Tem havido uma constante luta para atribuir o termo “arte” aos videojogos sem causar um efeito cascata de sobrancelhas erguidas em surpresa. Mas o facto é que está a decorrer uma expansão considerável do espaço para artistas e criadores depositarem as suas experiências, ideias, sentimentos e críticas em algo que assume um formato jogável, consequência do crescimento enorme que o mercado de jogos indie teve na passada década e sistemática evolução de tecnologias de hardware e software.
A verdade é que os jogos sempre despoletam reacções sociais de formas que só se vêm em meios artísticos. Um dos exemplos mais significativos e gravosos disto encontra-se na censura. A história da censura nos videojogos tem uma boa parte da sua origem contida nas preocupações com a violência normalmente empregue pelo meio mas não se fica por aí.
Os Estados Unidos da América têm um famoso historial de repressão a jogos com grande ênfase em armas de fogo, como Grand Theft Auto ou Doom (os dois atiradores envolvidos no massacre ao liceu de Columbine eram assumidos fãs deste jogo); até 2018, a Alemanha obrigava qualquer jogo que contivesse elementos visuais relacionados com o regime Nazi a tê-los omitidos e/ou modificados, com o exemplo mais recente tendo sido a remoção das suásticas e do bigode de Hitler no recente Wolfenstein II: The New Colossus; já a China tende a banir jogos que contenham qualquer elemento que possa ser interpretado como anti-regime, por mais pequenos e insignificantes que estes sejam.
O que todos estes casos partilham é a extrema localidade que normalmente alberga a repressão criativa. Isto é, esta restringe-se às fronteiras físicas, sociais e políticas do país onde é imposta e tende a não derramar para fora destas. É exatamente por isto que não se pode deixar de olhar para o recente caso de censura de Devotion como algo simultaneamente caricato e assustador. O jogo que atualmente não se pode comprar em nenhuma loja online.
Devotion, lançado na plataforma online Steam a 19 de Fevereiro do ano passado, é um jogo de terror psicológico na primeira pessoa desenvolvido pela produtora Red Candle Games, sediada em Taiwan. Utilizando a cidade de Taipei como pano de fundo, o jogo relata a trágica história duma família ao longo da década de 80, através de sucessivas alucinações sofridas pelo patriarca, guionista de cinema caído em desgraça criativa e financeira, que vê o seu relacionamento com a mulher implodir ao mesmo tempo que deposita todas as suas energias e esperanças numa possível carreira musical da sua filha, ainda criança.
Os 12 membros da equipa da Red Candle Games procuraram criar algo que refletisse de forma intrínseca a realidade social vivida em Taiwan durante as suas infâncias e adolescências, marcadas por um excesso de zelo e controlo no percurso académico dos jovens, aproveitados pelos pais para que estes vivam os seus sonhos defuntos de forma vicária e que por vezes recorriam a religiões forjadas para motivar as suas decisões — uma realidade aumentada quase como que por uma lupa, uma experiência de terror imersiva, inspirada pelos sucessos de jogos como P.T. e Gone Home.
Devotion foi altamente aclamado pela crítica especializada, tendo surgido em diversas listas de “Melhores do Jogos de 2019”, e foi bastante aplaudido por jogadores de todo o mundo… menos na China. Embora tenha sido inicialmente bem recebido, a coisa rapidamente virou de figura. Foi então que a página da Steam de Devotion foi bombardeada com uma enchente de críticas negativas, que rapidamente arrastaram a métrica das opiniões de jogadores do “Extremamente Positivo” (95% ou mais dos jogadores gostaram do jogo) para um “Maioritariamente Negativo” (entre 20 a 39% dos jogadores gostaram do jogo). As críticas eram frequentemente acompanhadas por insultos aos criadores do jogo e com apelos à remoção do jogo da plataforma Steam, o único sítio onde o jogo se encontrava à venda. As críticas vinham sobretudo de perfis provenientes da China o que justifica a reflexão sobre as suas motivações.
Em 2017, a China proibiu qualquer uso público da imagem de Winnie The Pooh, após uma série de anos em que bloggers e utilizadores de redes sociais justapunham a aparência do presidente Xi Jinping com a do famoso ursinho amarelo, considerando que tal ato denegria a imagem do seu líder e prejudicava a união essencial à fortaleza da nação, levando até a que o filme Christopher Robin tivesse o seu lançamento impedido no país.
Em Devotion, os jogadores chineses tomaram como ofensa um póster que continha a legenda “Xi Jinping Winnie the Pooh moron” (esta última palavra podendo ser traduzida em português por “tolo”). O escrito foi visto como um insulto direto da Red Candle Games para com o presidente chinês — e acabara por se revelar como apenas o primeiro. O poster em questão representava uma peça de um culto criado no jogo, cujo líder se chamava Lu Gongmin, algo que em chinês se lê como “cidadão do continente [China]”, e que procedia a sacrifícios no dia 1 de Outubro, dia em que na China se celebra a independência.
Também existe a suspeita de as críticas derivarem do tom narrativo do jogo que se opõem implicitamente aos ideais da doutrina confuciana, e retrata de forma negativa ideais encorajados pelo Partido Comunista Chinês. Mas a causa que é apontada como principal no meio desta polémica, deriva precisamente das diversas alusões directas à China — rejeitadas por parte de outros jogadores que acreditam que tudo não passa de uma espécie de teoria da conspiração dando demasiada importância a pequenos detalhes.
Como consequência disto, o jogo foi banido na China, e deu-se o corte de relações entre Red Candle Games e a Indievent, distribuidora chinesa do jogo, que viu a sua licença de trabalho revogada pelo governo por motivos publicamente não divulgados, mas que se julgam diretamente ligados com este caso.
A 25 de Fevereiro, 6 dias após o seu lançamento, Devotion foi totalmente removido da Steam de forma considerada temporária, para que os developers analisassem todos os assets visuais do jogo em busca de conteúdos que pudessem ser vistos como anti-China.
Até hoje, Devotion nunca mais voltou a estar disponível para venda, sendo que a 15 de Julho do passado ano, a Red Candle Games publicou na sua página do Twitter o seu último comunicado em relação a toda a polémica decorrida, nunca mais se pronunciando sobre o assunto. Na mensagem a empresa assume que foi pouco profissional no processo de desenvolvimento do jogo e revela-se arrependida pelo preço a pagar por o que considera ser um pequeno erro num artefacto, reiterando que o seu foco era criar uma experiência de jogo única sobre ‘uma família distorcida pela crença frenética num culto religioso’ mais do que criar secretamente um ‘golpe publicitário’ ou esconder uma mensagem política.
Greetings, we are Red Candle Games from Taiwan. To all of our players, industry and media friends, we would like to provide an update on ‘Devotion’. pic.twitter.com/wfGTUbHtHx
— redcandlegames (@redcandlegames) July 15, 2019
Este é um caso extremamente preocupante para indústria, onde as políticas duma nação tiveram um impacto global num objeto artístico e nos seus criadores, tendo sido encarado com uma passividade chocante pela crítica especializada, o que pode fazer servir de antevisão daquilo que vários criadores — em particular os de cariz independente, sem o apoio dos gigantes da indústria — poderão ter de enfrentar nos anos que se seguem.
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