Já todos nós nos deparámos com expressões como “tempo é dinheiro” ou com uma impulsão para ser produtivos a toda a hora enquanto surge um sentimento de culpa e de mal-estar quando nos dedicamos ao ócio ou à contemplação. O surgimento destes sentimentos é uma manifestação óbvia da aceleração do tempo social que, aliada à mercantilização de todos os aspetos da nossa vida e à ilusão do crescimento económico infinito, nos faz viver em ritmos cada vez mais acelerados aumentado a ansiedade e a potenciando a nova patologia do nosso século – a síndrome de burnout.
É comum olharmos à nossa volta ou para o passado e vermos que tanto os objetos com que lidamos como a sua produção se tornaram mais rápidos e mais eficientes. A capacidade de computação dos dispositivos eletrónicos aumentou exponencialmente, o que tem como consequência a capacidade de se realizarem cada vez mais processos num menor espaço de tempo – a título de curiosidade, o smartphone, que anda no nosso bolso diariamente e que é até considerado por muitos uma extensão do ser humano, é milhões de vezes mais rápido do que os melhores computadores dos anos 60 que possibilitaram a aterragem da Apollo 11 na Lua. Os meios de transporte também estão cada vez mais rápidos. Uma viagem que no passado demoraria dias, hoje foi reduzida a poucas horas – é possível acordar, ir a Roma tomar café e estar em Braga para jantar no mesmo dia. É possível trocar a quantidade de correspondência equivalente a uma vida inteira no séc. XV em poucos minutos. Em suma, quase todas as atividades, que em tempos eram longas e demoradas, se tornaram cada vez mais curtas e reduzidas a pequenos intervalos de tempo. A capacidade de concentração numa única tarefa foi também encurtada devido à aceleração que nos é imposta pela crescente exigência de maior eficiência, pela pressão de estarmos sempre em cima do acontecimento e pelas constantes interrupções provocadas pelo sinal do telemóvel com novas mensagens, novos emails, novas notificações. Vivemos um fetichismo da novidade aliado ao fetichismo da produtividade e do crescimento económico infinito.
“Não são, obviamente, os relógios que aceleram, mas sim os processos que fazemos correr no mesmo intervalo de tempo que é marcado por eles” (Barata,2018, p.29)
Mas o que quererá dizer toda esta aceleração de processos? Que a sociedade acelerou, ou que apenas aceleraram os processos que fazem parte dela? A conclusão que parece mais óbvia e que parece estar a conquistar espaço no debate público é de que a industrialização, que começou com a invenção da máquina a vapor, e as dinâmicas que levaram à globalização deste novo modo de produção foram acontecimentos decisores para a crescente aceleração do tempo social. Segundo André Barata, na sua obra “E se parássemos de sobreviver?”, vimemos sujeitos a uma ditadura do tempo. A relação do regime económico neoliberal com o tempo trouxe-nos até aqui. Uma das características fundamentais deste regime é a mercantilização de todas as partes constituintes da nossa vida. Qualquer objeto ou atividade deve ser capitalizado. Deixamos de viver a vida para passarmos a produzi-la. O tempo passou a ser medida de produção ao invés de ser unicamente uma medida abstrata de orientação para o dia-a-dia.
“Uma conceção do tempo de vida como mercadoria, que faz da atividade social e individualmente realizadora que o trabalho deveria ser para as pessoas uma redução delas à categoria abstrata de seres mais ou menos produtivos” (Barata, 2018, p.17)
O tempo acelerado
A vertente socio-económica da aceleração do tempo aparece-nos como evidente quando ingressamos no mundo laboral. A barreira entre trabalho e ócio torna-se cada vez mais ténue estando o primeiro a ganhar cada vez mais terreno ao segundo. Numa época em que estamos todos interligados através da internet e dos nossos dispositivos móveis a facilidade com que podemos trabalhar a partir de qualquer lugar aumenta significativamente. O que surge como vantagem para o empregador tem o efeito inverso no trabalhador, pois qualquer hora pode ser uma hora de produção. Para um sistema económico que depende essencialmente da produção de bens e prestação de serviços e que depende do crescimento económico para se auto-sustentar, este processo de aceleração da produção torna-se numa fórmula de perpetuação altamente desejável.
