«A maior dificuldade é manter os temas relevantes quando o factor trending desvanece»

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Rita Pinto / Shifter

«A maior dificuldade é manter os temas relevantes quando o factor trending desvanece»

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Este artigo foi originalmente publicado na 3ª edição da Revista Shifter.

Em 1995, Dwight Ozard e Fred Clark cunhavam o termo Slacktivism, pensado para abreviar a expressão “slacker activism”, que se traduz para português como “activismo preguiçoso”. O termo referia-se a acções simples que podem eventualmente afetar a sociedade mas a uma escala pequena e pessoal como, por exemplo, plantar uma árvore em vez de participar num protesto, e começou por ter uma conotação positiva. Com o avançar dos anos, a proliferação da Internet facilitou a propagação de mensagens e a criação de comunidades, e o Slacktivism evoluiu naturalmente para Clicktivism ou Hashtivism — do sofá, o activismo preguiçoso passou para os teclados e os ecrãs. A tal facilidade da participação online levou a expressão a ser analisada com outro olhar e a “preguiça”, associada à ideia de que pequenos passos podem ser grandes conquistas, passou a ser vista como os seus sinónimos mais negativos, tipo “displicência”.

O pensador bielorrusso Evgeny Morozov escreveu para a NPR em 2009 que  «Slacktivism é um termo adequado para descrever o ativismo online que praticamos para nos sentirmos bem, sem qualquer impacto político ou social. Isso dá àqueles que participam em campanhas “preguiçosas” a ilusão de ter um impacto significativo no mundo sem que lhes seja exigido nada mais do que aderir a um grupo no Facebook.» Esta sua ideia foi mais tarde aprofundada no seu livro de 2011, Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom, onde relembra a experiência feita pelo psicólogo dinamarquês Anders Colding-Jørgensen anos antes, ao criar um grupo no Facebook anunciando que as autoridades planeavam demolir a histórica Fonte da Cegonha, em Copenhaga. No início, 125 pessoas juntaram-se à causa, mas o número rapidamente cresceu para mais de 27.500 participantes. O objetivo do seu estudo era provar os efeitos prejudiciais deste tipo de solidariedade online por facilitar a aglomeração de apoiantes a causas sobre as quais nada sabem e que, no limite, podem até ser falsas. Para Morozov, este é um dos componentes-chave do Slacktivism: «Será que os ganhos de publicidade obtidos por meio desta dependência maior dos novos media compensam as perdas organizacionais que as entidades ativistas tradicionais provavelmente sofrerão, quando as pessoas comuns começarem a afastar-se das formas convencionais (e comprovadas) de ativismo (manifestações, protestos, confronto com a polícia, litígios estratégicos, etc.) e a abraçar formas mais “preguiçosas” [de ativismo], que podem ser mais seguras, mas cuja eficácia ainda não foi comprovada?»

As críticas ao activismo no digital desdobram-se entre a ideia de que as actividades geradas no online não são eficazes e que diminuem a participação política na vida real, enquanto que no caminho dos elogios se traçam mais-valias como a importância desse tipo de acção em contextos de regimes autoritários repressores, onde o simples “like”, a partilha ou a mudança de foto de perfil pode ser visto como realmente provocador e impactante. É inegável a forma como a Internet veio influenciar as relações sociais — pessoais e em sociedade —, e outras perspectivas explicam-nos que podemos escolher olhar para a influência do online na criação de novas formas de mobilização colectiva e de activismo, em vez de a ver simplesmente como uma ameaça. Se pensarmos em activismo apenas na sua forma de acção direta, de ocupação do espaço público e protestos nas ruas, a tese do jornalista Malcolm Gladwell na qual critica aqueles que comparam as «revoluções» das redes sociais com o activismo «real que desafia o status quo», como escreveu num artigo para a The New Yorker, estará certa. Mas se activismo também for um despertar conjunto de consciências, o passar da palavra espalhando a mensagem, então, a revolução pode realmente vir a ser twittada, como escreveu Leo Mirani no The Guardian, em Sorry, Malcolm Gladwell, the revolution may well be tweeted”. 

