ou, se fores na direcção das teorias de Estado sobre moeda, podes acrescentar, e o que realmente importa, é que é “garantida pelo único poder importante”, ou seja, que tem poder de coerção.  

Geralmente isso induz uma sensação de relaxamento. “Ah, sim…”

Mas se isto é uma caracterização justa do lado emocional da política da moeda, também é um diagnóstico. No plano de fundo da verdadeira crença, do pensamento cripto, está algum modelo de colapso social gerado por políticos irresponsáveis, quer sejam democráticos ou autoritários. Esta é uma linha de pensamento que remonta, pelo menos, aos teóricos da modernidade, do século 18, como Hume e outros. O melhor (verdadeiramente profundo) livro sobre isto é do Mike Sonenscher, Before the Deluge.

Não é por acaso que nas teorias da dívida soberana falamos de “pecado original”, isto é, a habilidade do soberano de incumprir as suas obrigações sem ser penalizado de forma severa. O medo da moeda fiduciária esconde o medo do pecado original. E no mundo secularizado e moderno espreita nesse espaço o medo da famosa abertura do “político” como foi diagnosticada por Lefort, Gauchet, e outros.

EM: Entrevistámos Andres Arauz, ex-ministro do Equador que se candidatou nas eleições presidenciais do ano passado. Um dos pontos que ele fez em relação a Bitcoin e outras criptomoedas é que elas corroem, de certa forma, o poder negocial do FMI e dos Estados Unidos, bem como o domínio de sistemas de pagamento como o SWIFT (que frequentemente é utilizado como ferramenta de negociação, como tem sido visto na guerra entre Rússia e Ucrânia). Se os activos cripto subjacentes são desenhados e promovidos por ferozes libertários, há uma leitura benevolente a ser feita relativamente às cripto, como uma forma de ajuda não intencional a forças anti-sistémicas, muitas delas de esquerda, principalmente nos Estados Unidos?

AT: Presumivelmente, quereríamos distinguir diferentes tipos de efeitos anti-sistémicos e também questionar que tipos de novos riscos sistémicos e novas hierarquias de poder poderiam emergir num mundo em que a criptografia fosse mais proeminente. A emissão de moedas digitais, através dos Bancos Centrais, ou a criação de alternativas ao SWIFT podem de facto ser parte de uma estratégia de soberania. Seria uma atualização da estratégia de soberania economia para a era digital. A nível global, estamos muito, muito, muito longe de ver a Bitcoin et al. desafiar a hegemonia global do dólar ao ponto de se poder falar de riscos sistémicos mais amplos. E é de prever que os reguladores as reprimam antes de chegarmos a esse ponto. Entretanto, vários tipos de activos atrelados a cripto geram as suas próprias hierarquias, e os seus riscos de instabilidade financeira e, portanto, sua pressão financeira.

EM: Relacionado com isso, como avalia a decisão de El Salvador de emitir Volcano Bonds [obrigações do tesouro em bitcoin]? Existe uma grande variedade de opiniões sobre o assunto. Sendo novamente benevolentes, como poderíamos dizer que a tentação de Varoufakis em criar uma moeda digital na Grécia foi uma tática inteligente de negociação com a Comissão Europeia, mas a tentação de Bukele em emitir obrigações em Bitcoin não é? Condenaria ambas as estratégias como populistas e irresponsáveis? E se a postura de Bukele o ajudar a conseguir condições mais favoráveis do FMI?

AT: Uma moeda digital de um Banco Central, ou uma moeda digital apoiada em títulos do tesouro, é totalmente diferente de uma situação em que um pequeno e vulnerável país embarca numa moda, e investe num veículo volátil de especulação privada, que é o que a Bitcoin é actualmente. Porque é que faz sentido El Salvador, dada a sua alta necessidade por infraestrutura, endividar-se em mil milhões de dólares, se metade do valor será investido num activo (bitcoin) cujo valor face ao dólar flutuou desde da primavera de 2020 num factor de quase dez? Irá acabar com 500 milhões, 5 mil milhões, ou nada? Só uma situação de desespero justificaria tal aposta. Não é surpreendente que mercados tenham reagido à notícia com vendas de títulos de dívida Salvadorenhos em dólares. Existe um risco real de danos colaterais associado a isto.

