Terra Queimada: Da Era Digital ao Mundo Pós-Capitalista

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Terra Queimada: Da Era Digital ao Mundo Pós-Capitalista

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O Shifter publica um excerto de Terra Queimada, de Jonathan Crary, crítico de arte e professor de Teoria e Arte Moderna na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.

“Sim, é noite e um outro mundo se ergue. Um mundo cruel, cínico, iletrado, amnésico, que roda sem razão […]. Plano, estendido, como se abolidas a perspectiva e o ponto de fuga […]. E o bizarro é os vivos deste mundo se ancorarem ao mundo antigo […].” Philippe Sollers, citado em Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma

Se é possível um futuro habitável e comum no nosso planeta, esse futuro será offline, dissociado dos sistemas e da actividade do capitalismo 24/7, que destroem o mundo. No que do mundo sobrar, a matriz em que hoje vivemos ter-se-á tornado parte fracturada e periférica das ruínas, das quais talvez possam nascer novas comunidades e projectos inter-humanos. Com sorte, uma breve era digital terá sido substituída por uma cultura material híbrida, fundada em velhas e novas formas solidárias de viver e subsistir. Hoje, diante da crescente derrocada social e ambiental, compreendemos cada vez melhor que o quotidiano, a todos os níveis ofuscado pelo complexo internético, pisou uma fronteira de irreparabilidade e toxicidade. Cada vez mais pessoas, vivendo em silêncio as danosas consequências deste complexo, o sabem ou sentem. As ferramentas e os serviços digitais usados por todo o mundo subordinam-se ao poder das empresas transnacionais, dos serviços secretos, dos cartéis criminosos e de uma elite multimilionária sociopata. O complexo internético é, para a maior parte da população da Terra a quem o complexo foi imposto, motor implacável de vício, solidão, falsas esperanças, crueldade, psicose, endividamento, vida desbaratada, corrosão da memória e desintegração social. Todos os seus apregoados benefícios são irrelevantes ou secundários perante as suas repercussões nocivas e sociocidas. O complexo internético tornou-se inseparável do alcance imenso e incalculável do capitalismo 24/7 e do seu furor de acumulação, extracção, circulação, produção, transporte e construção à escala global. Incitam-se comportamentos hostis à possibilidade de um mundo habitável e justo em quase todas as particularidades das operações online. Alimentadas por apetites fabricados de maneira artificial, a velocidade e a ubiquidade das redes digitais maximizam a prioridade incontestável de se ter, conseguir, cobiçar, ressentir, invejar; e tudo isto faz progredir a deterioração do mundo – um mundo que opera sem pausas, sem possibilidade de renovação ou recuperação, a sufocar no seu aquecimento e desperdício. O sonho tecnomodernista do planeta como colossal estaleiro de inovação, criação e progresso material continua a atrair defensores e apologistas. Os inúmeros projectos e indústrias de energias «renováveis» são, na sua maioria, concebidos para perpetuar as coisas como elas são e manter devastadores padrões de consumo, competição e acrescida desigualdade. Os planos instigados pelo mercado, como o Novo Acordo Verde, são absurdos na sua inutilidade, pois nada fazem para dissociar a expansão desaustinada da actividade económica, os usos desnecessários de energia eléctrica ou as indústrias globais de extracção de recursos instigadas pelo capitalismo 24/7.

