“O que se perdeu com o Cybersyn?”: o projecto que podia ter mudado o mundo como hoje o conhecemos

“O que se perdeu com o Cybersyn?”: o projecto que podia ter mudado o mundo como hoje o conhecemos

14 Agosto, 2023 /
Recorte da Imagem de Apresentação do podcast The Santiago Boys.
As políticas de Allende para a tecnologia, e aqueles de que se rodeou para influenciar e materializar a sua visão são uma fascinante história com muito por contar. E que agora ganha voz, ou vozes, na série de 9 episódios em podcast de um aprofundado trabalho de investigação resultado de mais de 200 entrevistas, empreendido por Evgeny Morozov.

Uma sala alcatifada, de luzes brancas, fortes, paredes lisas cobertas de ecrãs de diferentes proporções, e outros dispositivos electrónicos de utilidade intrigante. Sete cadeiras, com estilo futurista, baixas, largas, brancas com almofadas vermelhas, um comando embutido no braço direito, dispostas num círculo quase perfeito. Esta podia ser a descrição do cenário da sala de controlo de um filme de ficção científica, mas neste caso não é. A história de onde surge este retrato é real. 

É a sala de operações do projecto Cybersyn, um capítulo pouco explorado da presidência chilena de Salvador Allende. Se a sua curta passagem, marcada por uma política de socialista, a nacionalização de sectores estratégicos e por um final trágico, às mãos de um Golpe de Estado apoiado pela CIA e perpetrado por Augusto Pinochet — que fará em setembro 50 anos — são em traços largos conhecidos pela maioria. As políticas de Allende para a tecnologia, e aqueles de que se rodeou para influenciar e materializar a sua visão são uma fascinante história com muito por contar. E que agora ganha voz, ou vozes, na série de 9 episódios em podcast de um aprofundado trabalho de investigação resultado de mais de 200 entrevistas, empreendido por Evgeny Morozov. Chamou-lhe “The Santiago Boys”

Morozov é um conhecido crítico da forma como a tecnologia tem moldado o mundo nos últimos anos, e da falta de sentido crítico (e político) com que a maioria das discussões neste domínio tem ocorrido. Com uma longa carreira como jornalista, escritor e investigador,  textos publicados nas principais publicações, e autor dos livros “The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom” (2011) e “To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism” (2013), tem sido um dissidente da ideia de que a tecnologia e a internet são necessariamente ferramentas democratizadoras  – propondo leituras que cruzam outras dimensões de interesse político, e ensaiando um novo enquadramento para a esquerda do aparato tecnológico. Neste caso, dedica-se a uma abordagem diferente. Não só pela opção pelo formato podcast, mas também pela forma como parte de um acontecimento histórico, para abordar questões de extraordinária contemporaneidade, criando para isso um enredo que por vezes parece obra de ficção.

Evgeny Morozov / ©The New Institute,  Sabine Vielmo.

“Sempre achei que a história habitual que ouvimos sobre o Chile e a América Latina nos anos 70 e 80 não é muito completa ou precisa” — é a primeira ideia com que Morozov responde à pergunta sobre as motivações para este trabalho, numa entrevista por videochamada, a meio do calendário apertado de distribuição e divulgação do podcast — que ainda esta semana foi complementado com legendas em 6 línguas, entre elas o português. “A história do neoliberalismo, dos Chicago Boys, a assunção de que estes tipos estão na vanguarda da inovação e intervêm para ajudar essencialmente a economia antiquada, mórbida, burocrática e antiquada de Allende, nunca me convenceu totalmente. E percebi que havia mais nessa história”,  prossegue. 

E se no podcast, esta história é transportada para uma série densa, recheada de acontecimentos históricos, nesta conversa tentamos ilustrar algumas das pontes entre o passado e o futuro que emanam da escuta e do debate da mesma, e partilhar com o leitor alguns dos pontos que tornam esta história tão fascinante.