A nível global, estamos muito, muito, muito longe de ver a Bitcoin et al. desafiar a hegemonia global do dólar ao ponto de se poder falar de riscos sistémicos mais amplos.

EM: É comum ouvir que o surgimento das cripto é uma consequência direta da crise financeira de 2008, um tema sobre o qual tem escrito extensivamente. Por um lado, dado o ambiente de taxas de juro historicamente baixas, e por vezes mesmo negativas, investir em Bitcoin ou Ethereum parece ser uma forma de obter retornos numa economia que deixou de funcionar para investidores de retalho. (Não estou a dizer que acho este argumento convincente, visto que se estes investidores estão a perder dinheiro em obrigações, podem recuperar com investimentos em acções ou através de ETFs. No entanto, este argumento é utilizado com frequência). Por outro lado, dado o ambiente de desconfiança no sistema financeiro, pós-Occupy Wall Street e pós-Tea Party, é natural que as pessoas fossem aceitar a ideia de uma moeda que não requer confiança, onde todo o processo político é feito através de blockchain. Como tal, o apelo mainstream das cripto é um barómetro útil para medir a desconfiança face aos bancos centrais e Wall Street. A não ser que haja um colapso das cripto, pensa que existe uma forma de retornar aos tempos pré-2008, onde a confiança nas instituições públicas e no sistema financeiro era mais alta? Podemos dizer que os recentes programas de assistência financeira em resposta à Covid – uma forma de crescente pilhagem neo-feudal, de acordo com Robert Brenner – apenas reforçam este ambiente de desconfiança e agora não há um caminho de volta? Poderiam as CBDCs [Moeda digital do Banco Central] restaurar de alguma forma a confiança do público?

AT: Eu não discordo desse diagnóstico geral. Todo o tipo de sintomas mórbidos estão a aparecer, por isso o apelo da famosa citação de Gramsci. No entanto, devemos analisá-los e contextualizá-los. São sintomas mórbidos, restritos a uma pequena minoria mas bastante vocal, particularmente vocal no espaço tech/social media, que por isso capta muita atenção. Para uma explicação mais geral, se analisarmos as estatísticas de confiança no Fed [Banco Central dos Estado Unidos], o colapso nos níveis de confiança não acontece em 2008 mas sob a gestão de Greenspan, depois da bolha das tecnológicas.

E na Europa, apesar do pesadelo da crise da Zona Euro em que o BCE foi em grande parte o responsável, a confiança nas instituições da Zona Euro é relativamente alta. Discuti alguma da mais recente investigação nesta área na minha newsletter (Chartbook #62). Vemos notáveis níveis de confiança no BCE por toda a Zona euro, e surpreendentemente nos países de moeda forte do Norte da Europa, onde talvez fossem esperadas tendências anti-fiduciárias. Indo a um dos pontos anteriores, discordo da visão simplista de Brenner sobre a resposta à crise de 2020. Eu apresento a minha interpretação alternativa de forma extensiva no Shutdown. Mas isso é um assunto para outra altura.

EM: Há vozes na esquerda que insistem que a democratização da finança, sintetizada no surgimentos de aplicações como o Robinhood (e, até certo ponto, várias infraestruturas e activos cripto) é algo que progressistas devem explorar, em vez de condenar. Isto liga-se, de certa forma, com os esforços de longo prazo de aumentar o papel dos trabalhadores nas decisões de investimentos dos seus fundos de pensões; ter os cidadãos da Noruega mais activos em moldar as actividades do fundo soberano deste país; etc. Podemos imaginar que, em vez de investir todas estas cripto riquezas em NFTs, organizações progressistas podem, de fato, formar os seus próprios veículos de forma a contribuir para causas progressistas e também, garantir que existem outros critérios – para além da rentabilidade – considerados pela cabala que são as principais agências de ratings do mundo. Alguns intelectuais e académicos – estou a pensar em Michel Feher e Robert Meister – fizeram este tipo de argumentos no passado. Acha que isto seria um projecto viável, em especial considerando o que já está a ser feito no espaço ESG [Critério de rating com base em critérios ambientais, sociais e de governança] e a “viragem social” por empresas como a BlackRock e Vanguard? O que eu acho interessantes com algumas destas  propostas é elas não defendem a filantropia – fazendo retornos financeiros através de fundos de cobertura, distribuindo posteriormente através de fundações, a forma como Soros tem feito – mas eles de facto pretendem fazer dinheiro através dos mercados financeiros e posteriormente usá-lo para batalhas políticas que são disputadas dentro do próprio sistema financeiro. Qual a sua opinião?

