Com a eleição de Trump e a nomeação de Musk para o DOGE (Department of Government Efficiency) que achávamos ser apenas uma piada, a influência de Trump em Musk, e deste no X/Twitter atingiu mais um ponto de saturação. A simples presença na rede social de Musk revestiu-se de uma certa sensação de cumplicidade com a agenda do homem mais rico do mundo, dono e senhor do X. E pela enésima vez desde a criação original da plataforma, e pelo menos pela terceira vez desde a chegada de Musk, iniciou-se um movimento de êxodo.
Entre as contas mais sonantes a abandonar a plataforma, desta vez foi o jornal britânico The Guardian a liderar o pelotão. Num curto e incisivo editorial, a equipa diz que no balanço de utilização da rede social, os pontos negativos se sobrepõem aos positivos e que o esforço que fazem para promover conteúdo no X será redirecionado de outra forma que seja mais benéfica para o jornalismo. E afirmam que o X se tornou numa plataforma tóxica que deu ao seu dono uma capacidade real de influenciar o discurso público. Ao Guardian seguiram-se outros, muitos outros.
Depois de tantos simulacros e ensaios deste movimento de saída, naturalmente, algumas das possíveis alternativas já estavam mais do que identificadas. Tecnicalidades à parte, o que torna o X no X, como explorámos neste outro artigo, é a sensação de que está lá todo o mundo. Assim, na busca por uma alternativa, o dinamismo social da plataforma é um critério decisivo. Talvez mais decisivo até que o desenho da infraestrutura da plataforma ou quem a detém, pontos que já provaram ser determinantes ao longo da vida de um serviço tecnológico. Entre as alternativas identificadas, e tirando aplicações de nicho que gerem interesse em grupos muito específicos, o pódio ficou entre a Threads, Mastodon e Bluesky.
No campeonato das primeiras impressões que se debatem online (e no X), o Threads parece partir em desvantagem – apesar de contar com uma base de utilizadores crescente bastante assinalável. A proximidade da rede social ao Instagram lembra o facto de ser da Meta, empresa mãe do Facebook, e a desconfiança acumulada para com Mark Zuckerberg faz-se sentir. Os utilizadores que estavam no Twitter, em parte, precisamente por terem procurado uma rede social que não fizesse parte deste grupo, não parecem dispostos a abdicar deste critério. E a discutir o prémio de destino de eleição sobraram Mastodon e Bluesky, redes apresentadas com outras virtudes.
A primeira foi o destino escolhido e promovido especialmente em nichos mais preocupados com os direitos digitais; mas foi a segunda que acabou por captar o apelo popular, atingindo um ritmo de crescimento que há uns tempos seria inimaginável – ao dia 26 de Novembro já tinha 21 milhões e crescia a um ritmo de 4 utilizadores por segundo. Esta escolha deu lugar a uma aprofundada discussão sobre as suas características e promessas – pretexto para pensar na complexa teia de relações que está por de trás de uma rede social de grande escala.
Perguntando aos utilizadores do Bluesky o que tem tornado a experiência face ao X tão distinta e mais aprazível, é provável que as respostas mais comuns sejam a inexistência de um feed algorítmico por definição e a ausência de anúncios. Na ressaca dos últimos anos de X altamente marcados pelo privilégio dos algoritmos por conteúdos virais e viciantes, e pela inundação de publicidade e tweets de contas verificadas (outra forma de publicidade), a sensação de controlo sobre o feed reminiscente dos primórdios do Twitter é uma das maiores virtudes da rede. Será esse apelo nostálgico um sinal de alerta face ao que aprendemos com a experiência recente? Não tem de ser assim.
A criação que ameaça o criador
Em pouco mais de 1 ano o Bluesky passou de ser a nova concorrente para se tornar na opção mais consagrada. Nesse período, Jack Dorsey saiu do conselho de administração da empresa de forma lacónica, e Mike Masnick juntou-se para tentar contribuir para a missão que ajudou a teorizar a princípio. E dezenas de milhares de dólares entraram nos cofres da empresa.
O Bluesky nasceu em 2019 como um projecto experimental iniciado por Jack Dorsey quando este ainda era responsável máximo do Twitter. Inspirado pela promessa da internet social e descentralizada característica do imaginário em torno da Web3, Dorsey decidiu incubar no Twitter a criação de protocolo que o próprio Twitter pudesse vir a adoptar. A sua intenção era tornar o Twitter descentralizado, isto é, mantendo todas as funcionalidades que conhecíamos, torná-lo, da influência de uma entidade central e protegê-lo de abusos de poder (como aconteceu com Musk), passando a ser apenas mais um nó de uma rede maior. Mais do que uma rede social, e inspirado, entre outros, pelo famoso artigo de Mike Masnick, “Protocols, not platforms”, o propósito do projecto Bluesky foi desde sempre o de criar um protocolo onde várias redes sociais pudessem coexistir, e tornar-se independente do Twitter o mais rapidamente possível.
