A extrema-direita, hoje: pistas sobre um fenómeno global

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Recorte da capa do livro The Far Right Today

A extrema-direita, hoje: pistas sobre um fenómeno global

Escrito em 2018 com o objetivo de olhar a extrema-direita em todo o mundo, The Far Right Today tenta perceber as ideias comuns e particulares deste fenómeno em várias geografias.

Um dos marcos políticos de 2019 em Portugal foi a chegada de novos pequenos partidos ao Parlamento português. Os três deram que falar, mas por razões diferentes, e apenas um deles serve como alarme para uma suposta chegada da extrema-direita a Portugal. Suposta?

Para responder, porque não ler o novo livro de Cas Mudde, The Far Right Today? Escrito em 2018 com o objetivo de olhar a extrema-direita em todo o mundo, Mudde tenta aqui perceber ideias comuns e particulares deste fenómeno em várias geografias, ou a relação entre ele e, por exemplo, questões de género ou a democracia. É um livro útil para saber mais sobre um dos extremos que marcam a época em que vivemos, dado à luz por alguém já conhecido em Portugal por ser chamado, por diversas vezes, a falar sobre o populismo.

Mas, afinal, qual é o retrato pintado em The Far Right Today? Existem várias lições a tirar deste livro. Centramo-nos em 3, e deixamos as restantes para quem o quiser ler — apesar não existe ainda uma tradução portuguesa editada em Portugal, e o autor ter confessado no Twitter não saber de nenhum plano para que isso aconteça.

Há muitas extremas-direitas

Adaptando uma citação clássica do cinema português, poderia dizer-se “Extremas-direitas há muitas, seu palerma”. Neste livro, Mudde fala sobre diferenças de classificação entre diferentes movimentos que normalmente agrupamos sem grandes distinções. Academicamente, podemos diferenciar a extrema-direita pura da direita radical [em inglês, extreme right é diferente de far right, sendo este último o termo mais abrangente e inclusivo].

A extrema-direita pura é normalmente mais elitista e gosta de vincar as desigualdades e as diferenças entre indivíduos, que não devem ser combatidas pelo Estado. A “elite” pode assumir diferentes características consoante a corrente defendida, mas segue normalmente distinções étnicas ou religiosas. A extrema-direita pura acredita que é esta elite que deve governar o país, recusando assim noções democráticas de igualdade na participação política e liberdade de opiniões. É assumidamente anti-sistema, antidemocrática e revolucionária.

A direita radical é menos “extrema”: aceita as regras do jogo eleitoral e disputa o poder de acordo com elas, embora tente criar distorções que a beneficiam, desde a implementação de sistemas eleitorais que aumentem a influência do seu eleitorado ao controlo de meios de comunicação social. Mudde descreve-a como sendo democrática, mas contrária à democracia liberal, que é a ideia de democracia que habitualmente temos, com direitos e liberdades para todos, separação de poderes, e proteção das minorias. Continua a ser anti-sistema, como a extrema-direita pura, mas pretende transformá-lo através de reformas e não desencadeando revoluções.

Existe uma grande confusão, por vezes, entre populismo e direita radical, e talvez isso se deva ao facto de a grande maioria dos políticos de direita radical serem populistas (já o contrário não é verdade, há muitos populistas de esquerda). A extrema-direita pura, no entanto, não pode ser populista, já que o populismo é democrático (não necessariamente pela democracia liberal, como vimos) e anti-elites, e a extrema-direita pura é anti-democrática e elitista.

Importa, no entanto, ressalvar que estes fenómenos são muito moldados por contextos históricos e culturais dos países onde se manifestam. Assim, cada caso deve ser enquadrado no contexto político nacional onde tem origem para que a análise do fenómeno possa acontecer.

O fenómeno é antigo, mas tem hoje novas características

A acusação é tão frequente que se tornou nome de um paradoxo-meme, a Lei de Godwin, que diz que todas as discussões online, a certa altura, acabam com acusações de nazismo dirigidas aos debatentes. Se nos lembrarmos desta lei, depressa nos lembramos que a extrema-direita não nasceu nos dias de hoje.