Desde o início dos anos 2000, o tema tem sido amplamente investigado, e as conclusões deixaram de se focar tanto na dinâmica eficiência/inutilidade, e mais em perceber uma alteração social que é, no fundo, uma inevitabilidade do clima digital atual. Mais recentemente, o sucesso de movimentos globais como #BlackLivesMatter ou o #MeToo (icónica e ironicamente conhecidos assim mesmo, com a hashtag) esteve intrinsecamente ligado à sua divulgação pelas redes sociais, que aumentou a consciencialização e a participação do público, mesmo offline, levando as causas a ultrapassar fronteiras geográficas e a dar força a vítimas pelo mundo fora. Telma Rodrigues tem 29 anos. Diz-se feminista e «millenial das causas porque os direitos humanos não são negociáveis». Envolveu-se na luta activista de forma mais activa depois de seis anos a trabalhar no sector da aviação — «uma experiência que aguçou a minha consciência sobre desigualdades, preconceitos e a urgência de os combater fora da minha bolha». Sublinha a influência das redes sociais por abrirem a possibilidade de chegar a um maior número de pessoas e de ajudarem a que «algumas pessoas vejam que as suas lutas são também as de outras.» «Acredito que esse sentimento, seja ele gerado por experiências partilhadas ou empatia, pode ser muito poderoso e traduzir-se em acções de mudança.»

Como refere o sociólogo espanhol Manuel Castells em Networks of Outrage and Hope. Social Movements in the Internet, uma perspectiva optimista leva-nos a sublinhar o papel não só democratizador como também «libertador» do digital no activismo. Num certo sentido, o espaço de protesto contemporâneo não pode deixar de ser concebido como um «espaço híbrido», onde a Internet e as ruas se interligam de formas variadas. «Complementam-se mais do que se anulam», diz-nos Airton Monteiro da sua experiência de mais de seis anos em movimentos activistas antirracistas. «Uma pessoa que não vá a uma manifestação física, por qualquer que seja a razão, tem a hipótese de reproduzir no digital essa informação e interessar outras que poderão estar presentes.» 

«A mobilização nas redes sociais é super válida, mas tem de se materializar fisicamente, ou não passarão de cliques.»

Um estudo exploratório sobre activismo digital em Portugal, conduzido em parceria pelo CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa e o CIES – Centro de Investigação e Estudos De Sociologia do ISCTE, realizado entre 2014 e 2015, conclui que as ferramentas digitais e a Internet «são genericamente bem acolhidas pelos ativistas, quanto mais não seja porque, estando estes recursos incorporados no dia a dia dos indivíduos, há uma certa “naturalização” na sua aplicação a determinadas práticas de militância ativista.» Refere ainda que têm uma visão «basicamente utilitária» destes recursos, «que nos fala das oportunidades que eles abrem, não apenas para novas formas de fazer ativismo, mas também para melhorar/potenciar velhas práticas ativistas.»  Quando a preocupação máxima do ativista é cumprir um fim específico e necessário, não existe a tensão velhos/novos modos de fazer ativismo — são, como nos diz Airton, complementares mais do que excludentes. Sara Brandão, que integra a associação Women2Women Portugal, também se mantém positiva nesta visão, mas conta ao Shifter que esta é uma perspectiva cada vez mais rara se trouxermos para a equação a ideia de Activismo Performativo: «Acredito que os movimentos ativistas fora da Internet não estão em risco porque, felizmente, surge sempre a necessidade de partir para a prática. No entanto, esta é uma visão muito positiva deste tema porque sei que o ativismo nos media também fez com que muita gente se considerasse ativa pelo simples ato da partilha online.» 

«Seja qual for a luta, é importante que as pessoas estejam informadas, caso contrário esse ativismo performativo torna-se inevitável.»

Vale a pena lembrar a dupla dimensão do acto activista: o Eu e o Outro; a componente egoista de apoiar o outro. Sendo as redes sociais um palco de performance em si, um espaço onde tantas vezes a imagem do que gostávamos e queríamos ser se sobrepõe ao que realmente somos, como nos diz Telma: «Acredito que a pressão gerada pelas redes sociais para reagirmos o mais rapidamente possível ao dito “assunto do momento”, leva a reacções ou partilhas vazias. A meu ver, isso parte também de uma incapacidade de auto-crítica ou reflexão em relação ao modo como certas pessoas beneficiam directa ou indirectamente de determinadas opressões. Este pseudo-activismo pode ficar muito bem num tweet ou num story mas acaba por se escudar num trágico ‘mas’ quando surgem conversas onde que é essencial olharmos para nós.» Sara acrescenta que «o ativismo performativo é sempre prejudicial se der mais voz a quem o verbaliza do que a quem se designa. Não é uma forma de ativismo o querermos que nos ouçam e não ouvirmos — esse falar na primeira pessoa sobre a situação de um/a outro/a.» Mas como é que se combate essa optical-allyship, a aliança que existe mais pelas aparências do que pela participação activa, num mundo digitalizado que nos confronta cada vez mais com as aparências vs a realidade? 

