O “terror” que nos governa

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O “terror” que nos governa

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Tal como aconteceu na televisão por estes dias, antes de se questionar e escrutinar os comunicados policiais e os diagnósticos de especialistas, optou-se por mergulhar de cabeça nos cenários mais aterradores e só depois se foi desmantelando gradualmente, pela força dos factos, a densa teia de especulações e frases grandiloquentes.

Na tarde do dia 10 de fevereiro, a Polícia Judiciária (PJ) emitiu um comunicado, com o título “Impedida acção terrorista”, a informar ter realizado uma operação, através da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT), que envolveu investigação prévia, buscas e detenção, por “suspeitas de atentado dirigido a estudantes universitários da Universidade de Lisboa”. Nas buscas efectuadas foram “apreendidos vastos elementos de prova”, entre eles “várias armas proibidas” e “artigos susceptíveis de serem usados na prática de crimes violentos”, “vasta documentação” e “um plano escrito com os detalhes da acção criminal a desencadear” (itálicos nossos). O detido, um estudante de 18 anos, foi indiciado pela prática do “crime de terrorismo” e encontra-se, ainda, detido preventivamente.

A descrição vaga do comunicado (com o recurso a termos enfáticos, mas imprecisos, sobre o que foi encontrado e o que estava em preparação) abriu a cortina para uma noite frenética de comentários, apreciações e especulações sobre o evento interrompido. Especialistas em segurança e terrorismo, advogados, psicólogos e psiquiatras, “tudólogos”, mobilizaram-se para falar do que aconteceu e do que não aconteceu e para adiantar pormenores de “última hora”, adensando o espectáculo com elementos tenebrosos, como as eventuais motivações do autor, a posse de armamento num país onde a sua obtenção é difícil, o alegado recurso à “darkweb” pelo detido, a sua relação com “redes internacionais” de criminalidade e o “planeamento detalhado da acção”. No meio de uma névoa que só lentamente se foi dissipando nos dias seguintes, poucos foram os que procederam cautelosamente face ao que se sabia, nomeadamente quanto ao uso da sugestão de “crime de terrorismo” avançada pela PJ para classificar o acto. Na SIC Notícias, o especialista em segurança Diogo Noivo e a psicóloga Cátia Moreira de Carvalho foram os primeiros a colocar em causa a classificação de “terrorismo”, alertando para o risco de gerar um alarmismo social perigoso e para a banalização do termo, recordando o uso inconsequente da expressão na história recente portuguesa (dando como exemplo o ataque à academia de Alcochete), permitido pela exagerada abrangência da lei portuguesa sobre o que define um acto ou grupo terrorista1. Perante um Nuno Rogeiro arrogantemente desinteressado de se distanciar das possibilidades abertas pelo cenário sugerido pelo comunicado da PJ, o esforço quase passou despercebido. Negando surpresa perante o caso, pela inevitabilidade de este tipo de casos surgirem em Portugal mais cedo ou mais tarde, Rogeiro acrescentou que “Portugal é, hoje, um país (…) onde há uma grande internacionalização, muitos contactos, pessoas que são representantes de entidades de fora, pessoas que têm ideias que seriam impossíveis há 10/20 anos”, para anunciar categoricamente que “saímos da nossa tranquilidade para aquilo a que poderíamos chamar a normalidade internacional”. Apesar de considerar que a existência de motivações ideológicas não são condição necessária para classificar um acto como terrorista, não deixou de afirmar que “a suspeita” era a de que estaríamos perante “um crime com motivações que podíamos chamar, entre aspas, ‘político-ideológicas’”.

