O longo caminho para a erradicação da Mutilação Genital Feminina

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Mariame Habib, 17 anos e grávida de 9 meses, foi submetida a MGF quando era criança. Ela Aqui foi fotografada no Hospital Barbara May em Mille, Etiópia, que trata mulheres e crianças sujeitas a MGF. © UNICEF Etiópia/2014/Tsegaye

O longo caminho para a erradicação da Mutilação Genital Feminina

Dados da OMS indicam uma prevalência de até 80% da Mutilação Genital Feminina em determinados países, embora a percentagem possa variar conforme a etnia. Apesar de se concentrar essencialmente em África, no Médio Oriente e na Ásia, a imigração conduziu a que a MGF se estendesse um pouco por todo o mundo, tornando-a numa questão global e actual. Em 2019, estimava-se que 4,1 milhões de meninas estivessem em risco de se tornarem vítimas da prática.

Há cerca de 15 anos soube da existência da Mutilação Genital Feminina ao folhear a revista Umbigo. Fiquei atónita mas, admito com embaraço, não passei disso. Década e meia passou e a visualização recente do documentário A Maçã de Eva, de Jose Manuel Cólon, trouxe de volta o assunto e com ele a necessidade de escrever sobre esta prática que continua a ser uma realidade para muitas meninas e mulheres. 

Mesmo sabendo que elaborar um artigo sobre MGF é pouco ou nada no tanto que ainda há para fazer, não pude deixar de aproveitar a oportunidade de partilhar aqui o que descobri ao debruçar-me sobre o tema. Num mundo onde a luta para a igualdade de género sofre avanços e recuos ao longo da história e os direitos humanos são afinal benefícios que não chegam a todos, há meninas, muitas, a quem são vedadas a educação e a saúde em nome de casamentos precoces e forçados, ditados por uma tradição baseada em crenças infundadas e na opressão à mulher. Isto existe, é triste e tem um nome aterrador: Mutilação Genital Feminina.

O que é a Mutilação Genital Feminina

Qualquer alteração ou lesão da genitália feminina por razões não médicas, é considerada Mutilação Genital. Isto inclui todo e qualquer procedimento que envolva a excisão, sutura ou remoção parcial ou total dos seus órgãos genitais. É reconhecida internacionalmente, e bem, como uma violação dos direitos humanos que perpetua uma cultura de subjugação e violação da integridade e dignidade da mulher, impedindo-a de ter controlo sobre a própria vida. A MGF é muitas vezes executada sem qualquer anestesia, em meninas entre os 0 e os 15 anos de idade, por um membro feminino da comunidade, sem conhecimentos médicos ou anatómicos, que também presta assistência nos partos. Um ofício pago e bastante respeitado e por isso muito difícil de abandonar mesmo que se queira. Já o equipamento utilizado passa por objectos afiados, como uma faca, uma lâmina ou mesmo um pedaço de vidro partido. Sim, leram bem. Importa mencionar que muitas vezes, as condições higiénicas são inexistentes e os materiais de corte não são esterilizados. Mesmo quando praticada com materiais esterilizados e por pessoal médico, a chamada “MGF medicalizada” não é mais segura, tendo mesmo sido denunciada pela Organização Mundial de Saúde: “A MGF nunca é segura e comporta graves consequências para a saúde, a curto ou a longo prazo, para toda a vida”.

O termo “Mutilação Genital Feminina” foi adoptado em 1997, numa declaração conjunta pela OMS, UNICEF e UNFPA, dado que o termo “circuncisão feminina” não reflectia a dimensão da gravidade desta prática, bem com as consequências que dela advém. 

Tipos de MGF

Aqui chamo a atenção para a especificidade da prática. A OMS identifica actualmente 4 principais tipos de MGF, todos aterrorizadores: 

Tipo I, a clitoridectomia. Consiste na remoção total ou parcial da parte externa do clitóris e/ou do prepúcio do clitóris.

