Por uma melhor justiça para as vítimas: a violação não deve ser crime público

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Manifestações pela Eliminação da Violência contra a Mulher
Gayatri Malhota via Unsplash/Editado por Shifter

Por uma melhor justiça para as vítimas: a violação não deve ser crime público

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Como jurista investida no debate relativo à violência sexual e na procura das suas soluções de justiça, quero adicionar nuance a esta discussão atual e importante. Justificarei assim a minha posição, que espero que possa ser considerada pelo movimento feminista e dos direitos das vítimas e por todas que lerem, pois sei que partilhamos o objetivo de acabar com a violência sexual e trazer justiça às suas sobreviventes.

Hoje, dia 25 de Novembro, marca-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher. Prevê-se para este dia a apresentação na Assembleia da República uma petição com mais de 100.000 assinaturas que sugere à mesma que converta o crime de violação num crime público, dando continuidade a um longo debate sobre a natureza processual destes crimes. Apesar da clara popularidade e preocupação social em torno do tema, não me parece que a discussão desta medida tenha sido realmente profunda. É apresentada pelos partidos e movimentos feministas que a defendem como moralmente consensual pelo seu simbolismo – ela sinaliza um compromisso forte de combate a este crime, e à violência sexual como um todo. E a essa retórica que privilegia as consequências simbólicas de uma política à discussão das suas consequências práticas alia-se a habitual desinformação que infeta qualquer discussão sobre o direito, cujo aparelho ainda aliena muitos de uma participação ativa na democracia. 

Como jurista investida no debate relativo à violência sexual e na procura das suas soluções de justiça, quero adicionar nuance a esta discussão atual e importante. Justificarei assim a minha posição, que espero que possa ser considerada pelo movimento feminista e dos direitos das vítimas e por todas que lerem, pois sei que partilhamos o objetivo de acabar com a violência sexual e trazer justiça às suas sobreviventes. Acho que esta é uma medida prejudicial às sobreviventes ao ignorar a diversidade das suas experiências e das suas vontades, e que existe uma série de direções alternativas a considerar com mais urgência para atingir uma justiça realmente transformativa para elas, e para a construção de uma sociedade mais feminista.

A complicada relação entre o público e o privado

A postura do sistema de justiça sobre os crimes de violência sexual e violência doméstica tem historicamente sido contestada, principalmente por movimentos feministas que vêm na natureza pública destes crimes vários benefícios. Esta discussão reflete preocupações históricas do movimento feminista internacional, que na sua segunda vaga começou a politizar e trazer a público temáticas historicamente relegadas para o domínio privado — o trabalho doméstico, a violência doméstica e sexual, os papéis de género, entre outros —, na tentativa de criar uma responsabilidade comunitária pela mudança destas condições. O pessoal é político foi o mote desta transformação, e ressoa ainda em muitos ativismos feministas. Em Portugal, a discussão relativa à natureza pública dos crimes de violação e coação sexual teve já lugar na Assembleia em 2014, por iniciativa do Bloco de Esquerda, bem como em 2019, 2020, e ainda este ano, tanto quanto consegui apurar. 

Em Março de 2021, foram apresentados projetos de lei do Bloco de Esquerda, Iniciativa Liberal, Chega, e pelas deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira. A apresentação súbita de projetos por vários partidos esteve relacionada com um caso mediático em que um homem confessou uma violação num live do Instagram — e sobre esta rapidez do legislador a reagir a casos mediáticos e o cuidado que ela nos exige, escrevi na altura para o Observador. O presidente da Assembleia questionou a constitucionalidade do projeto de lei do Chega por incluir a sanção acessória de castração química. Todos estes projetos de lei, nestes vários momentos, não obtiveram maioria na votação parlamentar e não alteraram por isso a lei. 

Um argumento pela medida, apontado recentemente pela  jurista Inês Melo Sampaio numa crónica para o Setenta e Quatro e por outras juristas ao longo dos anos, refere-se à Convenção de Istambul – Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica – que Portugal ratificou em 2013, sendo o primeiro país da União a fazê-lo. A Convenção exige a natureza pública dos crimes de violência sexual, incluindo violação (artigo 36º) ao dizer, no seu artigo 55º nr. 1, que não deve depender da vítima a denúncia e o processo destes crimes. O Comité GREVIO, que monitoriza a implementação da Convenção, já referiu aliás este incumprimento por parte de Portugal em 2018. Não ignorando esta obrigação e o mérito da Convenção, a lei não é um argumento moral, e se não serve os interesses dos que visa deve ser mudada. É por isso importante discutir primeiro se a medida faz sentido para o nosso contexto e daí retirar consequências.