“O especialista em segurança Diogo Noivo e a psicóloga Cátia Moreira de Carvalho foram os primeiros a colocar em causa a classificação de “terrorismo”, alertando para o risco de gerar um alarmismo social perigoso e para a banalização do termo

A agenda securitária

Para Nuno Rogeiro, em suma, a ocasião rapidamente se apresentou como uma oportunidade para defender um uso amplo da palavra “terrorismo”, capaz de abranger o maior número de crimes possível, definindo-o como qualquer “crime contra a polis” (uma definição tão vasta que permite encaixar nela o acto de deitar lixo na rua ou qualquer acto de vandalismo sobre um equipamento público). Mas muitos foram os comentadores que se apressaram a capitalizar o acontecimento para fazer apelos ao reforço dos meios de investigação policiais e para introduzir na opinião pública a necessidade urgente de rever os quadros jurídicos vigentes para permitir, por exemplo, o uso de metadados nas investigações. Para Jorge Bacelar Gouveia, presidente do Observatório sobre Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), o acontecimento em causa lembrava “ao poder político a necessidade que há de fazer as reformas que há muito são pedidas, (…) especialmente no caso dos serviços de inteligência no acesso a metadados”, posição que foi repetida pelos mais diversos intervenientes nos dias que se seguiram, entre eles, Marques Mendes, no seu espaço de comentário televisivo dominical. O facto de a informação ter sido facultada às autoridades portuguesas por uma polícia estrangeira, o FBI, com mais meios para vigiar as redes sociais e a “internet obscura”, reforçavam o apelo e evidenciavam as limitações das autoridades portuguesas, dependentes da colaboração estrangeira para obter certas informações.

O desenrolar dos acontecimentos, e o esclarecimento dos pormenores envolvidos, gradualmente diminuídos na sua extensão e alcance pelos factos conhecidos, não matizaram tais esforços. Pouco a pouco, o plano do atentado revelou-se não ser assim tão sofisticado e detalhado como se sugeria, o armamento encontrado era quase risível face ao que se aventou inicialmente2, o recurso à “darkweb” foi descartado (o que não impediu todo o tipo de descrições sensacionalistas de redes sociais banais, como o Discord – aqui e aqui) e a mastermind criminal por trás do plano era, afinal, um jovem isolado, possível vítima de bullying e com indícios de perturbações psicológicas. Mesmo o crescente consenso quanto a não estarmos perante um atentado terrorista não impediu que se continuasse a alimentar um certo alarmismo e a expansão de uma agenda securitária. Na verdade, tudo o que persistiu da narrativa que acompanhou os primeiros momentos da notícia foi, precisamente, essa agenda.

Não está obviamente em causa a gravidade do evento que se afirma ter sido interrompido. Mas a forma como se nomeia e descreve algo com tamanha seriedade, exige rigor. Até porque num caso como este há potenciais consequências que não afectam apenas o suspeito (a presunção da inocência, constitucionalmente protegida, já de si fragilizada pela espetacularização mediática sobre “crimes comuns”, dilui-se rapidamente perante a palavra “terrorismo”), mas toda a sociedade. A escolha que se faz das palavras para caracterizar algo condiciona a nossa percepção, afecta a intervenção policial e a sua legitimidade, e, no caso do terrorismo, pode resultar em penas bastante distintas das de um homicídio de múltiplas vítimas, por exemplo. O crime de terrorismo é, aliás, dos poucos actos criminosos cujo acto preparatório é suficiente para suscitar a detenção de um suspeito. E foi tendo isso em conta que muitos comentadores procuraram justificar o uso discutível da classificação de “terrorismo” por parte das autoridades, já que permitiria desencadear procedimentos processuais e mobilizar meios e recursos capazes de agilizar a investigação e a intervenção3 (uma possibilidade mais assustadora do que aparenta à primeira vista, não só pela especificidade do “crime de terrorismo”, mas por revelar uma instrumentalização quase arbitrária da lei, sem consideração pelo crime em si, com todas as consequências sobre direitos e liberdades que isso implica).