Essa independência foi declarada em 2021, com a fundação da Bluesky PBC (Public Benefit Company), com registo no Delaware, jurisdição muito popular nos EUA por ter características semelhantes a uma offshore. Ainda que mantendo Dorsey como um dos principais nomes do conselho de administração, foi Jay Graeber, engenheira de software norte-americana, quem assumiu a liderança da empresa desde então. Graeber, então uma desconhecida da maioria, chegou a este lugar depois de uma passagem pela empresa de criptomoedas ZCash, da tentativa de desenvolver uma plataforma social para eventos alternativa ao Facebook, o Happening, e com a missão assumida de criar uma rede social diferente, agitando a bandeira da federação e da descentralização (um modelo de descentralização das redes sociais) que já carregava consigo de projectos anteriores.
Foi cerca de 2 anos depois de sair da casa-mãe, que o Bluesky começou a experimentar os primeiros voos e a figurar entre as alternativas ao X, juntando-se ao Mastodon. Primeiro com o lançamento de um sistema de registo por convite com que atraiu os primeiros utilizadores para uma aplicação ainda muito aquém do esperado, e depois com sucessivas melhorias na aplicação. Em pouco mais de 1 ano o Bluesky passou de ser a nova concorrente para se tornar na opção mais consagrada. Nesse período, Jack Dorsey saiu do conselho de administração da empresa de forma lacónica, e Mike Masnick juntou-se para tentar contribuir para a missão que ajudou a teorizar a princípio. E dezenas de milhares de dólares entraram nos cofres da empresa.
Ainda que Mastodon e Bluesky tenham um registo legal análogo, como empresas de serviço público, em jurisdições diferentes (uma na Alemanha e outra em Delaware), a forma como se sustentam é bastante distinta. O Mastodon é financiado sobretudo por subscrição de um Patreon e fundos públicos ou de ONGs com interesse no desenvolvimento de software livre e de standards abertos. Já o Bluesky depende de financiamentos corporativos desde os seus primórdios. Primeiro o resultante do acordo com o Twitter que garantiu o financiamento nos primeiros anos na ordem da meia dezena de milhão, um reforço recebido em 2023 numa nova ronda de financiamento, liderada pela Neo, no valor de 8 milhões. E em Outubro de 2024, mesmo antes do pico de utilizadores, foi a vez de a Blockchain Capital se tornar na principal investidora da empresa, com um investimento a rondar os 15 milhões de dólares.
Esta diferença nos números ajuda a perceber a diferença na capacidade de desenvolvimento e explica como é que o Bluesky se tornou tão rapidamente melhor do que a concorrência. E embora não nos diga necessariamente nada sobre o futuro, deve tornar evidente que existem diferentes expectativas em torno do desenvolvimento e de outra aplicação, a não ser que acreditem que estes investidores se contentam com uma mensagem de agradecimento no Patreon pelo serviço prestado à comunidade.
Plataformas, protocolos e promessas
A grande novidade trazida pelo Bluesky não é a opção por um protoclo, mas por criar um completamente novo. Enquanto Threads e Mastodon são exemplos de implementação do ActivityPub, o protocolo recomendado pela The World Wide Web Consortium (W3C).
As redes sociais tradicionais como as conhecemos funcionam de forma centralizada, numa relação entre os utilizadores e um servidor central onde todos se ligam. Ao longo dos anos, e com os sucessivos exemplos de vulnerabilidades nesta arquitectura de interação social online, tem-se vindo a discutir de que outras formas se poderia oferecer os mesmos benefícios mitigando simultaneamente os riscos. A ideia de optar por protocolos e não pela concepção tradicional de redes sociais não é nova. Na base está a intenção de dar aos utilizadores um maior controlo sobre os seus dados e a sua experiência, ao dar-lhes mais hipótese de escolha entre as aplicações que exploram as mesmas funcionalidades da rede.