Se há muito de comum entre estes crimes, e se podem abarcar-se todos na categoria de crimes de violência de género, há também muito que os distingue e que exige políticas públicas distintas para a sua prevenção e procedimentos de justiça.

Quanto à comparação que dita que as políticas públicas para a violência doméstica e para a violência sexual devem ser semelhantes, e o consequente argumento de que se a violência doméstica é um crime público, também os crimes de violência sexual o devem ser, parece-me uma perigosa falsa equivalência, tal como à APAV, que diz no seu parecer de 2021: “Enquanto, em virtude das políticas públicas adotadas na área da violência doméstica, das sucessivas alterações ao quadro legal e das diversas ferramentas ao dispor dos diferentes profissionais, as vítimas deste crime beneficiam de um enquadramento cada vez mais robusto e abrangente ao nível da informação, proteção e apoio, as vítimas de violação estão ainda longe de um tratamento sequer aproximado, pelo que a mera imposição de um procedimento criminal que não tenha em conta a sua vontade não só não supre as lacunas existentes como pode constituir um fator adicional de vitimação”.

Se há muito de comum entre estes crimes, e se podem abarcar-se todos na categoria de crimes de violência de género, há também muito que os distingue e que exige políticas públicas distintas para a sua prevenção e procedimentos de justiça. A própria categoria de “violência de género” não é consensual no movimento feminista e da defesa do direito das vítimas, podendo perder muito do seu significado ao uniformizar situações tão diferentes. Esmiuçando essa divergência, o que distingue a violência doméstica é a natureza da relação entre a vítima e o agressor, e não os próprios atos, já que violência sexual no seio de uma relação de proximidade (segundo critérios do artigo 152º do Código Penal) é considerada também violência doméstica. 

Estamos então a falar de contextos e de dinâmicas de poder muito diferentes nestes dois tipos de crimes. Na violência sexual, não inserida numa relação considerada doméstica, temos situações como o date rape, a violência sexual em contexto universitário e profissional, e aquela erradamente vista como o arquétipo da violação mas parte deste espetro, a violação de rua, além de muitas outras situações. Ora, quer isto dizer que, ao contrário destas situações, tudo o que seja violência sexual numa relação prevista no artigo 152º – a violação conjugal ou no namoro (ou por ex-cônjuges e ex-namoradxs), o abuso por familiares, o abuso de pessoas incapazes ou economicamente dependentes pelos seus cuidadores – já é crime público, pois constitui um crime de violência doméstica.

Tornam-se assim incompreensíveis certos comentários e argumentos, como quando o deputado da IL referiu à Renascença “o facto de muitos dos crimes de violação ocorrerem em espaço familiar” como motivo para a natureza pública do crime. Acho importante visualizar a diferença entre estas situações, para perceber que de um lado lidamos com dinâmicas de contínuo poder de uma pessoa sobre outra, de possível controlo económico e continuado, de possível coabitação e interdependência e de existência de uma relação de fundo; enquanto que do outro lidamos com situações normalmente, mas nem sempre, pontuais de exercício de violência, em contextos distintos e que merecem uma atenção particular. 

Desmistificando esta falsa equivalência entre situações que não devem ser equiparadas, o que significa concretamente um crime ser público, semi-público ou particular? Este pequeno vídeo faz uma explicação breve, que eu resumo aqui. As principais consequências da alteração do crime de violação de semi-público para público seriam então: o alargamento do prazo de prescrição destes crimes; a possibilidade de denúncia por qualquer pessoa, sendo a investigação obrigatória e já não dependente de apresentação de queixa pela vítima. 