Esta não é a primeira vez que escreve sobre o projeto Cybersyn ou os seus intervenientes, como o icónico Stafford Beer, de quem falaremos adiante. Mas conta-nos que, neste caso, ao reler a história procurando explicação para as décadas seguintes, redescobriu a natureza ideológica dos que rodeavam Allende e uma nova leitura política de todo este empreendimento. Que tinha como epicentro a cidade de Santiago, “repleta de economistas radicais estruturalistas, seguidores da teoria da dependência, que desenvolviam leituras muito particulares da situação geopolítica, geoeconómica e geotecnológica”, fruto das disputas ideológicas em torno dos países da América Latina, e da resistência latente ao neocolonialismo americano, e que se deduzia também num plano para a tecnologia. E foi a partir dessas disputas que “desenvolveram uma visão muito interessante do que o Chile podia fazer tecnologicamente. Que tinha tudo a ver com evitar dependências. Com uma agenda tecnológica própria. Com ser soberano e autónomo”

O mito Cybersyn

O projecto, que nunca chegou a estar completo, era ambicioso e revelador da forma como o executivo de Allende encarava o potencial tecnológico. A ideia passava por criar um sistema que permitisse ligar as dezenas de fábricas do estado chileno a um sistema central de controlo — na tal sala icónica à história de ficção científica— permitindo a recolha e o tratamento de dados em tempo real e tomadas de decisão apoiadas por um sofisticado software. Mas as questões que hoje representam, e que o podcast nos apresenta, vão muito para além desta dimensão. Alavancadas pelo potencial de se tornar cada vez mais um caso de estudo que permita imaginar novas formas de ver a tecnologia e a de a implementar nos nossos dias — partindo de uma perspectiva decolonial, de um país periférico do Sul Global.

 “Como sistema excêntrico de gestão cibernética, é louvável e interessante. Mas como uma forma de potenciar uma abordagem completamente diferente ao desenvolvimento industrial — feita de forma socialista, mas com a democracia presente — poderia ter-nos dado um equivalente à Coreia do Sul ou a Taiwan, ou a qualquer um destes países do Sudeste Asiático, que celebrámos nos anos 70 e 80 como os centros de desenvolvimento tecnológico, só que com um modelo muito diferente, sem o autoritarismo militar de direita que o acompanhou”, comenta Morozov.

Esse segundo olhar desencadeara uma série de perguntas que, de alguma forma, se podem resumir numa só:  “O que se perdeu com o Cybersyn?” — para a qual não há uma simples resposta. Por um lado, ficam no ar dúvidas sobre que outra relação com a tecnologia seria possível a um nível global, por outro certezas sobre as disputas ideológicas e a forma como esta área se tornou um autêntico campo de batalha. 

Com toda a riqueza do momento, o projecto não foi completamente esquecido, e permanece vivo no imaginário da esquerda. Como ilustra a toalha com grafismos da Cybersyn que se encontra à venda online, no site da cooperativa Boot Boyz Biz,  numa clara homenagem ao projecto. E como nos conta: “Muita gente olha para o projeto Cybersyn e imagina uma série de coisas. E, se calhar, simbolicamente serve uma função. Tal como a Guerra Civil Espanhola, ou a Comuna de Paris serviram para gerações anteriores. Claro que não é um evento tão dramático e violento como a guerra civil mas, no entanto, para muita gente mais jovem, progressistas e de esquerda, serve de facto uma função simbólica.” Outra das motivações explícitas deste projecto passava não por contrariar  essa dimensão simbólica mas dignificá-la, contextualizando os acontecimentos e facilitando o enquadramento político do sucedido. “Quando as mitologias se desconectam da realidade, podem facilmente ser atacadas pelos inimigos do projecto. Senti que havia cada vez mais um distanciamento entre a realidade do Cybersyn e o discurso mitológico sobre o projecto. E pensei que talvez devêssemos assentar o discurso mitológico em algo mais empírico, real, como entrevistas, histórias orais, trabalho de arquivo” — diz-nos.  

Ao procurar saber mais sobre este mito, o investigador procurou mais do que fazer um retrato histórico da “ciência em ação, como diz Latour” — porque, nas suas palavras, esse trabalho já foi feito e bem feito, por exemplo, por Eden Medina —, mas antes um olhar mais presentista para a história. Partindo da assunção que estamos a viver as consequências da Guerra Fria, de acontecimentos como este algures da década de 1970, e procurando ler esta história do passado à luz do que hoje sabemos. Uma escolha que justifica aludindo a uma continuidade perdida nos debates sobre tecnologia: “As conversas que temos hoje em dia sobre as Big Tech e a reação à tecnologia são, de alguma forma, descendentes destas conversas anteriores. E em boa parte, são descendentes pobres, porque não são capazes de desenterrar alguns dos caminhos alternativos que podiam ter surgido nos anos 60 ou 70. Isto porque, de certa forma, aderimos em demasia ao paradigma neoliberal e não vemos outra alternativa.”