Airton que, com Telma, criou o movimento Ponto Parágrafo, uma ação localizada em que se aproveitou a afluência à aplicação Clubhouse para organizar ciclos de conversas sobre as formas como o racismo se manifesta em Portugal, fala das modas do online, numa altura em que a consciência do aumento de ativistas performativos já leva a moda a ser o oposto, excluindo completamente o ativismo do digital: «Tanto quem se quer mostrar solidário, sem realmente ser, como quem quer ser do contra, sem saber porquê, batalham por atenção e internet points em vez de procurarem informação.» Sara Gomes, que também participou nas conversas Ponto Parágrafo, também referiu estas contrariedades associadas a uma falta de informação generalizada e prejudicial, numa crónica que assinou no ano passado para o Público chamada “Agora tudo é racismo”. Ao Shifter, diz que percebe «que o activismo influencer acabe por ultrajar quem se dedica 100% aos temas ou já fazia um trabalho relevante no terreno. Compreendo a sensação de “esvaziar” a mensagem e o medo de esta se tornar apenas mais um momento fugaz (partindo imediatamente para outro tema da moda). Mas a realidade é que a mensagem acaba por ser amplificada.» 

«A necessidade extrema de sentir a 200% e partir a 400% para outro tema é algo inerente à sociedade actual e lutar contra isso pode ser infrutífero. Decerto, a maior dificuldade é manter os temas relevantes quando o factor trending desvanece.»

«Temos de saber distinguir a intenção do impacto. Especialmente quando estamos na condição de aliados. Quem se considera um militante interseccional estará em muitas causas na posição de aliado e terá de saber o que ela significa e respeitá-la. Muitas vezes o lugar será o de escuta e não o de fala.» Airton explora a questão do lugar de fala que é também referida por Telma e por Sara Brandão, que acrescenta «o privilégio de ter voz» num espaço aberto e plural como é o online. «Ter voz é de facto um privilégio para o qual as redes sociais contribuíram, sem dúvida, mas ao mesmo tempo levantou variados problemas. O problema dessa voz que só se ouve a si e não quer ouvir as outras. Dessa voz que não a usa a favor de quem não a tem. Dessa voz que tem plateia mas não se informa.» 

Helena Vieira, escritora e transfeminista brasileira, teorizava em 2015 sobre a ideia de «activismo narcisista», «aquele auto-centrado, em que o ativista toma a si mesmo como molde de perfeição da luta. Geralmente intolerante e duro com o outro, este ativismo é tomado de um discurso autoritário explícito: não se move, não se abre a atravessamentos nem a construções, rejeita a discordância e se protege acusando o interlocutor. É o ativismo que não está disposto a nada além de seus monólogos e seus momentos de estrelato», escreveu, numa publicação de Facebook onde analisa ainda o conceito de «escuta autoritária». Esta forma de activismo, que para Helena se constitui «a partir de uma confusão básica entre “intolerância” e “radicalidade política”», pode ser potenciada pela capacidade que a Internet e as suas criações têm de segmentar a mega-comunidade digital. «A questão que se levanta é que por vezes este fenómeno pode acabar por criar uma espécie de tunnel vision para as diferentes temáticas. Estarmos submersos num ambiente que é 100% compatível com as nossas perspectivas pode trazer conforto mas pode também diminuir a empatia para diferentes cenários e dificultar o debate e compreensão.», diz-nos Sara Gomes, acrescentando: «Corremos o risco de ficar presos apenas e só na nossa argumentação e consequentemente não a elevar.» Sara Brandão acrescenta a este ponto a realidade actual em que algoritmos manipulam a informação a que temos acesso, fechando-nos em nós mesmos e, em última instância, influenciando directamente a extensão a que nos chega informação sobre cada assunto: «Sabemos que as redes sociais são influenciadas por agentes externos que acabam por denominar o que tem mais ou menos visibilidade. Além disso, é relevante lembrar constantemente que informação não é conhecimento, isto é, o que vemos nas redes sociais pode ser um excelente ponto de partida para nos aprofundarmos mais sobre os assuntos que nos chamam à atenção, mas não podemos ficar por aí.»