Uma consequência essencial que fica entrelinhas, e que está na base dos argumentos a favor da medida, é o alegado poder simbólico desta alteração, conferindo gravidade social ao crime. Segundo o parecer da APAV de 2021, um benefício desta natureza pública é efetivamente a criação da mentalidade de que é responsabilidade comunitária a defesa destas vítimas – embora ainda assim não defendam a sua natureza pública, mas sim uma natureza pública mitigada com válvula de escape que permita às vítimas arquivar o processo a qualquer momento. Se ainda estiverem confusas sobre estes aspetos legais, e se no futuro tiverem algumas dúvidas sobre esta ou outras questões na área, aconselho-vos a ligarem para o InfoVítimas, que tem o número gratuito 116 006.

As respostas erradas às preocupações certas

Esclarecida a parte mais jurídica, o que me faz acreditar que esta é uma má solução legislativa é que não responde ao contexto em que vivemos nem oferece uma mudança significativa no apoio que oferecemos às vítimas-sobreviventes. O poder da lei de mudar mentalidades é sobrestimado, e as consequências materiais para vítimas e agressores ignoradas. Constata-se um facto: há muito poucas denúncias do crime de violação e outros crimes de violência sexual, levando a um sentimento generalizado de impunidade que ultrapassa as próprias sobreviventes e afeta toda a sociedade, e em particular as mulheres que reconhecem nas suas vidas as consequências desta cultura de impunidade e desculpabilização. Esta petição e semelhantes iniciativas respondem a esse facto dizendo: devemos aumentar as denúncias destes crimes para combater esta impunidade e aumentar a nossa segurança comum. 

Eu e outras respondemos a esta constatação com uma pergunta: porque é que tantas pessoas escolhem não denunciar estes crimes? Antes de as empurrarmos para o sistema de justiça e difundirmos a obrigatoriedade moral da denúncia, como se as vítimas carregassem um dever simbólico de usar o seu caso para atingir, mais do que justiça para si próprias, justiça para todas as mulheres, temos que pensar profundamente sobre como o sistema de justiça as trata, e sobre que tipo de justiça ele realmente produz. A sua escolha de não denunciar não denota passividade, mas sim agência na sua desidentificação com as soluções deste sistema, com os seus agentes e com o seu procedimento. 

As necessidades públicas de justiça não podem eclipsar a posição individual da vítima, e ela não pode ser forçada a carregar o peso de um processo longo e invasivo em favor do avanço de uma justiça que não é feita para apoiar sobreviventes. Já dizia a intervenção do PCP na discussão de 2019 que “[a vítima] não pode ser instrumental à realização de uma Justiça pública”. Esta procura de medidas simbólicas é aliás sinónimo de um abordagem top-down de mudança social através da lei, como explica Lola Olufemi no livro Feminism, Interrupted, que não considera os limites do poder da lei, e que não atua sobre as origens dos fenómenos que tenta legislar. A lei penal está pensada como um instrumento limite de atuação sobre a sociedade, e tentar alterar uma cultura patriarcal de normalização da violência sexual através dela é ingénuo e ineficaz.

Antes de as empurrarmos para o sistema de justiça e difundirmos a obrigatoriedade moral da denúncia, como se as vítimas carregassem um dever simbólico de usar o seu caso para atingir, mais do que justiça para si próprias, justiça para todas as mulheres, temos que pensar profundamente sobre como o sistema de justiça as trata, e sobre que tipo de justiça ele realmente produz.

Não é preciso pensar muito para entender as reservas que uma sobrevivente pode ter em querer ir para a frente com um processo destes. A literatura, sobretudo na criminologia e na vitimologia, sobre a vitimização secundária nestes processos; a reduzida percentagem de agressores que alguma vez é condenado, ou sequer chega a julgamento; a falta de informação que é dada às vítimas ou testemunhas; as dificuldades de prova e o caráter moroso desse processo, em que a prova é sobretudo o corpo e a mente da sobrevivente; entre outros, é bem conhecida. O estigma social, que pela história cultural da violência sexual é diferente de qualquer outro e assim deve ser tratado, não é algo que desaparecerá com esta medida.  