Em teoria, neste tipo de infraestrutura os utilizadores podem migrar a conta entre redes sociais que utilizem o mesmo protocolo, mantendo parte da experiência (por exemplo vendo o que é dito noutra rede social); isso faz com que não se sintam presos a uma rede social em específico e possam escolher entre várias opções sem grandes obstáculos; o que consequentemente obriga a que cada uma das redes sociais ligadas ao protocolo continue a dar resposta às necessidades e pedidos dos seus utilizadores; evitando-se assim a enshittification – conceito cunhado por Cory Doctorow para exprimir a tendência das redes sociais para se tornarem pior ao longo do tempo à medida que aumenta a dificuldade dos utilizadores saírem e diminuem os incentivos para continuar a manter a rede sã.
A grande novidade trazida pelo Bluesky não é a opção por um protoclo, mas por criar um completamente novo. Enquanto Threads e Mastodon são exemplos de implementação do ActivityPub, o protocolo recomendado pela The World Wide Web Consortium (W3C) – entidade responsável pela criação e manutenção de normas online como o HTML, ou o SVG – para a criação de redes sociais online. A opção dos criadores do Bluesky não foi juntar-se a este protocolo que já conta com diversas aplicações, mas criar um protocolo concorrente o @protocol (lê-se At Protocol), que procura dar resposta às lacunas identificadas no ActivityPub, e implementar um novo ritmo de desenvolvimento na área.
À primeira vista, e para a experiência de utilização comum, as diferenças entre estes protocolos e as suas implementações podem não ser especialmente relevantes, mas são evidentes. Se no lado do Mastodon podemos escolher entre mais de um milhar de diferentes servidores onde criar a nossa conta, e ficamos dependentes das políticas de gestão implementadas pelos responsáveis de cada um desses servidores. No Bluesky, que já conta com o dobro dos utilizadores, existe apenas a instância central bsky.social onde é possível fazê-lo.
Ao assumir este crescimento num protocolo integralmente novo, que para já não tem outras aplicações relevantes se não o próprio Bluesky, e em que a infraestrutura digital é praticamente toda detida pela empresa que o financia, o Bluesky tem conseguido garantir uma experiência estável, foco no desenvolvimento de funcionalidades atraentes para a sua rede social e capacidade de escalar ao ritmo alucinante. Ao mesmo tempo, têm-se tornado num eixo central na rede que criou (a que chamam Atmosphere), numa proporção que pode ser difícil de contrariar no futuro, e que pode criar poucos incentivos à criação de concorrência na rede e que tem despertado os mais céticos da promessa da descentralização. À primeira vista, esta decisão pode parecer ir no sentido inverso da descentralização mas mais do que isso revela o que significa descentralização para os detentores do Bluesky – e como acreditam ser possível equilibrar este critério com o apelo e a usabilidade indispensáveis à popularidade de qualquer rede social.
O sonho da descentralização
Como vimos, a questão não é a inexistência de protocolos, mas a sua implementação de uma forma que seja fácil de usar e não perca as vantagens; que equilibre os valores por que se procura a descentralização e os atributos que as tornam as redes sociais apelativas às massas.
Desde que existe a possibilidade de ligar computadores em rede, em qualquer parte do mundo, existe o sonho de criar formas de comunicação entre eles que não dependam de qualquer entidade central. Um dos exemplos práticos desse sonho teórico é o e-mail, um protocolo que todos utilizamos sem sequer pensarmos como funciona mas que pode ajudar-nos a perceber a importância da questão da centralização.
Funcionando através de protocolos abertos, como SMTP, IMAP e POP3, o sistema de e-mail permite que qualquer servidor no mundo envie e receba mensagens sem depender de uma entidade central. Esta descentralização oferece autonomia aos utilizadores no acesso à rede, uma vez que qualquer pessoa pode configurar seu próprio servidor e-mail e contactar os demais; contudo, na prática, a maioria dos utilizadores optar criar num provedor corporativo como o Hotmail, Gmail, Proton, ou qualquer outro, seja pela integração com outros serviços, pelo acesso aos filtros de spam, pela promessa de mais privacidade ou, simplesmente, pela conveniência.
A ideia dos protocolos é criar padrões de comunicação que garantam a fidelidade na transmissão dos dados, a segurança na rede e o acesso sem intermediário. Se no caso do e-mail isso está perfeitamente disseminado, e as aplicações para comunicar por e-mail proliferam (por muito que anunciem a sua morte), no caso das redes sociais tem revelado outros desafios – como o equilíbrio da moderação, o bloqueio de contas nocivas, a gestão da privacidade dos dados e a fácil usabilidade para os utilizadores. Como vimos, a questão não é a inexistência de protocolos, mas a sua implementação de uma forma que seja fácil de usar e não perca as vantagens; que equilibre os valores por que se procura a descentralização e os atributos que as tornam as redes sociais apelativas às massas.