Como concluído no estudo português referido anteriormente, «a Internet não é apenas um instrumento, constitui também uma arena de conflito privilegiada, leit motiv para a mobilização social levada a cabo por um conjunto de recentes movimentos sociais que propõem novos projetos de transformação social e tecnológica.» O caso da morte do norte-americano George Floyd, a 25 de maio de 2020, foi um dos últimos eventos a atravessar demarcações geográficas para levar a um momento global de consciencialização, mais concretamente sobre o racismo enraizado e a violência policial desmedida e desigual. Por todo o mundo, multiplicaram-se as publicações de indignação, num exemplo perfeito do tal carácter preguiçoso do activismo online, em campanhas de participação fácil — porque as redes sociais permitem essa forma simples e conveniente de mostrar apoio a uma causa ou organização, é menos provável que os seus utilizadores façam qualquer pesquisa extra para melhor compreenderem em que consiste o movimento em causa. A ambivalência da Internet prende-se com uma dicotomia entre, precisamente, comodidade e desregulação, um espaço de boatos e desinformação, que pode, eventualmente, prejudicar a causa que se pretende ajudar. «Coerência e consistência são a chave. As redes sociais devem ser apenas um complemento desse trabalho, precisamente para chegar a mais pessoas e potenciar pontes. Se essa coerência não existir e não estivermos preparados para ter conversas desconfortáveis com familiares, amigos, colegas e desconhecidos; se escolhermos encolher os ombros e rir das piadas fáceis que são na verdade agressões e perpetuam estereótipos, então, estamos numa performance de números e caímos no erro de achar que a luta pelos direitos humanos — seja ela relacionada com género, raça, religião, orientação sexual ou qualquer outra — pode ser um assunto tendência.», diz Telma ao Shifter,  sobre a forma como se equilibra a necessidade de passar a mensagem e a luta ao maior número de pessoas e pelo maior número de meios digitalmente e a eventual tendência para nos tornarmos activistas performativos. «Compete principalmente às pessoas terem humildade para saber o seu lugar. Não há problema nenhum em usarem as suas plataformas para fazer circular a informação e chegar a mais pessoas. É benéfico, aliás. No entanto, devem saber quando estão em condições para dar a cara», responde à mesma pergunta Airton, que em está também à frente da aampanha O Racismo Matou de Novo, com o objetivo de criação de memória de Bruno Candé e da sua morte.

«Mesmo questionar as falas e decisões dos diretamente oprimidos, é reclamar para si o lugar que sempre teve nas relações de poder. É preciso entender as novas dinâmicas em que se envolvem, para que não estejam a reproduzir sistematicamente o seu privilégio.»

Nos bastidores do activismo, são visíveis as mais valias da Internet para os movimentos activistas. O estudo “Activismo Digital em Portugal: Sociologia, Problemas e Práticas”, já mencionado, destaca as oito dimensões em que tal se verifica: seja porque é um espaco privilegiado para «debate e reflexão», porque também ajuda cada associação internamente na «organização e logística», porque facilita a «mobilização» e acções que incentivem a participação e adesão à causa, porque facilita também o «recrutamento» de novos membros, a «propaganda e representação pública do coletivo», que compreende os processos de comunicação ideológica e da imagem pública do colectivo, as «redes sociais» e os «eventos». Todos estes dispositivos digitais «facilitam os processos de trabalho» e acabam por «garantir maior eficiência e resultados mais favoráveis» mas não há como negar que «a fratura entre as dimensões online e off-line é considerada perigosa, pois a mudança social e o cumprimento dos objetivos dos diferentes grupos ativistas só se conseguem com os eventos off-line, com a capacidade de participação e mobilização dos cidadãos.» 

«A rua é ainda o espaço simbólico do combate ativista.» Mas se o digital foi, obviamente, incorporado na esfera do ativismo, tal como é incluído noutras esferas da vida social (no trabalho, nas relações sociais, no lazer, etc.), que mensagem podemos passar a quem se interessar por questões sociais para que o debate possa ser cada vez mais inclusivo e esclarecedor, e para que as dinâmicas de protesto não repliquem as desigualdades do sistema a que se opõem? Sara Brandão deixa-nos um conselho para a vida, além da ação activista: «As nossas ações são um ato político. Ler apenas as manchetes para se comentar depois não é estar devidamente informado. É urgente a cultura — ler, ver e ouvir mais. Compreender antes de falar e aceitar que o conhecimento é uma evolução constante e necessária para que se consiga conquistar e atingir determinados objetivos e noções a pouco e pouco.»

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  • Rita Pinto

    A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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