“Quis contar a história de forma diferente. Fui movido, enquanto intelectual público, por um conjunto de preocupações com o futuro e não apenas com o passado. E isso, claro, influencia a forma como leio o passado, porque leio o passado com a visão do presente e do futuro”, conta. Este explorar do passado não se orienta apenas por preocupações de factualidade histórica, mas também por uma preocupação em inspirar novas narrativas sobre tecnologia — e de uma forma que se possa tornar popular. 

Para Morozov, se a direita conseguiu tornar as suas ideias populares através de romancistas como Ayn Rand, à esquerda o esforço tem sido mais difuso. E muito mais no campo da ficção científica, como vimos com a recente publicação de Yannis Varoufakis, o trabalho de China Miéville ou, há mais de 100 anos, com os trabalhos de Alexander Bogdanov. E se esse trabalho é meritório, pode não ser o mais fácil de relacionar com o quotidiano. “Penso que também temos de ser capazes de fazer outras narrativas, e a ficção científica, de certa forma, está tão desligada dos verdadeiros actores políticos do mundo que se torna muito difícil dar-lhe sentido politicamente, porque ficamos paralisados. Não se sabe como relacionar o aqui e agora com esse mundo” — diz. 

Este é o outro dos trunfos de The Santiago Boys: um rol de protagonistas — pessoas, ideias, disciplinas, teorias — que continuam vivos e vêem reconstruídas ligações ao presente, tendencialmente esquecidas pela história: “Consegui, pelo menos de alguma forma, ligá-lo ao mundo atual. As pessoas que estudam a teoria da dependência hoje em dia sabem que agora têm um ótimo exemplo que podem dar aos alunos para compreender quais eram os debates sobre a teoria no final dos anos 60”.

Se a ideia passa por dar um novo pretexto para debates, a questão da audiência não foi descurada. Morozov quis apostar num formato que lhe permitisse furar a bolha intelectual e mais geek, e já ambiciona  dar nova vida à história em formato filme ou uma série, “para que a mensagem se possa espalhar ainda melhor”. Sobre este processo revela-nos que foi um trabalho mais difícil do que esperava, mas também mais interessante, e que acabou por contribuir  muito para forma final do trabalho, pelas possibilidades que ia abrindo e as histórias que permitia contar: “Nunca pensei que me fosse entusiasmar tanto com o formato de podcasting como me entusiasmei, porque, de certa forma, é um formato muito difícil. É muito mais difícil do que escrever um livro, temos de nos concentrar em muitas outras coisas — design de som, música, temos de ter o ambiente certo em cada cena. Por isso, temos de nos certificar de que o texto combina com a música. Temos de nos coordenar com os compositores. É uma tarefa muito mais exigente do ponto de vista cognitivo.”

A linearidade da produção, narrada na voz singular de Morozov, contrasta com a vastidão do universo visto à distância. “Tudo parece lógico, mas para lá chegar foi um processo muito complicado. Tive de fazer muitas entrevistas que, no final, não serviram, porque acabei por levar a história numa direção diferente”, partilha. Não só a densidade da história permitia dezenas de leituras, como a sua estrutura narrativa — com um protagonista colectivo — sugeria diversas rotas possíveis, um pouco por toda a América Latina num período politicamente conturbado. Um desafio do ponto de vista conceptual mas também a vários níveis técnicos dado os limites naturais de cada formato e a tentativa de uma atitude pedagógica, que não deixasse ouvintes para trás e, em vez disso, os introduzisse a uma série de novas questões. 

É com esse propósito, de reconectar os diferentes elementos da história ao presente, que o projecto se desdobra num autêntico universo. Para além da quantidade de entrevistas, histórias laterais que enriquecem a contextualização da trama principal e uma montagem num ritmo envolvente. O projecto desdobra-se num website em que cada episódio é acompanhado por exaustivas anotações, e ligações para as fontes, algumas das entrevistas surgem transcritas na sua versão completa, e um extenso glossário que permite a apreensão completa dos principais detalhes da história. Se nos podcasts costumam faltar hiperligações, todos os fios deste podcast estão ligados: “Em parte, tratou-se de reabilitar a ideia da hiperligação. Acho que desistimos das hiperligações demasiado cedo. Por isso, pensei que talvez devesse tentar fazer algo um pouco mais, que talvez devêssemos criar um universo”.