A forma como o Bluesky desenha e gere este balanço que a torna, por um lado, uma muito melhor alternativa ao X, com feeds mais dinâmicos e a possibilidade de navegar na rede como um todo, por outro, um alvo de críticas e desconfiança sobre a sua promessa. Apesar da narrativa em torno da descentralização, há quem rejeite que esta definição se possa aplicar ao Bluesky e ao respectivo protocolo, pelo menos para já. Mas também há quem advogue que a discórdia está no real significado da descentralização quando aplicado a uma rede social funcional. O que faz da pergunta ‘é o Bluesky descentralizada ou federado?’ uma questão para milhões de dólares.
Em vez de ter servidores no sentido tradicional, como o Mastodon tem os diferentes servidores que mencionámos, o Bluesky é composto por três componentes que combinados geram a experiência da utilização. Esses componentes são os PDS (Personal Data Server), o Relay e AppView. Explicando de forma simplificada, o primeiro componente são servidores os dados associados a cada uma das contas, o Relay é o fluxo de informação que é transmitido na rede e a AppView é o colector de conteúdos desse relay que os disponibiliza na aplicação com que o utilizador interage.
Actualmente, é possível e acessível que qualquer utilizador estabeleça o seu PDS e aloje os dados da sua conta e de outras num servidor próprio; e criar diferentes AppViews que propiciem diferentes experiências com base nos conteúdos que circulam na rede. O que não é tão fácil é criar um Relay, um dos pontos da rede onde a descentralização é mais questionada, para além de outros como o sistema de identificação de contas que ainda é totalmente centralizado ou da envio de DMs que é feita fora do protocolo.
Se a forma como o Mastodon implementa a descentralização permite que diferentes servidores se conectem entre si, a ideia por detrás do Bluesky é que a comunicação passe por um ponto central onde todo conteúdo é indexado tornando-se visível para toda a rede – mal comparado, pretendem ser uma espécie de Google, indexando activamente tudo o que existe online na rede Atmosphere, tal como o Google indexa a web, em vez de um Email onde os servidores passam mensagens entre si. Deste modo, é em teoria possível que se criem diferentes aplicações que explorem os dados da rede (contas e conteúdos) – imaginemos a rede social GreenCloud que privilegia tweets sobre ecologia, como num dos exemplos dados pela equipa – mas na prática não são claros os incentivos em criar um concorrente ao Bluesky; especialmente dado que este se tornou praticamente num sinónimo do protocolo, é financiado pela mesma empresa que controla o código, permite um nível de personalização da experiência bastante avançado para utilizador, e fazê-lo teria custos de entrada cada vez mais elevados graças ao crescente número de utilizadores.
Na base desta escolha pode estar, como sugeriu Mike Masnick na sua nota em que anuncia ter-se juntado ao conselho de administração, a ideia de que os utilizadores não devem ser confrontados com as dificuldades inerentes às redes descentralizadas, ou federadas, para que a sua experiência possa tirar vantagens desta arquitectura. Masnick sugere que os utilizadores querem basicamente uma aplicação que funcione bem e que se mantenha estável, e que só com esse foco é possível atrair a um grupo de utilizadores vasto e que não tenha propriamente conhecimentos técnicos, e dar a utilidade que se espera a uma rede social. Contudo é esta escolha que faz com que nem todos acreditem na promessa de uma rede social diferente.
Um desses nomes é Cory Doctorow, o notável escritor de ficção científica reconhecido pelas suas análises sobre o ambiente digital, que diz que não se juntará ao Bluesky pelo menos até que estes provem que não se trata de uma armadilha. Isto porque, no seu entender, a preferência pelo desenvolvimento de funcionalidades que tornam a aplicação detida pela empresa melhor e o centro de todas as atenções, cria um diferencial de poder que pode não impedir a enshittification, nem tornar o protocolo suficientemente atractivo para que outras aplicações surjam a tempo de competir. Doctorow sublinha que a sua decisão não é porque não confia em quem desenvolve e lidera o projecto, nem por este ter recebido capital externo, mas pelas experiências em que a realidade dos custos de desenvolvimento, e a necessidade de monetização para os compensar, levam as empresas a alterar as suas prioridades na prática e a deixar para segundo plano aqueles que eram os principais interesses – a defesa dos utilizadores.