Tipo II, a excisão. A parte externa do clitóris e os pequenos lábios são removidos parcialmente ou totalmente, com ou sem excisão dos lábios maiores.

Tipo III, a infibulação, é a forma mais grave de MGF. Procede-se ao estreitamento do orifício vaginal através da sutura dos pequenos e/ou dos grandes lábios, com ou sem excisão do clítoris. Uma pequena abertura é deixada para a passagem da urina e da menstruação.

Tipo IV, refere-se a todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas, por exemplo: furos ou picadas, perfuração, corte, escarificação e cauterização.

Fonte: https://www.endfgm.eu/

Dados da OMS revelam que “cerca de 90% dos casos de MGF incluem os Tipos I, II ou IV, enquanto os restantes 10% (mais de 8 milhões de mulheres) são do tipo III, praticados principalmente na região nordeste de África (Djibouti, Eritreia, Etiópia, Somália e Sudão).

A pouco conhecida Re-infibulação

A infibulação cria obviamente uma barreira ao parto e, nalguns casos, à própria actividade sexual. Nesse caso, e não raras vezes, antes do casamento ou entre este e a sua consumação, procede-se a um segundo corte, chamado “defibulação” para criar um orifício vaginal. Em algumas comunidades é praticada a re-infibulação, que consiste em voltar a fechar a vulva com uma nova sutura. Este procedimento é geralmente executado pela parteira, num espaço de tempo entre duas horas a quarenta dias após o parto. 

Um artigo publicado no African Journal of Reproductive Health em 2006, apresenta perspectivas femininas e masculinas sobre esta questão. Ambos parecem reconhecer as consequências para a saúde da mulher, tanto da infibulação como da re-infibulação, mas nenhum deles se considera com poder suficiente para alterar essa realidade. Entre os argumentos que sustentam a re-infibulação estão o alegado aumento do prazer masculino, a “purificação” da mulher após o parto, enfatização da virgindade e a garantia da fidelidade conjugal da mulher. A pressão social, muitas vezes exercida por mulheres mais velhas, o peso da tradição, a necessidade de agradar ao marido e o medo do divórcio são factores que alicerçam a MGF em geral e em particular a sujeição à re-infibulação. 

Perigos e consequências da MGF

Além de não ter qualquer intuito benéfico, a Mutilação Genital Feminina tem consequências nefastas para a sua saúde física, mental e sexual da mulher, causando mesmo a morte em alguns casos. O site End FGM, uma campanha europeia que trabalha no desenvolvimento de uma acção sustentável para acabar com a MGF, enumera algumas consequências resultantes do corte, quer a curto ou a longo prazo. Há vários efeitos imediatos como a dor intensa, sangramento, choque, dificuldade em urinar, além de lesões e infecções. A dor e o trauma podem causar morte por choque hemorrágico ou neurogénico. Acrescentam ainda a “dor e infecção crónicas, desenvolvimento de quistos, abcessos, úlceras genitais e diminuição do prazer sexual” como sequelas que se manifestam ao longo da vida. Apesar de não haver confirmação de transmissão de HIV, a OMS não descarta o risco da sua transmissão através dos objectos de corte.

Porquê?

Considerado um ritual de Passagem para a vida adulta, a MGF é uma tradicional celebração, uma festa para a qual as meninas anseiam felizes porque não sabem ao que vão. Na verdade, a MGF tem como objectivo controlar a sexualidade feminina. Se por um lado garante a virgindade pré-marital, por outro garante a fidelidade conjugal, porque reduzindo a líbido, é menor a probabilidade de sexo extraconjugal, principalmente nos casos de infibulação. Assim sendo, a MGF constitui muitas vezes um pré-requisito para o casamento. “Em várias regiões as mulheres e raparigas estão economicamente dependentes dos homens e têm de se submeter à MGF para casar e serem aceites na sociedade”, pode ler-se no documento divulgado pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. As mães desenrolam um papel conivente com os costumes por considerarem ser seu o dever de preparar as filhas para a vida adulta e evitar a rejeição social. Uma vez cortadas, estão prontas para ser entregues a um casamento, muitas vezes, com um homem muito mais velho. De acordo com a OMS, as raparigas que ousam opor-se a esta prática enfrentam muitas vezes a “condenação, desonra, ostracismo e perseguição”. 