Uma das dúvidas que se colocou entretanto, visou a decisão de divulgar a acção desencadeada pela Polícia Judiciária, especialmente estando perante um acto que não se concretizou e com o potencial de impactar profundamente a sociedade civil. Com a clarificação dos detalhes do crime planeado, a resposta a essa pergunta tornou-se cada vez mais premente. Afinal, tal como se disse, dissipados muitos dos pormenores sombrios que integraram a especulação inicial sobre o caso (adensados pela linguagem críptica do comunicado policial e, quiçá, pela ignorância e sanha fantasiosa dos órgãos de comunicação social), o que parece ter sobrado foi apenas o aproveitamento de um clima alarmista para reforçar desígnios securitários perigosos. Em suma, o uso do termo terrorismo no comunicado policial, mesmo que tenha sido usado “estrategicamente” para fins processuais, coloca-nos perante questões de enorme gravidade.

Não está obviamente em causa a gravidade do evento que se afirma ter sido interrompido. Mas a forma como se nomeia e descreve algo com tamanha seriedade, exige rigor.

Governar pelo medo

Tudo o que tem acontecido recorda-nos que “terrorismo” vai muito além de uma definição jurídica precisa; “terrorismo” é, antes de mais, um conceito com um carácter “fantasmagórico”, quase sempre dependente de um gesto soberano e de uma classificação impositiva exterior ao acto e ao indivíduo. O seu uso foi, e é, frequentemente instrumentalizado com o propósito de criar um “outro”, distinto de um “nós”, alguém invisível e ameaçador dos nossos “costumes”, “cultura” ou “estilo de vida”. Constitui uma ameaça difusa, contínua, que não se encerra num acto, nem no próprio indivíduo, contrariamente ao que acontece com outros crimes, inclusivamente crimes de grande escala. Não por acaso, todos somos chamados a combatê-lo e a permanecer vigilantes. A “ameaça terrorista” tem uma existência que está aquém e além do próprio acontecimento, mantendo uma relativa autonomia deste, como se percebe pelo medo que gera em Portugal sem que para tal tenha contribuído a existência de atentados em território nacional em anos recentes. Um dos seus móbeis é, precisamente, o medo e é ele que torna contagioso o uso da palavra, tanto para aquele que por ele é visado, como para aquele que lhe resiste e o questiona: todos parecem tornar-se irremediavelmente suspeitos.

Não é possível, portanto, entender as tentativas a que temos assistido para estender o seu significado sem ponderar os riscos que acarreta e, em particular, sem ter em consideração os usos políticos a que sempre se prestou. O significado difuso de “terrorismo” e a impossibilidade de o definir com objectividade, são justamente o que permite que a ameaça do “terrorismo”, como algo que paira sobre a sociedade, sirva recorrentemente propósitos governamentais e de controlo social, criminalizando a dissidência e os conflitos que atravessam as sociedades.

O pânico gerado pelos ataques de 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos, trouxe a palavra “terrorismo” para o centro dos nossos temores colectivos e propiciou revisões legislativas profundas, permitindo reforçar os meios e métodos de vigilância e de intervenção policial de formas antes impensáveis. A “prevenção” passou a ser uma das principais preocupações das autoridades e, com isso, abriu-se espaço para intervir sobre sujeitos considerados suspeitos – pelas suas ideias e pelos seus modos de vida – independentemente de estarem a planear ou pretenderem realizar qualquer acto considerado violento. O próprio recurso ao “medo, coerção e intimidação” (para usar os termos presentes na definição sugerida pelo Global Terrorism Database) passou a ser algo meramente instrumental para a classificação do acto, bastando a motivação política ou ideológica para lançar a suspeita.

Tal como aconteceu na televisão por estes dias, antes de se questionar e escrutinar os comunicados policiais e os diagnósticos de especialistas, optou-se por mergulhar de cabeça nos cenários mais aterradores e só depois se foi desmantelando gradualmente, pela força dos factos, a densa teia de especulações e frases grandiloquentes.

