The Zone of Interest e como (não) se retrata um genocidio

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Imagem de uma cena do filme, em que um personagem vestido com um fato branco surge de pé junto a uma pequena piscina onde algumas crianças brincam.
via A24

The Zone of Interest e como (não) se retrata um genocidio

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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The Zone of Interest é uma obra que foge a todo e qualquer padrão habitual daquilo a que a dita “narrativa de holocausto” nos foi habituando, relegando novamente o romantizado à condição de estranho e alienígena — portanto, realista e humano — que sempre lhe pertenceu.

O seguinte texto contém spoilers dos filmes Zone of Interest, Under the Skin e Birth.

Hoje, enquanto lia Molly, um livro de Blake Butler que, entre outras coisas, aborda as formas como o luto pode reconfigurar retroativamente a nossa noção de ser no espaço e tempo, encontrei uma passagem com uma citação famosa do autor húngaro Imre Kertész, que até então desconhecia. Provém de um ensaio de 2001 intitulado Who Owns Auschwitz?, onde o autor batalha figurativamente com a mercantilização do Holocausto no nosso aparato cultural. Kertész, sobrevivente do Holocausto, aponta a sua representação em filmes como A Lista de Schindler como “kitsch”. E explica.

Eu considero kitsch toda e qualquer representação do Holocausto que não seja capaz ou não esteja disposta a compreender a conexão orgânica entre o nosso modo deformado de vida (seja na esfera privada ou a nível ‘civilizacional’) e a própria possíbilidade do Holocausto. Vêm-me à mente aquelas representações que tentam estabelecer o Holocausto na sua totalidade como algo distante da natureza humana, que procuram afugentar o Holocausto do reino da experiência humana.”

Este ensaio, obviamente, não travou as tentativas contínuas de retratar o Holocausto no nosso meio cultural. Literatura sobre o Holocausto quase virou um subgénero literário em si, e o nome Auschwitz tornou-se o num franchise não-oficial de romances ficcionais de autores de todo o mundo, o tipo de livro que ganha destaque na secção de romances históricos do Continente. No cinema, o caso assemelha-se. Além de A Lista de Schindler, obras como A Vida é Bela e O Rapaz do Pijama às Riscas encaixaram muito facilmente no nosso panteão cultural — menos narrativas de sobrevivência, mais contos feitos para produção industrial de lágrimas na audiência. Para alguém como Kertész, que durante a sua adolescência passou um ano entre os campos de Auschwitz e Buchenwald (e que, ironicamente, passa o último terço do ensaio a elogiar o filme de Roberto Benigni), a mercantilização cultural do Holocausto parece uma subversão à escala global do seu impacto, no qual “o Holocausto tornou-se incompreensível (alien) ao ser humano.” O que lemos na página ou vemos no grande ecrã está a uma distância imensurável do que realmente aconteceu, mas, como uma cultura crescentemente unificada e uniforme, escolhemos acreditar no que foi traduzido como triste e belo. Esquecemo-nos talvez porque, nas palavras que colmatam A Vida é Bela, ditas por um Giosué radiante com a chegada dos tanques americanos: nós “ganhámos!”

The Zone of Interest surge, então, como uma anomalia neste sistema. Uma obra que foge a todo e qualquer padrão habitual daquilo a que a dita “narrativa de holocausto” nos foi habituando, relegando novamente o romantizado à condição de estranho e alienígena — portanto, realista e humano — que sempre lhe pertenceu. 

Numa adaptação extremamente lata do romance homónimo de Martin Amis — mais esqueleto do que corpo readaptado a outro meio —, o quarto filme de Jonathan Glazer, o primeiro lançado em dez anos, segue discretamente a vida de uma família alemã que mora na dita zona de interesse, nome dado à área de 40 quilómetros que rodeia Auschwitz. O patriarca Rudolf Höss (Christian Friedel) é o comandante encarregado das operações. Todos os dias parte para o seu cargo às costas da sua fiel égua; não sem antes se despedir com um beijo da sua mulher, Hedwig (Sandra Hüller). Os quatro filhos brincam nos seus quartos, lêem histórias uns aos outros, vão à escola, correm e brincam pelo magnífico quintal, a família recebe visitas, tudo sob a sombra do muro que separa a habitação dos armazéns de Auschwitz. Nos seus encargos diários, Rudolf lida maioritariamente com questões “banais” de logística, por exemplo a melhor forma de reaproveitar o calor das fornalhas, permitindo ainda assim a limpeza regular das cinzas (aparentemente, é fazer uma fornalha circular).