Esta obra alinha-se numa tradição panfletária social que pretende dar voz ao que todos vivemos, ao que todos conhecemos no todo ou em parte, mas que é negado numa torrente avassaladora de mensagens que insistem que as nossas vidas controladas são inalteráveis. Diariamente, muita gente tem um entendimento visceral da miséria da sua vida e expectativas, mas talvez só tenha uma consciência hesitante de como os outros partilham amplamente destas impressões. Não quero aqui apresentar uma análise teórica matizada, mas antes, num tempo de urgência, afirmar como são verdade estes entendimentos e experiências comuns e insistir que, em lugar de adaptação e resignação, as formas de recusa radical não são só possíveis, são necessárias. O complexo internético actua no infindável anúncio da sua indispensabilidade, e também da insignificância daquilo que, na nossa vida, esses protocolos são incapazes de assimilar. A sua omnipresença e integração em quase todas as esferas da actividade pessoal e institucional quase tornam impensável qualquer noção da sua impermanência ou marginalização pós-capitalista. No entanto, esta ideia marca o fracasso colectivo da imaginação, nesta aceitação passiva das atrofiantes rotinas online como sinónimas da vida. E só é impensável porque se pisaram e inutilizaram os nossos desejos e vínculos às outras pessoas e espécies. O filósofo Alain Badiou constatou ser neste ponto de aparente impossibilidade que brotam as condições da insurgência: «Uma política emancipadora consiste sempre em fazer parecer possível justamente o que, no seio desta situação, se diz impossível.»1 As vozes que mais berram esta impossibilidade são as que beneficiam do perpetuar do estado das coisas, são as que prosperam na actividade ininterrupta de um mundo capitalista. São quaisquer pessoas que ganham profissional, financeira ou narcisicamente com a supremacia e a expansão do complexo internético. Perguntam estas pessoas, incrédulas: como passaríamos nós sem algo de que depende toda a nossa vida financeira e económica? Na verdade, traduzida, a pergunta é antes esta: como passaríamos nós sem um dos elementos centrais da cultura e da economia tecnoconsumistas que deixou a Terra à beira da ruína? Elas diriam que, para ter um mundo não dominado pela internet, teríamos de mudar tudo. Pois é mesmo isso. Qualquer possibilidade de rumo para a sobrevivência do planeta será bem mais violenta do que muitos abertamente reconhecem ou admitirão. Nos anos vindouros, uma etapa crucial do combate por uma sociedade igualitária é a criação de uma organização social e pessoal que rejeite o domínio do mercado e do dinheiro sobre a nossa vida em conjunto. Isto implica rejeitarmos a solidão digital, reclamarmos o tempo como tempo vivido, redescobrirmos as necessidades colectivas e resistirmos à escalada do barbarismo, que abrange a crueldade e o ódio emanados do online. Também será importante restabelecermos humildemente a ligação com o que resta de um mundo pleno de outras espécies e formas de vida. Isto poderá acontecer de inúmeras formas, e por todo o planeta há grupos e comunidades que, mesmo sem reconhecimento público, avançam em alguns destes esforços regenerativos. Ainda assim, muitos dos que entendem a urgência de fazermos a transição para uma forma de ecossocialismo ou de pós-capitalismo sem crescimento assumem imprudentemente que a internet e as aplicações e serviços actuais vão de algum modo persistir e funcionar no futuro como sempre fizeram, a par das tentativas de conseguirmos um planeta habitável e uma organização social mais igualitária. Existe um equívoco anacrónico de que a internet poderia simplesmente «mudar de mãos», como se fosse um serviço de tele-comunicações de meados do século XX, qual Western Union ou estação de rádio ou televisão, com aplicações potencial- mente distintas numa situação política e económica alterada. Contudo, a ideia de que a internet pode funcionar independentemente da operação catastrófica do capitalismo global é uma das alucinantes ilusões da actualidade. As duas estão estruturalmente interligadas, e a dissolução do capitalismo, quando acontecer, será o fim de um mundo movido pelo mercado e moldado pelas tecnologias de rede actuais. Haverá, naturalmente, meios de comunicação num mundo pós-capitalista, como sempre houve em qualquer sociedade, mas pouco se parecerão com as redes financeirizadas e militarizadas em que estamos hoje enleados. Os muitos aparelhos e serviços que hoje se usam são possíveis graças ao infinito exacerbar da desigualdade económica e ao desfigurar acelerado da biosfera terrestre, por via da extracção de recursos e do consumo desnecessário de energia. O capitalismo combinou sempre um sistema abstracto de valor e as externalizações físicas e humanas deste sistema, mas, nas redes digitais contemporâneas, dá-se uma integração mais plena dos dois. Todos os telemóveis, computadores portáteis, cabos, supercomputadores, modems, torres de servidores e torres de telemóveis são concretizações dos processos quantificáveis do capitalismo financeirizado. Esbate-se permanentemente a distinção entre capital fixo e capital circulante. Ainda assim, muita gente continua presa à imagem falaciosa da internet como agenciamento tecnológico autónomo, como conjunto de ferramentas, e esta ilu- são amplifica-se na prevalência dos dispositivos portáteis2 .

No começo da década de 1970, o crítico social Ivan Illich avançou com a definição vasta de uma ferramenta que abrangia «instrumentos racionais da acção humana», «instituições produtoras de bens» e funções «afeiçoadas pela mão do homem para realizar uma tarefa específica». As ferramentas são, segundo ele, intrinsecamente sociais, e avaliou-as por relação com uma oposição fundamental: «Quer eu a domine, quer seja por ela dominado, a ferramenta ou me liga ou me desliga do corpo social.» Illich insistia que as pessoas obtêm satisfação e felicidade no uso das ferramentas que são «menos controláveis pelos outros» e alertou que «o crescimento da instrumentação, passados que sejam os limiares críticos, produz sempre mais uniformização regulamentada, maior dependência, exploração e impotência»3 . No fim da década de 1990, poucos anos antes de morrer, Illich assinalou o desaparecimento da técnica como ferramenta que era um meio para um fim, instrumento com que alguém investia o mundo de sentido. Pelo contrário, teste- munhou a disseminação de tecnologias que integram as pessoas no interior das suas regras e operações. As acções que dantes eram autónomas, pelo menos em parte, tornam-se agora comportamentos «que se adaptam ao sistema»4 . Nesta realidade historicamente inédita, quaisquer metas ou fins que procuremos atingir deixam de ser os que realmente escolhemos. Apesar da sua originalidade histórica, o complexo internético é a ampliação e a consolidação de uma realidade há muito em curso ou em parte concretizada. Trata-se de um mosaico, raramente monolítico, de elementos de várias eras concebidos para usos diversos; conseguimos identificar a origem de alguns nas configurações dos fluxos financeirizantes da electricidade, concebidos na década de 1880 por Edison e Westinghouse, depois usurpados por J. P. Morgan. Assistimos hoje ao derradeiro acto do projecto louco e incendiário de um mundo totalmente ligado por cabos, da crença temerária de que conseguiríamos disponibilizar energia eléctrica 24/7 a um planeta de oito mil milhões de pessoas, sem as desastrosas consequências que agora se verificam por toda a parte.

Excerto de Terra Queimada: Da Era Digital ao Mundo Pós-Capitalista de Jonathan Crary, editado em português pela Antígona

Título Original: Scorched Earth: Beyond the Digital Age to a Post-Capitalist World; Tradução: Nuno Quintas; Ilustração da capa: Rui Silva

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