Em algumas comunidades, segundo as Nações Unidas, crenças associadas a conceitos culturais de feminilidade e modéstia alimentam a continuidade da prática, como o aumento da fertilidade e o mito de que o “clitóris pode crescer e ficar com o tamanho de um pénis”. O conceito de que a genitália feminina é impura e feia torna a MGF a forma de tornar a mulher limpa e bonita. Na verdade, a MGF reduz a fertilidade. Com o corte dos orgãos, a capacidade de reter o sémen e engravidar é reduzida, o que torna esse argumento completamente infundado. Mas reparem: A mulher é tão discriminada por não se sujeitar à MGF como por não gerar filhos. Isto é um beco sem saída aterrador. Um contexto de crenças e valores limitativos nos quais a mulher está sempre exposta à opressão. Um flagrante símbolo de exploração feminina que a reduz à função de parir e criar filhos e ser condenada à servidão.

Embora muitas vezes associada a questões religiosas, incluindo por praticantes, a perpetuação da MFG é puramente tradicional, e as posições em relação a este assunto não são unânimes entre líderes religiosos: “alguns promovem-na, alguns consideram-na irrelevante e há quem contribua a sua eliminação”, esclarece a Organização Mundial de Saúde.

Números que importam

Dados da Organização Mundial de Saúde indicam uma prevalência de até 80% da Mutilação Genital Feminina em determinados países, embora a percentagem possa variar conforme a etnia. Apesar de se concentrar essencialmente em África, no Médio Oriente e na Ásia, a imigração conduziu a que a MGF se estendesse um pouco por todo o mundo, tornando-a numa questão global e actual.

Em 2019, de acordo com a UNFPA, 4,1 milhões era o número estimado de raparigas em risco de ser vítima de MGF. Com o crescimento da população, este número tende a crescer para 4,6 até 2030, caso não sejam intensificados os esforços para erradicar a prática. A Covid-19 também poderá ter impacto no aumento dos casos de Mutilação Genital Feminina, na sequência de restrições de acesso à escola, à saúde, prevenção e cuidados, informações da OMS que acredita nos provedores de saúde como “agentes poderosos de mudança e serviço nas suas comunidades”, tão importantes e mais ainda no contexto actual.

Fonte: https://www.end-violence.org/articles/what-cost-female-genital-mutilation

No site National FGM Center há um mapa interactivo com informação bem completa sobre cada país onde é praticada a MGF, bem como legislação, e outros dados. 

Além do enorme impacto da Mutilação Genital Feminina na vida da mulher na saúde, educação, igualdade e qualidade de vida e de impedi-la de ter um papel socialmente activo, esta prática arrasta consigo em peso económico que afecta todo o tecido social dos países onde é praticada.

A OMS fala em custos globais de 1,4 biliões de dólares por ano em cuidados de saúde na sequência da prática da MGF e estima um aumento de 50% até 2050, se nada for feito. Se, caso contrário, a prática for erradicada, esses custos cairão 60% no mesmo período. Esta “calculadora de custos” faz esse comparativo em cada país, dos 27 de que a OMS tem dados.