O mapeamento deste universo durou mais de 2 anos, o primeiro dos quais numa investigação livre, muito antes de surgir o título que une todas as pontas. Morozov descreve este processo como uma espécie de malabarismo, e nomeia alguns dos objectos principais deste truque: “Queria juntar a cibernética, a teoria da dependência, e a Guerra Fria, e daí fazer emergir uma história, sem perder de vista o Fernando Flores e o Stafford Beer como dois protagonistas principais deste tema colectivo.” 

As políticas de Allende para a tecnologia, e aqueles de que se rodeou para influenciar e materializar a sua visão são uma fascinante história com muito por contar. Que agora ganha voz numa série podcast resultado de mais de 200 entrevistas, empreendido por Evgeny Morozov.
Render 3D da sala do projecto Cybersyn / Wikipédia

Stafford Beer e os limites da cibernética

“Não precisamos de reduzir a complexidade, podemos utilizar os computadores para a gerir”

Falar de cibernética em 2023 não é propriamente popular. Apesar da palavra soar familiar o seu significado concreto é estranho à maioria, muito pelas diversas aplicações que o conceito foi tendo, como nos explica Morozov:  “Na cultura popular a cibernética tornou-se I.A. Houve um esforço deliberado de pessoas como Marvin Minsky, e outros, para pegar na herança da cibernética e criar um paradigma completamente diferente em torno desta. E o que Minsky estava a fazer era uma continuação do trabalho de McCulloch, um neurofisiologista muito interessado no cérebro e que basicamente foi co-autor de um paper fundacional das redes neuronais. Por outro lado, diz-nos, “havia, claro, outras dimensões na cibernética, muito mais focadas nas dimensões sociais, em ideias como o feedback, a homeostasia, por aí. Estabelecendo comparações entre a forma como o corpo e as sociedades funcionam, mas não necessariamente a um nivel neurofisiológico.” E Stafford Beer.

O teórico britânico desafiou os limites da cibernética ao ponto de criar a sua própria disciplina chamada Gestão Cibernética. Uma “mistura estranha de investigação operacional — outra disciplina que praticamente desapareceu do radar —, cibernética e controlo estatístico de processos”, sintetiza Morozov. E se o leitor se pergunta como se cruzam todos estes universos, e como Beer chega a personagem principal de uma história no Chile, a chave está num convite de Fernando Flores, responsável pela CORFO (Corporación de Fomento de la Producción de Chile), para que Beer aplicasse as suas teorias no desenvolvimento da economia chilena.

Beer via na estatística não só uma forma de olhar para o passado para informar decisões, mas como uma campo de simulação para possíveis futuros, como descreve Morozov: “Beer deu um passo à frente e disse: ‘nós sabemos como é o passado e que tal se pudessemos simular o futuro e tentar agir em conformidade?’.” E foi partindo dessa ideia que foi desenvolvendo a teoria sobre grande parte dos componentes que viriam a integrar o projecto Cybersyn.

Diria que no final dos anos 50, início dos anos 60, todos os componentes-chave da Cybersyn já estavam na sua cabeça — a sala de operações, o modelo de simulação, algum tipo de recolha de dados em tempo real e a sua adaptação a um modelo de uma fábrica”, partilha Morozov.  

Antes de se juntar à equipa de Allende, Beer tivera uma longa e ocupada carreira, quer na teorização da gestão cibernética, quer na aplicação dos seus métodos em ambientes reais. E a sua aproximação ao grupo não surge sem trazer consigo mais densidade para a história. “Ele tinha uma ideia de como gerir uma fábrica de aço perfeita e trouxe-a para o Chile e viu que no Chile podiam gerir, com o mesmo modelo, uma fábrica de fruta ou uma fábrica têxtil. Não tenho a certeza de que essa tenha sido necessariamente a melhor abordagem, mas não havia muitas outras.” 

Por um lado emergia a questão óbvia sobre a eficácia dos métodos; por outro, muitas questões sobre o próprio processo. Morozov não pretende omitir as contradições que enriquecem o personagem, nem fugir a importantes questões. Como o facto de para todos os efeitos ser um britânico a propor uma solução tecnológica a um país do sul global, algo que o próprio Stafford Beer mais tarde criticaria. “É possível que tenha havido uma correspondência entre as duas visões e entre os dois projectos, mas também é possível que Beer estivesse a replicar uma abordagem que ele próprio viria a criticar mais tarde, porque se tornou um crítico deste tipo de solução tecnológica proposta pelo Banco Mundial e outros, que era enviada para os países em desenvolvimento como uma espécie de panaceia para os seus problemas.”