A adivinhação como método: preterrorismo, precrime e contraterrorismo antecipatório

Nos últimos anos, expressões como “preterrorismo”, “precrime” ou “contraterrorismo antecipatório” (preemptive counter-terrorism) banalizaram-se e têm servido para normalizar práticas de investigação, vigilância e repressão de tal forma draconianas e arbitrárias que o seu alcance parece irrestrito4. Desde logo, a necessidade de antecipar eventuais atentados terroristas, legitimada pela “ameaça” sempre latente e alimentada por alguns dos actos hediondos a que assistimos nos últimos anos, fez da “previsão” – definida por critérios convenientemente latos – um factor suficiente para agir e prender suspeitos de crimes que nunca aconteceram. Sublinhe-se que nesses conceitos não está apenas em causa a consideração de indícios criminais a partir dos quais toda a investigação opera. Está em causa a própria possibilidade de construir uma acusação, efectuar uma detenção ou agir coercivamente por antecipação sobre alguém considerado “suspeito” como medida “preventiva”, segundo padrões pré-determinados, e definidos por algoritmos, estatísticas ou simples conveniência política5. Tal como aconteceu na televisão por estes dias, antes de se questionar e escrutinar os comunicados policiais e os diagnósticos de especialistas, optou-se por mergulhar de cabeça nos cenários mais aterradores e só depois se foi desmantelando gradualmente, pela força dos factos, a densa teia de especulações e frases grandiloquentes. As questões que deviam ter sido colocadas desde o início só ganharam protagonismo quando o ambiente já estava criado. Felizmente, e apesar dos efeitos nefastos, a espectacularização mediática não tem o poder de prender e condenar alguém. 

Para alguém ser considerado “preterrorista”, ou para justificar uma acção antecipativa, é suficiente um comportamento distintivo, um determinado perfil ideológico ou psicológico, a pertença a um grupo étnico ou religioso, a opção de não usar redes sociais ou smartphones (visto como sinais de deslocamento social ou atitudes anti-sociais). Nas palavras do Professor de Direito Simon Bronitt, “under this model it is legitimate to punish and coerce without evidence and before any terrorist act, even a ‘terrorist act’ under the legislation that involves no harm or plan to do harm. The rationale of prevention takes priority over other considerations including the rights of the accused and the need for reliable and convincing evidence of guilt prior to punishment. Anti-terrorism legislation is ‘preemptive’ in that it seeks to punish or apply coercive sanctions on the basis of what it is anticipated might happen in the future”6.

Recorde-se, aliás, que, quando se fala da necessidade de permitir o acesso dos serviços de inteligência aos metadados (pretensões chumbadas, por duas vezes, pelo Tribunal Constitucional, em Setembro de 2015 e Outubro de 2019) é a mesma lógica preventiva que subjaz práticas descritas que está em causa. O acesso a metadados pode ser concedido por autorização judicial no âmbito de requisições devidamente fundamentadas, sustentadas por suspeitas sólidas e no âmbito de investigações criminais em curso. O que se reclama, portanto, é um acesso irrestrito ao tráfego de dados, ao conteúdo das comunicações, à informação bancária, à informação fiscal e à localização de qualquer cidadão, sem ter como base qualquer suspeita, sem se relacionar com uma investigação criminal e por “simples” decisão https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistrativa das forças de segurança. 

Não falamos meramente de cenários hipotéticos. Como exemplo, mencionemos dois dos exemplos mais mediatizados. 