Surgem momentos que subvertem a banalidade desta rotina: a mãe de Hedwig vem visitar a filha e os netos, a relação de Rudolf e Hedwig revela-se distante e apática, surgem casos extraconjugais, Rudolf é “promovido” para um posto em Berlim, surgindo o risco da família perder o seu lar. Mas de forma direta, narrativamente falando, isto não interessa para absolutamente nada. 

The Zone of Interest é propositadamente um antidrama. Todos os ingredientes que deixariam um José Rodrigues dos Santos a salivar estão aqui presentes de alguma forma ou modo, mas Glazer percebe a armadilha que escondem e recondiciona-os. Cada evento potencialmente dramático é reduzido à mera condição de facto apresentado, cada sujeito relegado ao papel de engrenagem, cada ação uma movimentação nos eixos que operam aquela Máquina Voraz cuja totalidade simplesmente não cabe num ecrã. O resultado é uma alienação dissonante na audiência que é induzida logo a partir do primeiro segundo e não se dissipa, nem mesmo depois de já terem rolado os créditos. 

O espetador é relembrado da sua condição passiva, corpo inanimado diante dum largo ecrã, inutilizado perante choque da mundanidade a que assiste, contrastada com o horror daquilo que paira fora de margens. A paisagem sónica é dum silêncio pacífico que rapidamente apodrece nos nossos ouvidos, constantemente na antecipação que lhes chegue alguma amostra de terror e sofrimento. Ouvimos regularmente ecos distantes de tiros, entrecortados com um ocasional grito de agonia. Na escuridão profunda da noite, vibra o ronronar gutural da fornalha de Auschwitz em funcionamento, expelindo fumo e cinza que no dia seguinte irão constituir o ar respirável da localidade.

A vibe é, portanto, duma bizarria e desconforto indescritíveis. Para este efeito, múltiplas câmaras foram espalhadas pela propriedade do filme, construída ao lado do muro de Auschwitz, onde os hábitos e rotinas das personagens foram capturadas algures no interstício entre teatro imersivo e um reality show. Nas palavras do próprio realizador, “um Big Brother na casa Nazi,” sem um mediador sensacionalista a servir de filtro. 

O inesperado deste exercício de estranhamento fílmico, tão íntimo como distante, é o quão hipnótico se torna. Notamo-lo de forma flagrante logo na abertura, preenchidos somente com um ecrã negro e a dissonância da música de Mica Levi. Um negrume que se perpetua durante dois longos minutos, talvez a representação visual mais fidedigna possível do sofrimento sentido pelas almas presas nos campos de concentração, que é subitamente dissipado, relegado à periferia, fora de vista, longe da mente, substituído por uma bonita e serena paisagem à beira-rio. Não é por acaso que no início do filme vemos um Rudolf de olhos vendados antes de sequer nos depararmos com o muro que divide a propriedade de Auschwitz. 

Beleza e prosperidade não só são capazes de coexistir com o vil e doentio, como podem ser os seus produtos diretos. Fica em memória, gravado a ferro quente, o breve momento em que assistimos a um jardineiro judeu a despejar cinzas nos leitos das belas flores que adornam o quintal da casa. A questão que surge — nunca colocada diretamente, até porque Glazer nunca foi um cineasta forçosamente moralista — transcende os próprios muros de Auschwitz, transborda os leitos do curso histórico e aterra-nos no colo: sobre que corpos se ergue o nosso comodismo? Porque não só o mal é banal, como consegue ser muito, muito confortável. 

O truque de génio que Glazer foi aperfeiçoando ao longo de toda a sua obra cinematográfica é saber precisamente quando nos despertar do nosso conforto/transe, fazendo o gelo da obra rachar de formas irreparáveis. 

