Contra um preconceito, preconceito e meio?

Contra um preconceito, preconceito e meio?

3 Julho, 2020 /

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A doença mental não é simples; não é simples de detectar, não é simples de compreender e muito menos é simples de representar, mas essa dificuldade não pode ser eliminada por uma espécie de domesticação gráfica de um cenário dantesco.

Hoje escrevo sobre a polémica capa da última edição da Vogue Portugal. Quero começar este artigo de opinião com uma confissão pessoal. Sou um jovem de 26 anos, Director Editorial do Shifter, e no último ano aquilo que era uma ansiedade normal foi aumentando até se tornar num obstáculo incapacitante para o normal decurso da minha vida. Para quem me lê nada mudou, para quem convive comigo através das redes sociais também não. Perguntem a quem quiserem de entre esses grupos e aposto que pelo menos metade dessas pessoas elogiará a minha lucidez, ainda que na realidade e no íntimo me debata diariamente com este problema.

Até a ansiedade me obrigar a alterar rotinas nunca lhe tinha dado atenção; apesar de na minha cabeça sempre ter reconhecido que algo de estranho se passava, o meu perfeito enquadramento social e a capacidade, que nunca perdi, de cumprir as minhas tarefas, iam relegando para um momento extremo a procura de ajuda. Esta tendência de empurrar com a barriga o problema baseava-se não só na ideia comum de que existem dezenas de caminhos de auto-ajuda mas como pela concepção errada de que recorrer a saúde mental é para momentos extremos e coisa de loucos.

Desde que há cerca de 6 meses reconheci o problema e procurei ajuda, percebi o quanto estava errado em todas as minhas concepções, por muito contemporâneo que julgava ser o meu pensamento. Ao longo das já dezenas de sessões de terapia percebi as nuances que compõem o quadro da saúde mental e como, neste caso concreto, são tão perigosas as literalizações. É por isso que deste lugar escrevo sobre a capa da Vogue deste mês, que apresenta um número dedicado a saúde mental com uma encenação do que é esse problema baseado nos mitos mais espetacularizados da cultura pop.

Começo a minha crítica por estabelecer uma ponte: percebo a intenção da Vogue de trazer este assunto para o espaço público e louvo a sua atitude, contudo, a partir daqui, nada de positivo me resta a dizer sobre a capa, elemento que adquire uma centralidade indiscutível no discurso – quer para os que compram e lêem efectivamente o conteúdo, quer para todos os outros. Se a capa serve de síntese ao interior, esta convida-nos a percorrer um caminho errado ao propor uma efabulação de um assunto tão sério, pegando nos aspectos mais mediatizados da doença mental mas menos verdadeiros em benefício da concretização de uma encenação gráfica.

A doença mental não é simples; não é simples de detectar, não é simples de compreender e muito menos é simples de representar, mas essa dificuldade não pode ser eliminada por uma espécie de domesticação gráfica de um cenário dantesco.

A imagem que surge na capa representa, do que é possível aferir, duas enfermeiras vestidas como se tivessem saído de um filme do século passado, a cuidar de uma paciente nua, numa posição de vulnerabilidade absoluta e num espaço que nos induz uma certa sensação de claustrofobia. Uma imagem que reverbera para quem já se debateu como estas questões, como a memória do que tanto tempo os impediu de pedir ajuda. Uma imagem que replica o estereótipo da absoluta vulnerabilidade do louco em contraste com o autoritarismo dos cuidadores a quem neste jogo simbólico cabe uma função hiper-normativa – e não podia estar mais distante do que é o caminho, ou devia ser o percurso e o discurso sobre esta questão.

Inerente a este jogo de poder está uma leitura quase ideológica do problema, como se a doença mental fosse sinal de uma fragilidade literal, e não pudesse emergir de outras formas, com outras configurações. É como se o louco fosse excluído da ordem social transitando para um espaço em que contrasta o autoritarismo normativo dos médicos e a fragilidade nua dos pacientes. Aqui volto à minha experiência para dizer que este retrato não podia estar mais errado, tal como estaria errado, e à vista de todos, se para falarmos de cancro colocássemos um paciente nu a fazer quimioterapia perante dois enfermeiros vestidos de farda completa. A doença mental existe, como todas as outras doenças, no mesmo espaço social e humano e a sua extração deste contexto, embora possa ser motivada por boas intenções, perpetua o estereótipo que afasta as pessoas dos seus diagnósticos, com medo de serem, cá está, excluídas da ordem social.