No dia 31 de julho de 2007, a polícia federal alemã efectuou buscas nas habitações e nos escritórios de Mathias B. e Andrej Holm, dois sociólogos especialistas em gentrificação, detendo-os juntamente com três outros indivíduos7. Sobre eles recaía a suspeita de pertencerem a um grupo denominado “militante gruppe” responsável por ataques incendiários contra autoridades e instituições públicas. B. era acusado de usar nas suas publicações académicas “frases e palavras-chave” presentes em documentos do referido grupo, o que era reforçado por ser doutorado, e, por isso, intelectualmente capaz de “escrever os [seus] textos sofisticados”, e, também, por ter acesso a bibliotecas, enquanto investigador, que lhe permitiam efectuar “a pesquisa necessária para redigir os textos” em causa. Acusação curiosa: B. não era acusado de ter escrito os textos, mas sim de ser intelectualmente capaz de os escrever. Sobre Holm sublinhava-se o facto de conhecer membros do referido “militante gruppe” e de ter participado na “resistência montada pela extrema-esquerda contra a Cimeira Económica Mundial, em Heiligendamm, no ano de 2007”, ou seja, ter participado num protesto. Nos factos a sustentar a detenção, constava, ainda, o facto de não ter levado “intencionalmente” o telemóvel para um encontro com alegados membros do grupo, o que sugeria um “comportamento conspirativo”. Holm esteve preso em “solitária” durante três semanas. Em 2010, todas as acusações caíram por ausência de provas.

Em 11 de Novembro de 2008, vinte jovens foram detidos em vários pontos de França. No centro do país, na vila de Tarnac, com uma população com cerca de 300 habitantes, e onde nove destes jovens possuíam uma quinta e uma mercearia cooperativa, a operação envolveu helicópteros e 150 agentes da polícia antiterrorista. O caso foi amplamente mediatizado e ficou conhecido como “Tarnac 9”. Sobre eles recaía a acusação de terrorismo, por actos de sabotagem em linhas férreas de TGV que causaram atrasos a mais de 160 comboios, e era sublinhada a sua ligação ao que as autoridades chamaram “ultra-esquerda” e a uma misteriosa “célula anarco-autonomista”. Como rapidamente se foi percebendo pelos detalhes divulgados que sustentavam a acusação, na ausência de provas concretas (apesar de alguns deles se encontrarem sobre vigilância há anos), foi o estilo de vida e as crenças dos detidos que sustentaram a acção, nomeadamente a alegada autoria de um livro intitulado “A insurreição que vem”, assinado pelo chamado “Comité Invisível” (um livro que se tornou uma referência em meios activistas de esquerda em praticamente todo o mundo). Segundo a Ministra do Interior, Michèlle Alliot-Marie, não havia qualquer indício de ataques a pessoas, mas sublinhava-se o facto de “nunca usarem telemóveis” e viverem “em zonas em que era difícil a polícia obter informações sem ser detectada”. Nas palavras do filósofo Alberto Toscano, que acompanhou o caso de perto, “o próprio facto de viverem colectivamente e rejeitarem uma surpreendentemente restritiva noção de normalidade” tornou-se incriminatório por si só8. O caso só foi encerrado em 2018, com as acusações de conspiração e sabotagem a serem retiradas, depois de em 2015 terem caído as acusações de terrorismo.

Neste caso em particular, destaca-se, ainda, a “cooperação internacional” que acompanhou a investigação e que remete para outros escândalos policiais entretanto conhecidos, como o caso dos agentes britânicos infiltrados em meios activistas. Mark Kennedy que actuou como agente infiltrado e agent provocateur durante sete anos em grupos activistas de esquerda, e que se envolveu, nessa condição, em relações íntimas com diversas activistas (com a anuência dos seus superiores), tornou-se o agente mais célebre desta polémica, depois de a sua identidade ter sido revelada. Numa das sessões do processo do “grupo de Tarnac”, constatou-se que alguns dos elementos processuais sobre os suspeitos tiveram origem na actividade deste e de outros agentes infiltrados e, portanto, foram obtidos através de meios ilegais9.

Nas palavras do filósofo Alberto Toscano, que acompanhou o caso de perto, “o próprio facto de viverem colectivamente e rejeitarem uma surpreendentemente restritiva noção de normalidade” tornou-se incriminatório por si só8.