AT: No Shutdown descrevo a malta do Robinhood como aqueles que na primavera de 2020 “juntaram os pontos”. Ao invés de esperar por uma política monetária radical, com uma expansão monetária popular [People’s quantitative easing], utilizaram os cheques que receberam no programa de estímulo económico e colocaram-nos nas bolsas, que se valorizaram devido às políticas do Fed. Existe um argumento a favor de se investir uma maior proporção de fundos de pensões nos mercados accionistas, precisamente para garantir maiores retornos. O risco é obviamente que se torne uma privatização para gestores de fundos privados excessivamente bem pagos. 

Uma solução são os fundos indexados. Contudo, este tipo de investimento público é precisamente o que os fundos soberanos fazem. Pode até argumentar-se em fazer este tipo de apostas de forma alavancada. Não seria necessário esperar que o fundo acumulasse capital antes de especular. “Apenas perdedores fazem isso”. Contrair crédito, com base em futuras contribuições, e investi-lo. O que precisas, naturalmente, é uma rede de segurança, cobertura, todos mecanismos de segurança habituais. Mas, sejamos claros, todo o sistema universitário norte-americano — em que muitas das pessoas que participam neste debate ganham a vida — operam nestes princípios. O que é que as pessoas pensam que sustenta as bolsas de luxo e as condições na escola de pós-graduação nos EUA? Nos círculos das escolas de elite, tanto públicas como privadas, é, até certo ponto, os retornos gerados pelos seus fundos patrimoniais, que são geridos da forma que descreveu. É uma relação recíproca. O fundo patrimonial de Yale é um dos fundos mais bem avaliados por investidores. Eles têm acesso a oportunidades exclusivas de activos não convencionais, como os fundos de capital privado, etc. E, se acreditarmos, na Coindesk, Harvard, Yale, and Brown estão a comprar cripto.

As Moedas Digitais de Bancos Centrais talvez sejam interessantes, precisamente porque oferecem mudanças no sistema financeiro existem, não através de entidades privadas (como as cripto) mas por via de uma entidade pública. 

EM: Pensa que o crescimento das cripto pode, paradoxalmente, reforçar o papel da China no mundo? A China tomou medidas drásticas para regular as criptomoedas; introduziu rapidamente a uma moeda digital estatal, o e-yuan. Anteriormente, moveu-se de forma muito agressiva para regular a FinTech e o sistema de pagamentos digital. Com certeza que a sua economia tem os seus problemas, que se tornaram evidente no caso da Evergrande, mas no cômputo geral, parece estar a dar passos para limitar a sua exposição a um eventual colapso dos mercados cripto, mas também para ganhar liberdade em termos de política monetária por parte do estado: a China não quer partilhar a sua soberania com a Alibaba, muito menos com Bitcoin ou Ethereum. Acha que esta estratégia vai eventualmente acabar por se justificar? E o que pensar de Moedas Digitais dos Bancos Centrais em geral, e o Euro Digital em particular?

AT: Moedas Digitais de Bancos Centrais parecem-me um avanço totalmente lógico do sistema fiduciário na era digital. De facto, tenho dificuldades em entender a diferença entre o que propõem com tanta pompa e circunstância e o que já temos em vigor para grandes transacções. Claramente a China tem como objectivo algo verdadeiramente transparente para o estado e para o regime. No caso chinês, isto é particularmente dramático, não só porque a vontade de controlo do regime é enorme, mas porque o seu sistema bancário, como hoje conhecemos, tem apenas 25 anos. Então, o medo que assombra o Ocidente, que as moedas digitais podem tornar instituições bancárias privadas irrelevantes, tem um caráter mais dinâmico e histórico na China. Talvez a banca comercial seja um breve interlúdio. A preocupação com os lucros do sistema bancário privado incumbente parece ser um dos principais motivos para não avançar de forma rápida na Europa e Estados Unidos. Os bancos irão ameaçar-nos com “preocupações de estabilidade financeira”. Essas preocupações devem ser algo que devemos investigar de forma crítica. As Moedas Digitais de Bancos Centrais talvez sejam interessantes, precisamente porque oferecem mudanças no sistema financeiro existem, não através de entidades privadas (como as cripto) mas por via de uma entidade pública. 