No caso português, importa também a frequência comum das penas suspensas nos casos de violência sexual e doméstica, penas aplicadas seletivamente pelos juízes, demonstrando que muitos ainda consideram estes crimes menos graves. Pode ainda ser particularmente longa a duração destes processos, num Estado que é regularmente processado pela lentidão da justiça no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Não acho que quem defende esta medida não tenha noção de todos estes problemas, nem acho que considere que a transformação da natureza processual do crime possa ser uma medida isolada, mas os efeitos imediatos que ela terá sem que se promovam outras importantes medidas fazem com que ela seja um retrocesso e uma violência para as vítimas. Todos estes fatores convergem para que os riscos de um processo deste tipo sejam muitos, enquanto que a possível recompensa deles é não só extremamente incerta mas também insatisfatória

Acho também, e foi nesse sentido que trabalhei na minha tese de mestrado, que um grande fator de afastamento do sistema de justiça penal é que ele não está atualizado quanto às necessidades das vítimas, e que muitas não têm qualquer interesse nos incertos resultados que oferece. O sistema de justiça iliba-se de agir sobre as consequências materiais na vida das vítimas (as suas necessidades económicas, psicológicas, profissionais, sociais, muitas vezes urgentes no seguimento de um ato de violência), focando-se miopicamente no encarceramento de um punhado de agressores, não agindo sistemicamente sobre a cultura que permite a multiplicação destes atos. Precisamos de uma justiça efetivamente centrada nas vítimas e na reconstrução das suas vidas, bem como de ações que atuem sobre este estigma social e esta normalização da violência, e isso é uma mudança que esta medida está longe de atingir ou sequer procurar.  

Para problemas complexos, soluções complexas  

As soluções para a violência sexual não são tão simples nem tão imediatas quanto as nossas emoções pedem quando sabemos que alguém foi profundamente magoada, ou quando nós próprias o somos, por uma cultura de violação que permite a normalização destes atos, e que promove o silenciamento das suas vítimas pelo estigma histórico e incomporável que têm os crimes sexuais. O silenciamento não se quebra ao obrigar alguém a falar, mas sim criando as condições em que as sobreviventes possam confortavelmente partilhar a sua história, à sua maneira. Para isso precisamos, em primeiro lugar, de saber mais, muito mais sobre a violência sexual em Portugal. 

Precisamos urgentemente de financiamento para investigação em várias àreas de conhecimento – psicologia, medicina, criminologia, direito, sociologia, história, estudos culturais, ciências da comunicação –  sobre uma diversidade de sobreviventes – não deixando que a nossa imagem de uma vítima seja a de uma mulher branca e jovem, mas investigando sobre as características particulares da vitimização de homens cisgênero, pessoas trans e não-bináries, pessoas com deficiência, pessoas racializadas, pessoas migrantes, pessoas idosas. Precisamos de deixar de falar dos dados oficiais como se representassem a realidade, quando não houve qualquer esforço em Portugal de fazer um estudo sério e aprofundado das “cifras negras” destes crimes em Portugal, ou seja, da sua real ocorrência. A verdade é que não fazemos a mais pequena ideia da frequência real destes crimes no nosso país, nem sobre muitos contextos da sua ocorrência, o que leva ao perigo de nos guiarmos pelos mitos que idealizam vítimas e agressores como tendo certas características.

Quando se pede justiça para estes casos, estamos normalmente a referir-nos à justiça após o crime, quando a maior justiça para as sobreviventes e para todas nós é a prevenção. Temos efetivamente de pensar a justiça desta forma holística, e não apenas como carrasco dos que ultrapassam as suas linhas. A prevenção passa, claro, pela educação de todas as gerações, desmistificando o que é a violência sexual, lembrando que todas podemos ser vítimas, ensinando jovens e adultos a reconhecerem essas situações, tendo uma educação sexual inclusiva e constante. É preciso também que a vítima deixe de ser um objeto passivo e alterizado: saber, quando estamos numa sala de aula, num local de trabalho, numa manifestação, num partido, que as vítimas não são um objeto político; as vítimas estão na sala, muitas vezes incapazes de se identificarem, à espera que as condições para o fazerem sem um tremendo estigma surjam. Não falemos delas como se não fossem pessoas que nos rodeiam, e tenhamos sempre a empatia de não assumir que alguém não é sobrevivente de um qualquer tipo de violência ou trauma.

Por isso acredito que justiça para as sobreviventes é, desde logo, o apoio no suprimento desses danos, na medida do possível — oferecendo habitação, oferecendo tempo para recuperar sem ter que trabalhar ou ser despedida, oferecendo apoio psicológico e aumentando o financiamento dos serviços de apoio à vítima.