Conclusão

Ainda que aparentemente mais sustentado quanto à relação do suspeito com o acto interrompido, o caso português, por comparação com os exemplos referidos, parece mais anedótico nas suas consequências sociais. Em comum, há a acção preventiva, com base em indícios de algo por acontecer, mas é manifesta a ausência de motivações ideológicas por parte do autor do alegado atentado. Contudo, a forma como tem sido aproveitado para apelar a mudanças legislativas, e para fazer avançar uma agenda securitária, reclama alguma cautela na análise. 

Que em Portugal o “combate ao terrorismo” não tenha sido usado para criminalizar e perseguir certas ideologias e práticas políticas, deve-se certamente mais ao carácter residual das actividades de grupos “subversivos” do que a um particular cuidado com o estado de direito democrático. Nos Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI), aliás, incluem-se invariavelmente referências a actividade de grupos “anarco-autonomistas” em Portugal (uma classificação sem qualquer precisão, mas que invoca directamente aquela usada pelas autoridades francesas no caso Tarnac), sublinhando-se a sua pouca actividade, mas também o facto de manterem contactos “com os seus congéneres europeus, alguns dos quais com actividade terrorista de baixa intensidade”. A vigilância é evidente, tal como a associação linear de determinadas ideias políticas com práticas “terroristas”. Alexandre Guerreiro, ex-membro do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e “analista de política e segurança”, no próprio dia da divulgação do comunicado da PJ, assinalava justamente, na SIC Notícias, que “a principal ameaça às democracias e sociedades europeias são os extremismos de direita e de esquerda”, tendo o jihadismo, hoje, “um carácter residual”. Como exemplo, referia a detenção em Portugal de “um indivíduo acusado de terrorismo, (…) um anarquista espanhol, que podia estar a preparar ataques”. O referido anarquista espanhol (também mencionado no RASI) era Gabriel Pombo da Silva, autor de diversos crimes, pelos quais cumpriu 30 anos de prisão, como “roubo à mão armada a agências bancárias”, “extorsão a empresários” e o homicídio do dono de uma casa de alterne. Vivia há um ano e meio no norte de Portugal, com a esposa e com a filha, quando foi detido, em 25 de Janeiro de 2020, ao abrigo de um “Mandado de Detenção Europeu”, emitido por um tribunal espanhol, para expiar crimes passados e não por qualquer acusação de terrorismo ou por suspeita de “estar a preparar ataques”. Mas para a imprensa portuguesa, e para as autoridades, o que sobressaiu sempre, mais do que os crimes que cometeu, foi a sua militância política, como se se tratasse de algo que agravasse a sua perigosidade (tal como sugere a invocação do caso por Alexandre Guerreiro).

A “Lei de combate ao terrorismo” portuguesa não exige qualquer motivação ideológica para que um acto ou um grupo sejam considerados terroristas. A interpretação do que é ou não terrorismo fica ao critério das autoridades e da sua interpretação de uma lei que concede uma amplitude desmedida, onde cabe qualquer acto que possa ser considerado antagónico à “normalidade” estatal e social. A facilidade com que recaiu a acusação de terrorismo sobre o jovem de 18 anos agora detido, a forma como se alimentou um cenário alarmista, quase catastrófico, e o uso do caso para defender revisões legislativas, constitucionais, e a concessão de mais meios e poderes para as autoridades policiais, devia lembrar-nos que o Estado de Direito é algo frágil e permanentemente ameaçado. Nas intervenções assentes em noções de “precrime”, “preterrorismo” e “contraterrorismo antecipatório”, está sempre presente um exercício de construção identitária normativa e de especulação sobre as intenções futuras do sujeito visado. Inevitavelmente, como tem acontecido, e tem sido assinalado por diversos investigadores, tais práticas incorrem em métodos discriminatórios assentes no profiling “racial”, cultural ou ideológico e na sua criminalização. Como demonstra todo este caso do “ataque terrorista” impedido pela PJ, e como vimos pelo tratamento concedido pela comunicação social – a reprodução explícita ou sub-reptícia de cenários catastróficos e a enunciação desmedida das “vulnerabilidades” e “riscos” que pairam sobre nós, mas que de outra forma ninguém se lembraria, pela suspeição lançada sobre ideologias políticas, formas de vida ou até jogos, anime e internet, por exemplo –, as nossas liberdades e direitos não ficam bem entregues se deixadas unicamente nas mãos dos grandes média e das autoridades. 