Segundo Mudde, estamos a viver a quarta vaga da extrema direita no pós-guerra europeu. Depois do neo-fascismo, da extrema-direita populista e da direita radical, vivemos desde o ano 2000 uma era que beneficia a extrema-direita devido a três crises diferentes: o 11 de setembro e a guerra ao terrorismo, a crise financeira de 2008-9, e a crise de refugiados de 2015. Mudde sugere que estes três eventos deram à quarta vaga da extrema direita maior sucesso eleitoral, diferenciando-a assim da terceira vaga. O maior sucesso eleitoral traduz-se numa maior aceitação e normalização dos seus temas, não só pelo maior poder adquirido pelos próprios, mas pela influência nas propostas de outras forças políticas.

Muitos dos temas do passado mantêm-se. No caso da extrema-direita pura, antissemitismo, racismo, e xenofobia, sobretudo disfarçados de teorias pseudo-científicas que comprovam as diferenças entre as elites e os restantes. Hoje, por estes termos terem cargas negativas associadas, assistimos a autênticas campanhas de relações públicas e marketing. O racismo passou, grosso modo, a etnopluralismo, uma teoria que defende que os grupos étnicos são iguais entre si mas devem manter-se separados ou isolados. Continua a haver racismo, ainda assim, propagado por afirmações como as de Thierry Baudet (FvD, Países Baixos) “I would really like Europe to stay dominantly white and culturally as it is now.” ou de Martin Helme (EKRE, Estónia) “Our immigration policy should have one simple rule: if you’re black, go back.”.

O anti-semitismo, que não é exclusivo da extrema-direita – basta pensar nos problemas do Labour de Jeremy Corbyn no Reino Unido -, ainda se mantém presente em alguns partidos. Curiosamente, no entanto, na quarta vaga assistimos a algumas transformações na extrema-direita: de uma retórica anti-semita para uma retórica filossemita (pró-judeu), com uma aproximação a Israel e ao seu governo de direita (ou, segundo alguns, de extrema-direita) de Netanyahu. Mantendo a retórica com orientação religiosa, temos também a islamofobia a orientar de forma marcante a quarta vaga da extrema-direita.

Existem propostas para travar a extrema-direita, mas não é fácil fazê-lo

É comum ouvirmos falar sobre muitas respostas ao avanço da extrema-direita. Mudde fala-nos sobre algumas delas e tenta perceber qual a evidência para as diferentes propostas.

Banir a extrema-direita é uma das hipóteses normalmente avançadas. Os defensores da posição dizem que é uma forma de impedir que as pessoas se radicalizem. Os opositores reclamam que apenas se leva a que os radicais se escondam, mas não os impede de existirem. Segundo Mudde, há muito pouca evidência para este último argumento, mas o autor não refere a existência de evidência que apoie resultados positivos para esta estratégia.

Outra hipótese, muito em voga, é a criação de um cordão sanitário por parte das instituições e sociedade civil, excluindo terminantemente a “normalização” destes partidos. É uma hipótese que se tem discutido também em Portugal. Se há casos onde isso resultou, há também casos onde a resistência durou pouco.

A conclusão que tiro ao ler este livro é que há pouca evidência sobre as respostas a estes fenómenos, e que estas terão sempre de ser adaptadas aos diferentes contextos e às diferentes roupagens dos fenómenos de extrema-direita. Talvez seja altura de Portugal promover essa discussão.

O livro tem muito mais para dizer, incluindo um interessante capítulo sobre a relação da extrema-direita com questões de género e passagens sobre o papel dos media na normalização e destaque das questões e personalidades da extrema-direita. No combate à extrema-direita, todos temos um papel a desempenhar, como eleitores e como cidadãos ativos. Para isso, convém estar informado sobre o fenómeno. Esse é um objetivo que este livro atinge com qualidade. Lê-lo é, certamente, uma boa forma de começar 2020. 

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  • Jorge Félix Cardoso

    Estudante perpétuo, atualmente a completar o curso de Medicina na U.Porto e o mestrado em Filosofia Política na U.Minho. Apaixonado por perguntas e desconfiado das respostas. Ávido leitor, criador das newsletters "Qu'ouves de Bruxelas" e "Ementa do Jorge". Investigador do AI4Health, CINTESIS. Co-fundador do FÓRUM Diplomacia da Saúde. No Twitter em @jfelixcardoso.

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