Para sempre enquanto durar
“Não só vimos a decadência do X ao longo da última década ao abdicar de todos os que eram os princípios por design, como vimos uma das bandeiras do Facebook, a Graph API ser explorada de forma nociva no escândalo Cambridge Analytica. Ou mais recentemente vimos a OpenAI a deixar cair todas as suas promessas em busca do retorno.“
Para de alguma forma resumir as ideias aqui discutidas, podemos resumir tudo em 3 perguntas: o Bluesky é descentralizado? Não, mas o seu protocolo pode vir a ser. Tem características que o tornam melhor que o X? Sim, sem dúvida. Essas características podem desaparecer? Ninguém sabe.
O Bluesky também inova na forma como implementa a moderação e como dá ao utilizador uma forma de controlar o seu feed. E essas funcionalidades são suficientes para uma curadoria rigorosa dos conteúdos que aparecem e têm uma dimensão comunitária que as tornam muito interessantes (pensamos nas listas de bloqueio, nos starter packs). O facto de os feeds algorítmicos não serem a definição da aplicação, de se poder criar feeds completamente personalizados e partilhá-los entre utilizadores e do bloqueio funcionar realmente e também de forma escalável, são outros elementos interessantes. Tudo isto faz com que para a maioria dos utilizadores a questão da descentralização não seja assim tão importante. Mas no cômputo geral não tira importância a este debate, antes pelo contrário.
Não só vimos a decadência do X ao longo da última década ao abdicar de todos os que eram os princípios por design, como vimos uma das bandeiras do Facebook, a Graph API ser explorada de forma nociva no escândalo Cambridge Analytica. Ou mais recentemente vimos a OpenAI a deixar cair todas as suas promessas em busca do retorno. Destemodo, enquanto a descentralização da rede Atmosphere não for clara, com todas as ferramentas para o efeito implementas e bem documentadas, e com concorrentes no mesmo protocolo a competir com o Bluesky, é bom não ter dúvidas sobre a possibilidade da experiência se deteriorar quando as necessidades de retorno se fizerem sentir ou a escala obrigar a decisões difíceis, para sustentar a plataforma ou gerir equilíbrios como a liberdade de expressão. E também é saudável estar atento à possível exploração do que hoje se julgam ser grandes funcionalidades da aplicação para fins menos próprios – como o sistema de moderação, ou as listas de bloqueio que podem ser instrumentalizadas por agentes externos – ou de potenciais abusos das ferramentas básicas como quando o filtro anti-spam bloqueou contas associadas à Palestina.
A decadência das grandes plataformas não deve ser vista só como resultado de uma má índole e más intenções quando pode ser vista como uma complexa sucessão de difíceis problemas de gestão de recursos e governança, que se tornam urgentes com o crescimento das plataformas – o Twitter estreou o algoritmo quando tinha cerca de 54 milhões de utilizadores e tornou-se o que conhecemos aos 540 milhões. Ainda que seja de assinalar a postura da equipa de desenvolvimento do Bluesky que desde sempre expressou a preocupação de poderem tornar-se os seus piores inimigos, que diz desenvolver as coisas de forma a estarem protegidas contra mudanças de planos futuras, a complexidade dos problemas não nos deixa ter certezas nas soluções. Evitar que a linguagem tóxica e o discurso de ódio se normalize, que os filtros de bolha se tornem espirais de radicalização, que a polarização torne o diálogo impossível, ou que os esquemas para ganhar dinheiro rápido ou para manipular a opinião pública invadam a plataforma não é tão fácil como soa. E algumas das soluções que parecem funcionar numa rede social com 20 milhões de utilizadores rapidamente se revelam insuficientes quando a escala aumenta, fazendo aumentar a necessidade de recursos (computacionais e humanos), mas também o interesse e potencial de ameaça de agentes mal intencionados.
Depois da sensação de sequestro e do sentimento de repulsa que os últimos anos de X geraram, é bom não nos deixarmos cair na ilusão, nem propagarmos a ideia de uma rede perfeita baseada em percepções enviesadas. Como quando se afirma que o Bluesky não tem algoritmos (tem, desde logo o Discover ou o mecanismo de sugestão de contas, ou um algoritmo que filtra os conteúdos antes da timeline evitando spam, bots e afins) ou é completamente descentralizado (quando é na teoria mas não na prática), ou quando achamos que no Bluesky (uma rede inteiramente pública, com uma API aberta que qualquer um pode aceder e usar para o que bem entender) os nossos dados não podem ser usados para IA.
Por agora, é aproveitar que o céu está azul, mas de olhos no horizonte para percebermos quando começarem a chegar as nuvens cinzentas.