Todas as semanas é sagrado para mim uma hora de conversa com a minha psicóloga; o percurso que tenho vindo a percorrer é recheado de nuances, complexidade, e até eu tremeria perante o desafio de o representar graficamente. Contudo, se tivesse de o fazer, seria algo caótico, humano e sobretudo inconclusivo, focado no processo e não no melhor ou no pior dos cenários. Não precisamos que nos digam “sê feliz”, nem que nos assustem com o rótulo da loucura. Ter e lidar com saúde mental é um caminho durante o qual na maioria das vezes não há respostas concretas nem fáceis, até porque muitas vezes essa ânsia sufocante por uma resposta e uma conclusão é o que está na base das doenças. Ter e lidar com saúde mental não é transitar entre o saudável e louco, antes pelo contrário, é perceber e assumir como essas duas realidades tão distintas pela norma social se interceptam tão facilmente. É perceber como o caminho do sucesso pode acabar por se tornar tóxico, como a busca do prazer se pode transformar em dor, como o conforto pode ser inquietante. É perceber que percebemos muito pouco sobre nós próprios e que, em determinado momento, temos de voltar para nós e dar atenção.

Em suma é tudo o que a capa da Vogue não faz, um erro que se acentua na palavra escolhida para o título – madness, loucura. Quem ler este texto, aposto mais uma vez, vai elogiar a minha lucidez e nem uma dessas pessoas, tenho absolutamente a certeza, verá uma ponta de loucura naquilo que aqui escrevo. Contudo, para a próxima semana tenho mais uma sessão marcada pela qual mal posso esperar – é assim todas as semanas. Porque a saúde mental é isto, mais um capítulo da nossa vida, que devemos encarar com a mesma serenidade com que encaramos outra área qualquer. Por mais que sirva ilustrações bonitas ou imagens virais, recorrendo a estes estereótipos que ganharam espaço na cultural popular do século passado.

Tal como sofisticámos, de modo informativo, a comunicação noutros domínios, evidenciando as nuances dos processos em vez de evidenciar as possibilidades mais fatalistas, falar de saúde mental deve procurar percorrer o mesmo caminho, e não escudar-se nas boas intenções para esta exploração quase pornográfica. Se é importante falar sobre saúde mental, é ainda mais importante que não se literalize esta conversa, que se acrescentem camadas de complexidade, quer em texto, quer em imagem. É importante que nos afastemos destas imagens que só nos parecem higiénicas porque são evidentemente falsas, produto de profunda alienação que fez da saúde mental, sem se aperceber, uma ordem normativa. É esta ordem que faz com que pessoas ditas saudáveis não sejam capazes de reconhecer os seus problemas, continuem a ter vergonha ou medo de ir ao psicólogo, ou de o fazer com abertura para que possam contar a familiares ou amigos. É neste ponto onde a saúde mental distingue os loucos dos não-loucos que a saúde mental deixa de ser saúde mental.

Não falo por mais ninguém porque apesar de conhecer exemplos não tenho esse direito, mas da minha experiência já disse e repito: é das decisões que mais me congratulo por ter tomado. Sem nunca ter sido louco, nem nunca ser completamente são, ao cuidar da minha saúde mental percebi os padrões, camadas e bloqueios que me afastavam de SER mais – no sentido sensitivo do termo. E bem sei que existem problemas mais graves que o meu, já lidei com eles de perto, já acompanhei à distância a sua progressão, e se alguma coisa as conduziu na espiral descendente foi esta literalização apressada que sempre se faz de um problema que é tão complexo quanto a nossa mente.

Para além de tudo o acima escrito sobre a relação da capa com o próprio tema, não podia terminar este artigo sem relacionar esta abordagem com o próprio espaço público, reflectindo mais uma vez sobre este problema da literalização. Entre os que consideram a representação obscena e os que acreditam que o mais importante é que se fale do tema, dificilmente se encontrará um meio termo porque essa era a oportunidade e, simultaneamente, a responsabilidade dos criadores desta capa em que falharam inadvertidamente.

É nesse meio termo das representações, como é nesse meio termo dos debates que se encontra a verdadeira razão. É para esse meio termo, complexo, ambíguo, ambivalente, inconclusivo, que devemos caminhar as nossas metáforas, sob pena de para combater um preconceito evocarmos um preconceito e meio.

P.S.: Acredito que é no meio termo que reside a razão e não pretendo com este texto inferir, sugerir ou promover algum tipo de movimento revanchista sobre os profissionais que participaram neste trabalho, com quem me solidarizo, reconhecendo a difícil tarefa que tinham em mãos. Tal como sugiro para a abordagem à saúde mental, espero que este artigo alimente essa prática, a de uma crítica construtiva, empática e que nos ajude a todos a crescer e a melhor informar as nossas decisões. Se os preconceitos existem e as suas manifestações chegam a lugares de destaque não é justo querermos individualizar ou apontar culpas. O espaço público é complexo e caótico mas não tem de ser confrontacional, pode ser cooperativo e construtivo, como um diálogo honesto e sem atitudes defensivas, por isso exponho a minha vulnerabilidade. Também nisto, e apesar de vestirmos camisolas diferentes, estamos todos juntos.

Autor:
3 Julho, 2020

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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