A educação passa também por termos guias de como a comunicação social deve comunicar casos de violência sexual de forma não estigmatizante, e de garantirmos que eles são cumpridos e que o voyeurismo pornográfico sobre estes casos acaba. Precisamos também de aprender a ser interventivos nas situações que observamos na nossa vida pessoal, uma intervenção que não começa e acaba com chamar a polícia quando vemos um comportamento suspeito, essa que não é muitas vezes a opção mais acessível e mais eficaz. É preciso expandir as ferramentas de ação que temos nessas ocasiões em que temos a possibilidade de fazer a mudança na nossa comunidade, mantendo-nos assim seguras umas às outras. No fundo, as mulheres já fazem isto umas com as outras desde tempos imemoriais: é preciso disseminar e maximizar todas as formas de proteção e solidariedade que já temos, e encontrar outras com mais informação e segurança. Projetos como a formação de bartenders, dirigentes académicos ou profissionais e professores para a identificação de potenciais casos de abusos são iniciativas estratégicas e importantes para impedir estas situações.

E quando, ainda assim, a prevenção falha, que tipo de justiça pode oferecer às sobreviventes e à comunidade um sentido de que o agressor foi responsabilizado, de que se passou a clara mensagem de que este comportamento é inaceitável? Movimentos alternativos de justiça propõem ideias sobre como a responsabilização dos agressores pode ser atingida de uma forma mais humana, mais significativa e mais generalizada. A justiça restaurativa e a justiça transformativa, influenciadas pelo abolicionismo penal e outras correntes da criminologia crítica, têm em comum uma proposição: devemos focar-nos não tanto no conceito de crime, mas sim de dano. Que danos foram sofridos pela sobrevivente, e como podemos ajudá-la a recuperar desses danos? 

Por isso acredito que justiça para as sobreviventes é, desde logo, o apoio no suprimento desses danos, na medida do possível — oferecendo habitação, oferecendo tempo para recuperar sem ter que trabalhar ou ser despedida, oferecendo apoio psicológico e aumentando o financiamento dos serviços de apoio à vítima.  E que É, sobretudo, o apoio comunitário será o único antídoto possível para o estigma social sofrido pelas vítimas. O apoio de pares e a reconexão com a comunidade, que oiça e valide a narrativa das sobreviventes, é essencial para a recuperação do seu trauma e para que atinja o maior objetivo que temos: viver uma vida feliz e em que a sua vitimização não a define.

Não acredito que a tentação do encarceramento como solução, do desejo do castigo dos agressores com mais violência estatal, nos vá trazer mudanças significativas na qualidade da justiça para estas sobreviventes. Estas soluções que proponho não são simples, embora não seja difícil imaginar maneiras práticas de começar a caminhar para elas, e haja muitos projetos exemplares a fazê-lo pelo mundo. A luta pela erradicação da violência sexual é uma oportunidade para reformular todos os nossos conceitos de justiça – não façamos dela menos que isso. Afinal, as vítimas dizem-nos algo no seu silêncio: que este sistema de justiça, como existe hoje, não é o caminho para todas elas. Aproveitemos o momento para escolher as mudanças de fundo e para perguntar as grandes questões. Vamos pensar em grande, sem nos esquecermos de agir nas pequenas coisas que estão ao nosso alcance: consciencializar aquelas à nossa volta, intervir quando podemos para parar situações de violência, ocupar as ruas quando é preciso mostrar que somos muitas indignadas, e sobretudo acreditar nas sobreviventes e apoiá-las. 


Contactos Úteis: 

Associação de Mulheres Contra a Violência https://www.amcv.org.pt/ 962 048 272

APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima https://apav.pt/ 116006 (Linha de Apoio à Vítima)

UMAR – centro EIR – Emancipação, Igualdade e Recuperação: Centro de atendimento a Mulheres vítimas de Violência Sexual no Porto. Apoio Psicológico e Jurídico. 914 736 078 https://www.facebook.com/centroeir/

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  • Juliana Senra

    Sou licenciada em Direito pela Universidade Nova de Lisboa e mestre em Sociologia do Direito pela Universidade de Lund, na Suécia. Sou feminista interseccional e acredito numa justiça transformativa, não-carcerária e que defenda as sobreviventes. Luto para entender e combater o fenómeno da violência sexual, e de todas as violências.

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