Importa dizer que há cerca de um ano, o Governo de transição do Sudão tomou a decisão “histórica” de criminalizar a Mutilação Genital Feminina no país. A lei foi aprovada pelos Conselhos Soberano e Ministerial a 22 de abril de 2020 “após anos de advocacia persistente e vigorosa de todos os interessados.” O Sudão é um dos países onde a prevalência desta prática é mais alta. De acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância, de 2014, 86,6% das mulheres tinham sido vítimas. Na faixa etária mais jovem, até aos 14, a porcentagem caiu de 37% em 2010 para 31,5% em 2014. O representante do Unicef no país, Abdullah Fadil, refere que agora é preciso “trabalhar muito com as comunidades para fazer cumprir essa lei.” A intenção não é criminalizar os pais, mas sim aumentar a consciencialização entre os diferentes grupos, incluindo parteiras, profissionais de saúde, pais e jovens.

Em Portugal 

Portugal tem desde 2014 um sistema que sinaliza mulheres afetadas pela MGF residentes em território nacional, mas apenas desde 2015 a prática é considerada crime, punida com uma pena de até 10 anos de prisão, de acordo com as Nações Unidas. Ainda assim, foram registados 101 casos só em 2020. É estimado que seja 6.576 o número de mulheres portuguesas com mais de 15 anos vítimas da MGF e um total de 500 mil na União Europeia.

No passado dia 6 de fevereiro, no contexto do Dia Internacional da Tolerância Zero à MGF, o Governo Português anunciou uma linha financeira de 50 mil euros para apoiar as organizações da sociedade civil portuguesa com projetos de prevenção e combate à MGF. Este apoio surge um ano após a apresentação dos resultados do projeto “Práticas Saudáveis: Fim à Mutilação Genital Feminina” e visa permitir às organizações envolvidas a realização de “projectos para o empoderamento de raparigas e mulheres, produção e divulgação de mais e melhor informação e capacitação de profissionais de sectores-chave”, disse a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro. Também este ano foi publicado um Manual de Procedimentos para as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, no mesmo sentido.

“É difícil falar de direitos humanos quando não há água potável, é difícil falar de assuntos de género quando 75% das mulheres aprovam ser agredidas pelo marido” Adriana Kaplan, Fundação WASSU-UAB.

É importante compreender que as mulheres que sofrem e ainda assim contribuem para a perpetuação da Mutilação Genital Feminina são vítimas de um sistema patriarcal dominante que alimenta este modo de pensar e de viver. O supracitado documentário A Maçã de Eva mostra com indiscutível clareza a complexidade do problema. A MGF é fruto da tradição e da ignorância. Há uma grande falta de conhecimento sobre os seus riscos, não há muitas vezes a percepção da relação directa entre a prática e as suas consequências a curto e longo prazo, quer para a mulher, quer para a comunidade. A Mutilação Genital Feminina é uma questão bastante sensível que exige uma abordagem educativa e empática junto das comunidades. É crucial o trabalho contínuo e colaborativo entre agentes da saúde, governos, educadores, organizações de direitos humanos e sociedade civil para ser possível acabar com esta prática selvagem.

O que Fazer

São várias as iniciativas, nacionais e internacionais, que lutam diariamente neste combate que urge ser ganho. Além das já mencionadas ao longo deste artigo, a associação portuguesa Mulheres sem Fronteiras, as associações Ajuda em Acção e a Mundo Cooperante, sediadas em Espanha, o órgão internacional IAC-CIAF, as organizações 28 Too Many e Equality Now, são algumas das entidades que podes conhecer e colaborar de alguma forma para pôr fim à MGF.

A elaboração deste artigo fez-me perceber quão privilegiada sou pelo lugar onde nasci. Nascer mulher pode ser desafiante e em lugares onde se pratica a Mutilação Genital Feminina é uma sentença cruel. Que o privilégio de não ser vítima deste flagelo seja um motor para colaborar na mudança da realidade das vítimas da MGF para que não ser mutilada seja um direito que chegue a todas.

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  • Milene Santos

    Natural de Leiria e actualmente no Barreiro, foi em Castelo Branco que fiz formação em Design de Moda e Têxtil. A arte, a sociedade e a sustentabilidade são três pilares importantes para mim e é neles que busco o sumo para escrever no Shifter.

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