No icónico vídeo da mais icónica ainda Karma Police, dos Radiohead, o homem que durante toda a gravação vemos perseguido por um carro (carregando um Thom Yorke impassivo no seu banco traseiro) subitamente riposta com um simples fósforo, incendiando o trilho de gasolina deixado pelo veículo até este terminar devorado pelas chamas (Yorke entretanto ausentou-se sinistramente do carro). Em Birth, a personagem de Nicole Kidman tem subitamente de lidar com um segundo luto, quando o rapaz de dez anos que afirmava ser a reencarnação do seu marido morto se revela ser um simples miúdo que se apaixonou por uma mulher adulta. Em Under the Skin, há duas quebras: a “mulher” alienígena que todo o filme se fingiu humana decide assumir-se finalmente como tal, contra a vontade do “homem” que a controlava, e a sua posterior destruição física (e ontológica) consequente disso mesmo.

Formalmente, The Zone of Interest é mais discreto que os filmes que o antecederam, mas funciona sob os mesmos moldes (o crítico Walter Chaw até se atreve a afirmar que a obra de Glazer forma uma narrativa única e contínua). Sofre com constantes ruturas na sua forma, até porque um filme maioritariamente voyeurístico só se consegue subverter através duma subversão do seu mesmo caráter observante. Como quando subitamente se vêem imagens de uma jovem a esconder maçãs nos locais onde os judeus de Auschwitz trabalham, filmadas no preto-e-branco aberrante duma câmara de infravermelhos, o nosso (des)conforto é subitamente abalado pela forçosa amostra de vida e luta que irrompem da escuridão tépida (estes momentos coincidem sempre com os episódios de sonambulismo da filha de Rudolf, talvez uma projeção precoce de vontade e consciência?). Ou quando uma pauta de música resgatada algures entre os detritos, mais tarde tocada num velho piano, as legendas mudas fazendo o trabalho de traduzir a letra em ídiche que a menina polaca não consegue cantar.

O momento mais desconcertante é guardado para o fim. Rudolf desce os degraus escuros de um edifício oficial em Berlim após uma festa com os seus superiores. Arquitetura art-deco afoga-se em passagens escuras, corredores negros que testemunham Rudolf a vomitar uma, duas, três vezes. A certo ponto ele queda-se no seu sítio, olhando para um ponto distante de luz ao fundo do mesmo corredor que contém a câmara de Glazer. Cortamos para imagens atuais de Auschwitz, dos seus corredores envelhecidos, dos armazéns com chuveiros, vemos a pilha de sapatos, e cortamos novamente para Rudolf. Será esta visão uma premonição? Será a sua reação gélida uma de indiferença? Rudolf coloca o seu chapéu de SS e continua a sua descida, lentamente, pelas goelas duma escuridão que o devora totalmente.

@idf

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“Como deverá o mundo libertar-se de Auschwitz, do fardo pesado do Holocausto?” questiona-nos Kertész no seu ensaio. O mesmo Kertész que passou um ano nas mãos da SS, o mesmo Kertész que no seu último livro publicado em vida (A végső kocsma (2014), traduzido para inglês como The Last Tavern) acusou abertamente a população muçulmana, refugiada e imigrante, de ser uma ameaça para a integridade cultural europeia

Se há resposta sussurrada no silêncio de The Zone of Interest, a resposta é esta: já nos libertámos de Auschwitz, e talvez tenha sido um erro.

Como diz Nancy Ko no ensaio Turning the Tables,
Até um estado erguido sobre a memória coletiva duma limpeza étnica e genocídio é capaz de os perpetuar.

Índice

  • Duarte Cabral

    Tem 26 anos, tirou o mestrado em Engenharia Informática e de Computadores e trabalha atualmente como engenheiro de dados. A sua real paixão reside nas artes, nomeadamente no cinema, literatura, e videojogos. Planeia eventualmente aventurar-se na área de cinema, mas até lá contenta-se a escrever sobre tudo aquilo que o inspira.

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