Ou de fazer valer a sua autoridade como cientista de forma pouco democrática para uma revolução socialista em curso: “Ele nunca conseguiu compreender que não basta pedir aos trabalhadores a sua opinião sobre a forma de modelar uma fábrica. Temos de lhes pedir a opinião sobre como modelar todo o sistema, incluindo a forma como os diferentes dados serão interligados, como será a sala de operações e assim por diante” — conta Morozov, concluindo em seguida: “E diria que muitas das pessoas que trabalharam com ele, continuam sem ter essa compreensão”.

Explorando a figura  e a obra de Beer, a riqueza e as contradições somam-se, apesar da complexidade de muitas as suas ideias, Morozov aponta uma dimensão em que apelida a posição de Beer de pré-política: “Ele tinha esta visão utópica da classe alta britânica de que, de alguma forma, o mundo se uniria para resolver todos os seus problemas e construir um governo mundial de algum tipo e é por isso que a referência que fez a este tipo de superestrutura global”. E afirma a perplexidade perante alguém que mesmo depois de ter visto o golpe do Chile, com relativa proximidade, mantém esta assunção de que o mundo podia ser melhor: “É estranho como alguém pode manter este pressuposto pré-político sobre o mundo sem reconhecer que há certos factores e actores que são puramente maus e que fazem coisas não porque estão informados, mas porque estão demasiado informados e sabem exatamente o que estão a tentar obter”.

Para Evgeny Morozov,  Beer, durante a maior parte da sua vida, incluindo nos anos que se seguiram ao Chile, teve uma “atitude muito ingénua” de acreditar que “se ao menos as pessoas se dessem ao trabalho de ler os meus livros e compreendessem o modelo dos sistemas vitais, seriam capazes de compreender plenamente a forma de resolver os problemas do mundo”. Mas isto não significa que desprezasse a complexidade dos fenómenos, antes pelo contrário: “Uma das maiores virtudes do pensamento Beer era precisamente a forma como aceitava a complexidade como algo natural, inevitável e, em última análise boa”. E essa pode também ser um dos seus maiores ensinamentos. 

“Basicamente, Beer diz que o mundo está a tornar-se cada vez mais complexo. Que isso é normal, e que se quisermos ter pessoas livres temos de o aceitar. Que só se pudéssemos ter pessoas que são completamente controladas pela lei, pela religião e pela moralidade e que se comportam de forma previsível, teríamos simplicidade e o mundo pareceria estável. Será que queríamos mesmo viver num mundo assim?” — reflecte. Tecendo uma nova ligação ao presente, Morozov sugere que a ideologia que mais se popularizou na resposta à complexidade foi o neoliberalismo, com o mercado como resposta para tudo, mas as suas consequências estão à vida. “E o custo disso é que toda a sociedade tem de ser estruturada pelo mercado.”

Para Beer não tinha de ser assim. Nem a complexidade tinha de ser rejeitada, nem o mercado tinha de ditar as regras e moldar a tecnologia. Em vez disso, a tecnologia poderia ser moldada de forma que a complexidade pudesse gerar para todos os intervenientes — e criar infraestruturas para fazer essa transição devia ser uma das prioridades. E se a queda (ou devemos dizer destruição) deixam a conjectura de alternativas ao presente no campo da pura especulação, as forças que o fizeram cair ajudam a perceber a tendência hegemónica que se instalou online nas décadas seguintes.

Vídeo gravado depois de 1973 e do fim do projecto Cybersyn, em que Stafford Beer explica parte do projecto.

Os antagonistas e a teoria da dependência

Como é elementar numa história, não existem protagonistas sem antagonistas, e na verdade, o tempo da série divide-se entre ambos, até porque foram os segundos a triunfar. E mesmo nas ligações que se estabelecem o presente se repartem pelos dois lados da barricada. O triunfo do neoliberalismo como paradigma de desenvolvimento subjacente à hegemonia norte-americana no mercado da tecnologia está à vista de todos. Quando questionado sobre isto, Morozov devolve uma interessante reflexão — com outra dos projéteis do seu malabarismo — a teoria da dependência: “Porque havia de estar alguma coisa diferente? Uma das mensagens principais da teoria da dependência, que era um dos enquadramentos dos Santiago Boys, é a de que o progresso tecnológico pode conter elementos reacionários, certo? Que podemos ter tecnologias cada vez mais recentes, mais rápidas e mais brilhantes, mas que, no entanto, atrasarão o desenvolvimento económico de um determinado país e resultarão em problemas políticos e económicos maiores, pelo menos para algumas regiões do mundo.” E explica-nos de seguida como esta crítica nasceu como reação ao projecto de industrialização aos países da América Latina. Como expressão de uma vontade que se sintetizou num curto excerto de um discurso de Allende citado no podcast, a reclamação do direito a encontrar soluções próprias. 