EM: Os EUA e a Europa não são a China e medidas mais drásticas não são tão exequíveis, pelo menos no curto-prazo. Quais as prioridades de regulação que acha que devemos ter e quão fácil será a sua implementação, pelo menos nos EUA, onde se descobriu que alguns senadores responsáveis a regular a indústria cripto eram simultaneamente investidores e traders? Como pudemos ver nas audições de confirmação de Saule Omarova, tanto democratas como republicanos têm muita comichão quando se trata de alguém com uma posição mais adversa em relação às cripto e a Wall Street… Por isso é difícil imaginar as ideias de Robert Hockett em torno do Dólar Digital Democrático a ganhar muita força no Congresso…

AT: Para além da legislação para prevenir o negociação activa por parte de eleitores e funcionários do Fed, a prioridade deve ser garantir que modelos cripto como Tether não geram sérios riscos. Estes modelos são supostamente atrelados a activos. Para todos os efeitos, estamos a falar de bancos híbridos e fundos não agregados, que se parecem demasiado com bancos. Estes modelos necessitam de regulação tão activa e rigorosa como os bancos, até mais dado o seu historial limitado. 2020 demonstrou mais uma vez quão perigosos continuam a ser os riscos no sistema bancário paralelo.

EM: Pensa que descartamos, de forma demasiado rápida, as grandes empresas tecnológicas — como o Facebook, Google e Amazon — quando pensamos no futuro da moeda? Teoricamente, estas empresas detêm mais recursos, conhecimento tecnológico, e já detém redes tecnológicas (e.g. WhatsApp) através das quais podem conquistar mercados de consumo. O Facebook teve um início complicado com a Libra (agora rebatizada Diem) contudo o projeto continua vivo. Mesmo o Parlamento Europeu publicou um relatório, em 2019, afirmando que “as Moedas Digitais de Bancos Centrais sintéticas” — um tipo de parceria público-privada — com empresas como o Facebook poderá utilizar essas stablecoins em troca de acesso às reservas do Banco Central. Considera esta visão plausível, especialmente dado que comparativamente com cripto, as grandes empresas tecnológicas parecem anjos?

AT: As grandes empresas tecnológicas fazem parte de um poder estabelecido, dinâmico e em rápido crescimento. Eu concordo que colocá-las no mesmo grupo de cripto insurgentes não faz sentido. No entanto, pelo mesmo motivo, devemos estar extremamente vigilantes em relação a qualquer projeto que estenda o já imenso domínio de empresas como Facebook, Google e Amazon. Mas eu praticamente não preciso de dar lições a ninguém sobre este tema.

O conceito de Shoshana Zuboff do “Big Brother”, despojado das suas sinistras conotações de Big Brother, não é na realidade uma má forma de pensar sobre o funcionamento do dinheiro em geral. Podemos perguntar, “Se consideras que a moeda que conhecemos não é garantida por nada, porque é que o Facebook está tão interessado? Afinal, o Facebook é garantido pelo o quê?”. Mas permitir que as grandes empresas tecnológicas entrem nesta arena é uma aposta especulativamente arriscada. O seu poder infraestrutural é enorme e só agora é que começamos a entender isso. E o mesmo se aplica à microfinança. Quando se fala em juntar estes dois sectores, estamos a falar num choque de placas tectónicas. Neste momento é difícil estar confiante que temos a capacidade técnica, legal, económica, ou política para regulá-las em separado, muito menos juntas em algum tipo de síntese. 

A convergência pode ser difícil de parar. Talvez tenhamos que permitir que esta aconteça. Mas não podemos descartar opções e não podemos cair num discurso determinista. Há que recordar Larry Summers a desprezar Raghu Rajan, como se ele fosse um ludita, por expressar preocupações relativas à instabilidade financeira. Depois veio 2008!


Traduzido por Guilherme Rodrigues e João Ribeiro

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