O medo e o alarmismo não podem servir critérios de condução das políticas e quadros legais governativos. Se assim for, não é o terrorismo que estamos a combater; é o terror que nos está a governar. E num tempo em que crescem ideologias autoritárias, e a adesão a formas de poder discriminatórias, repressivas e punitivas, esta preocupação devia ser uma prioridade. Afinal, amanhã, podemos ter no governo gente que não se conteria perante qualquer obstáculo no uso todos os recursos disponíveis para efectivar os seus desígnios ditatoriais.

1 – Ver a “Lei de combate ao terrorismo” n.º 52/2003, em particular o Artigo 2.º e o Artigo 4.º.
2 – Segundo o Correio da Manhã, “sofisticadas bestas e respectivas setas, facas de vários tipo, gás e outro combustível por identificar e até um martelo foram apreendidos na casa do suspeito”, em https://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/facas-de-combate-sofisticadas-bestas-gas-e-combustivel-conheca-o-arsenal-que-seria-usado-no-ataque-a-faculdade.
3 – Uma tese contrariada por acontecimentos anteriores em que autores de crimes, que aconteceram de facto, foram acusados de terrorismo e viram a acusação cair posteriormente. Veja-se, por exemplo, o caso do jovem indiciado por terrorismo (por um evento semelhante a este), em 2013: https://observador.pt/2022/02/11/o-caso-do-jovem-de-massama-indiciado-por-terrorismo-que-acabou-internado.
4 – Em 2008, já Marieke de Goede contestava a ideia de que esta seria uma tendência principalmente norte-americana e que na Europa seria residual, e.g. 2008, “The Politics of Preemption and the War on Terror in Europe”, European Journal of International Relatorions 14 (1), pp. 161-185.
5 – Vale a pena lembrar que esta abordagem não é inteiramente nova. O foco numa hipotética “natureza” do criminoso e não na natureza do crime, identificando predisposições criminais inatas ou adquiridas, pode ser encontrado na criminologia positivista que surge no século XIX e, em especial, nos trabalhos do italiano Cesare Lombroso. O que é novo são os recursos e meios tecnológicos ao dispor das autoridades.
6 – 2008, “Balancing security and liberty: critical perspectives on Terrorism Law Reform”, in Gani, Miriam & Mathew, Penelope (eds.), Fresh Perspectives on the ‘War on Terror’, Canberra: Australian National University, p. 78.
7 – Ver o artigo dos sociólogos Richard Sennett e Saskia Sassen, no The Guardian, sobre o caso: https://www.theguardian.com/education/2007/aug/21/highereducation.uk1.
8 – Idem.
9 – Sobre as actividades de Mark Kennedy, e o seu envolvimento com o “grupo de Tarnac”, ver https://euro-police.noblogs.org/2012/04/mark-kennedy-a-mole-in-tarnac.

Índice

  • Diogo Duarte

    Diogo Duarte destapou o horizonte pelo punk-hardcore e fez-se ao caminho. Formou-se em antropologia, escreveu uma tese de doutoramento sobre a história do anarquismo em Portugal e é investigador no Instituto de História Contemporânea/ NOVA-FCSH. Trabalha sobre o passado das culturas populares e das culturas políticas e conhece o presente pela mão de pessoas em situação de sem abrigo. Nas horas vagas, escreve sobre música.

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