“Os teóricos da dependência diziam que a industrialização, se for feita nos termos do norte global, acaba por criar dependências. Por criar a necessidade de comprar patentes, de pagar por direitos de autor e marcas registadas para que as fábricas funcionem” continua a sua reflexão, ilustrando como hoje os termos podem ser diferentes. “Se não construirmos a nossa própria tecnologia, vamos ter sempre tecnologia estrangeira. E isso foi essencialmente o que aconteceu antes e está a acontecer agora, com a Inteligência Artificial, a computação em cloud, o 5G e todas essas infraestruturas dominadas por um punhado de players.”

Na história dos Santiago Boys também há uma evil tech, a original big tech, como lhe chama Evgeny Morozov num tweet. Apelido que justifica rapidamente: “A ITT (International Telephone & Telegraph) é interessante porque ajuda a pôr a nossa histeria em torno das big tech em perspectiva. Por um lado, mostra que estas empresas sempre tiveram uma relação muito estreita com o poder e que sempre estiveram próximas do complexo industrial militar, das agências de informação, da CIA, etc. Por outro lado, mostra-nos que sempre se apoiaram em Wall Street e no financiamento privado para se expandirem.”.

A presença da ITT na história tem todos os condimentos de uma série de acção e não falta tensão, conspiração e violência. Para lá do citado conluio com as forças de inteligência norte-americanas, Morozov relata as táticas de subversão empregues pela ITT – apoiando os opositores de Allende – as tensões entre a presidência socialista e a empresa norte-americana, as mortes colaterais por descobertas indevidas, mas também a forma violenta como lhe era feita frente. “No caso da ITT, houve uma série de ataques terroristas. Por isso, as pessoas que agora pensam que estamos a viver a era do techlash, porque as pessoas estão a escrever tweets furiosos, ainda não viram nada sobre o techlash. O verdadeiro techlash é muito mais forte.”

A tensão entre o passado e o presente é uma constante da história, contudo, nem sempre explícita. Dado o carácter quase documental que a série toma, apesar da marca ideológica, o podcast está longe de assumir uma toada demagógico. De resto, é nesse aspecto, ele próprio, uma síntese de algumas das ideias fundamentais que marcaram a carreira dos seus protagonistas. Morozov não pretende prescrever uma solução, nem descrever como seria a Internet ou a I.A. Socialista — apelidos comuns do projecto Cybersyn. Por outro lado, quer mostrar a necessidade de qualificar o olhar sobre a tecnologia. Posicionando-a como uma ferramenta ao serviço da política e não como uma forma de sujeitar a política e a democracia aos interesses privados e do capital e do neoliberalismo, que resumem tudo a relações de mercado. “Quando se reorienta o projeto político, começa-se a olhar para as infra-estruturas tecnológicas com outros olhos, percebe-se que elas têm uma importância diferente para nós, por isso temos de as defender. E temos de nos certificar de que permanecem nas nossas mãos, porque não acreditamos que Silicon Valley proporcione complexidade suficiente a longo prazo e nos permita geri-las nos termos que desejamos, sem produzir todos os efeitos corrosivos da vigilância das notícias falsas, etc.”  — reflecte. 

Fechando o ciclo de 1970 até 2023, a conversa termina com uma breve incursão sobre um dos temas de maior emergência: a Inteligência Artificial. Uma incursão que ilustra bem como as diferenças ideológicas são gritantes, até na definição do que é a própria inteligência. Para Morozov, “a inteligência nunca foi individual, não está só nas nossas cabeças ou nas nossas mãos, está também nas nossas instituições, na forma como somos formados e educados, e a que recursos temos acessos”.  Episódios como este revelam como tem sido escasso o debate nesse sentido e como têm sido parcos os esforços para democratizar e globalizar a tecnologia, habitualmente resumidos a um novo escritório de uma empresa norte-americana numa capital europeia financiado por subsídios estatais. 

Olhar para a história, perceber a sua densidade, e a forma como linhas distantes se cruzam, e como forças obscuras moldam a superfície, tem de servir para mais do que reconhecer os intervenientes do passado, para nos preparar para descortinar semelhantes percursos históricos que se desenrolam à frente dos nossos olhos.

Autor:
14 Agosto, 2023

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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