“Não são, obviamente, os relógios que aceleram, mas sim os processos que fazemos correr no mesmo intervalo de tempo que é marcado por eles” (Barata,2018, p.29)
Da mesma forma que todo o tempo pode ser, potencialmente, tempo de produção, também pode ser tempo de consumo. As lojas online não fecham, os canais de televisão não encerram a emissão e, em alguns países, já há ginásios que nunca encerram. O regime 24/7 penetra cada vez mais dimensões das nossas vidas. O sono foi severamente afetado com o surgir das novas tecnologias e da nova lógica de “viver a vida ao máximo”. O ato de dormir, que deveria ser visto como um processo natural inerente a todo o ser humano, é cada vez mais visto como um sinal de fraqueza que reduz a produtividade e consumo. Se estivermos a dormir não estamos a evoluir nem a fazer com que o sistema de produção cresça com a nossa atividade. A síndrome de burnout, a depressão e a ansiedade estão implicitamente conectadas com a falência do sono e com a impulsão crescente para nos produzirmos a nós próprios enquanto indivíduos. Enquanto que na sociedade disciplinar da modernidade o indivíduo era coagido por forças externas a produzir e a seguir padrões de vida que eram impostos por uma elite que governava o sistema de produção, o indivíduo da pós-modernidade explora-se a si próprio de livre vontade até ao esgotamento. Há uma substituição do dever pelo poder. A inversão desta lógica de produção recai sobre o indivíduo quando este fracassa – quando algum objetivo não é atingido, a culpa é essencialmente do indivíduo que não se esforçou o suficiente para atingir as metas que definiu para si.
“A depressão começa no momento em que o modelo disciplinar de controlo comportamental, modelo que atribuía, de modo autoritário e inequívoco, um determinado papel a cada classe social e a cada um dos sexos, é substituído por uma norma que induz cada indivíduo à iniciativa pessoal, obrigando-o a ser ele mesmo. (…) Ora, o homem deprimido não está à altura de fazê-lo, pois está cansado de esforçar-se por ser ele mesmo, farto de ser obrigado a fazê-lo” (Han, 2014, p.21)
“A sociedade disciplinar era ainda dominada pelo não. A sua negatividade produzia loucos e criminosos. A sociedade da produção gera, em contrapartida, deprimidos e frustrados” idem
A recente pandemia de covid-19, em conjunto com o teletrabalho que dela derivou como medida de contenção, veio potenciar ainda mais estes sentimentos e diluir ainda mais a barreira entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio. Quase metade dos inquiridos portugueses, num estudo publicado pela empresa Robert Walters, admitiu que a sua produtividade aumentou no contexto de teletrabalho. No entanto, uma das maiores preocupações é a dificuldade em separar a vida profissional da vida pessoal. Ao desmaterializar o local de trabalho estamos a dar espaço para que ambos os aspetos que deveriam ser explicitamente separados se fundam cada vez mais até se tornarem indistinguíveis. É comum, ao conversarmos com alguém que está neste regime, ouvirmos que o tempo das pausas de tornou menor e que se trabalha mais tempo do que se trabalhava antes da pandemia. São exigidos maiores e melhores resultados no mesmo espaço de tempo e há cada vez mais reuniões online que têm o único propósito de confirmar se os trabalhadores estão a cumprir as funções delegadas pelos coordenadores. Reduziu-se também o tempo gasto em viagens para o trabalho influenciando assim os colaboradores a começarem o seu trabalho mais cedo ou exatamente à hora prevista, pois deixa de haver constrangimentos possíveis que dificultem a chegada ao local de trabalho à hora prevista.
A internet e as redes sociais são a manifestação mais evidente do fenómeno de fragmentação e aceleração do tempo. Qualquer rede social funciona através da capitalização do acontecimento, isto é, da ideia de que se não a estivermos a utilizar estamos a perder algum acontecimento importante que irá ser perdido entre os milhões de publicações que decorrem a cada segundo. Passado e futuro são termos que não combinam com a fórmula das redes sociais, pois só o acontecimento no presente interessa e é capitalizável. Ao tornarmos o tempo cada vez mais fragmentado atribuímos inconscientemente uma importância ao momento presente que não existia antes e a consequência inevitável é uma perda do controlo da nossa própria experiência do tempo, pois estamos condicionados ao que o futuro imediato nos irá trazer, mostrar ou vender ao invés de sermos nós a decidir e planear o que fazemos a cada instante.
“O imperativo deste futuro imediato, na certeza de uma cadeia causal produtiva, por ordem de um tempo que mostre resultados, é na verdade um futuro que não é futuro, mas apenas presente expandido. (…) Outro tipo de tempo ficaria fora do sistema e teria de ser rejeitado como imprestável” (Barata, 2018, p.31)
O tempo sem entropia
Através da analogia com a noção de entropia postulada pela Física, isto é, o princípio de que a energia reutilizável é sempre menor do que a energia gasta, André Barata propõe um debate acerca da ideia de herança social. Vários aspetos da nossa vida convivem com o seu contrário, a memória com o esquecimento, a culpa com o perdão, ou a dominação com a libertação. No entanto, a acumulação de riqueza e de desigualdades ainda não tem o seu contrário postulado. A proposta de uma herança social é uma proposta que visa incluir a entropia na noção de tempo. As heranças não são nada mais do que uma cristalização no tempo da propriedade que é transmitida através da linhagem sucessória. O único critério de validação passa pela avaliação da legitimidade da aquisição da riqueza. Trata-se de aceitar que o nosso passado, mesmo que seja um passado geracional e não pessoal, tem um poder determinante sobre o que será o nosso presente. A proposta de incluir o esquecimento no processo de redistribuição taxando e redistribuindo as heranças, tornando-as num bem social e não apenas privado, é uma forma de nos soltarmos das amarras do tempo enquanto memória que permite a acumulação desenfreada da riqueza. No fundo é uma proposta de reapropriação do conceito de tempo por parte do Estado com vista a dissipar e combater as desigualdades e a acumulação.
“Se o Estado pode passar a ser apenas mínimo, e inexistir além da garantia do funcionamento da memória dos atos legais, é porque a dominação migrou para fora do Estado, estando distribuída numa apropriação do conceito de tempo” (Barata,2018, p.19)
Esta proposta, aliada a uma proposta de um rendimento básico incondicional que visa garantir que o trabalho se torne numa fonte de realização ao invés de ser uma fonte de rendimento são propostas que, em última instância, visam desacelerar as nossas vidas. Ao não termos a obrigação de trabalhar por um rendimento somos obrigados a parar e a não correr atrás de qualquer oportunidade que nos visa garantir as condições mínimas de vida. A consequência positiva é que já não somos obrigados a contribuir para o funcionamento de um sistema que vem degradando a nossa saúde mental e física procurando viver ao invés de sobreviver. Enquanto não combatermos a lógica de sobrevivência económica, pois a sobrevivência natural já foi alcançada, não será possível desacelerar o ritmo de vida profissional, social e de consumo, o que terá consequências inimagináveis para as gerações futuras que assistirão a um aumento significativo das desigualdades sociais e a uma degradação ambiental que poderá acabar com a necessidade de sobrevivência no extremo oposto: a degradação e extinção da vida humana no planeta Terra.
BIBLIOGRAFIA
BARATA, André (2018), E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo, Lisboa: Sistema Solar
CHUL-HAN, Byung (2014), A Sociedade do Cansaço. Lisboa: Relógio d’Água
CRARY, Jonathan (2016), 24/7, o capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora