A diretiva europeia sobre direitos de autor foi transposta para a legislação nacional pelo Governo, sem ser discutida no Parlamento, perdendo-se a oportunidade de melhorar a lei com a discussão pública que daí viria. Ainda assim, o Governo manteve a sua palavra e criou uma consulta pública sobre a proposta que tinha desenhado para a transposição. O executivo incorporou no texto algumas das correções e sugestões recebidas nessa consulta, mas não as suficientes para aprovar uma lei totalmente conforme à lei europeia.
Taxa dos Links
Os utilizadores do Facebook em Portugal começaram a notar que a partilha de alguns links para notícias de órgãos de comunicação social (OCS) deixaram de mostrar a imagem e o pequeno excerto de texto característicos, comummente designados por snippets. Os órgãos de comunicação social, registados no Facebook como tal, continuam a poder partilhar os links para os seus conteúdos com imagens, vídeos, ou excertos, mas as partilhas desses mesmos conteúdos por outros utilizadores mostram apenas o título e o link. Num mundo com excesso de conteúdos, tais partilhas chamam menos atenção do que aquelas que contêm imagens ou vídeos, pelo que é expectável que os leitores acedam cada vez menos a notícias, diminuindo assim o combate à desinformação.
A mudança é uma consequência direta da transposição da Diretiva Europeia 2019/790 relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital para a legislação nacional dos vários Estados-Membros da União Europeia. A diretiva foi talvez das mais polémicas de sempre, principalmente devido ao artigo 13 (artigo 17 na versão final da lei) e ao artigo 11 (artigo 15 na versão final), também chamado “taxa dos links“.
Ao criar os dois novos direitos de exclusivo para as publicações de imprensa, pedidos pelos órgãos de comunicação social e que até então pertenciam apenas aos jornalistas, o artigo 11 da diretiva pretendia forçar as plataformas online a pagarem às empresas jornalísticas para poderem incluir hiperligações para os conteúdos desses mesmos órgãos. Com a discussão e pressão pública, conseguiram-se introduzir algumas modificações, nomeadamente a permissão para partilhar a hiperligação.
Apesar da diretiva indicar que estes dois direitos não se aplicam a utilizações privadas ou não comerciais por utilizadores individuais, o Facebook decidiu voluntariamente remover os snippets, exceto nos casos em que o órgão de comunicação social dê uma licença ao Facebook para mostrar os conteúdos adicionais.
E o zelo do Facebook parece ter razão de ser. Em países como Portugal, o governo foi mais longe do que a diretiva: não só alterou a isenção de “utilizações privadas ou não comerciais” para “utilizações privadas e não comerciais”, reduzindo o número de situações em que se pode fazer a partilha, como acrescentou condições que não estão na diretiva. Especificamente, a partilha só pode ser realizada “no exercício do direito de ser informado” e “mediante acesso lícito”, sendo esta última condição particularmente grave, porque apesar de se assumir que as utilizações de uma obra implicam o acesso legal, impõe ao cidadão o ónus da prova.
Ora, é impossível ao cidadão garantir que está a aceder à obra de forma legal. Em 2009, a Amazon removeu livros digitais dos dispositivos dos seus clientes por ter percebido que não podia ter vendido aquelas obras. Em 2005, aquando do lançamento de um novo livro na série Harry Potter, a editora enviou os livros para as livrarias com a indicação de só poderem ser vendidos a partir de determinado dia, mas uma loja fez algumas vendas antes desse dia e o tribunal ordenou aos leitores devolverem os livros. Em ambos os exemplos, os cidadãos compraram os livros de boa fé, não tendo nenhuma razão para desconfiar das livrarias, mas acederam à obra de forma ilegal.
Esta não é a primeira vez que um governo em Portugal tenta introduzir tal condição na lei: numa das propostas sobre a atualização da taxa da cópia privada houve uma tentativa semelhante, mas sem sucesso. Se o Governo insiste em colocar no cidadão o ónus da prova, precisa de estar preparado para obrigar a que todos os acordos e contratos feitos pelos criadores das obras com outras pessoas ou entidades sejam publicados em acesso aberto, para que possam ser verificados pelo cidadão.
Os direitos dos jornalistas
O legislador europeu percebeu que ao dar direitos, que até agora pertenciam apenas aos jornalistas, a órgãos de comunicação social estava a diminuir o direito dos próprios jornalistas e portanto a diminuir também o seu poder de negociação. Neste sentido, a diretiva inclui um ponto que diz que estes novos direitos dos editores não podem impactar os direitos dos jornalistas. Mas numa altura em que há uma grande percentagem de jornalistas em situações precárias, e com a concentração de OCS, este ponto não tem muita força, pelo que o legislador europeu determinou ainda que os jornalistas, autores das obras, recebam uma parte adequada daquilo que as empresas jornalísticas receberem por parte das plataformas online.
Muitas associações que se bateram contra os artigos polémicos desta diretiva tentaram que esta remuneração dos jornalistas fosse também proporcional, uma vez que uma quantia apropriada ou adequada pode ser zero, se assim for justificada, mas não se conseguiu que esse aditamento fosse aprovado. É por isso positivo que o Governo tenha acrescentado na lei nacional que, por um lado, esta remuneração aos jornalistas seja equitativa para além de adequada, e por outro, remeta para outros artigos da lei que obrigam a que a remuneração aos autores, neste caso jornalistas, seja também proporcionada e possa ainda haver lugar a remuneração adicional, nos casos em que a remuneração inicial seja desproporcionalmente baixa em relação a receitas posteriores. No entanto, não é claro na lei que esta remuneração se aplique a todos jornalistas, podendo depender do tipo de acordo ou contrato que o autor tiver com a publicação, pelo que os jornalistas em Portugal devem informar-se sobre o seu caso em particular.
Artigo 17 (ex-artigo 13)
O artigo 13, que foi aprovado como artigo 17, foi talvez o artigo mais polémico, levando milhares de cidadãos europeus a manifestarem-se nas ruas de várias cidade contra a proposta da Comissão Europeia. Em Portugal, o auge da polémica foi despoletado por um youtuber que disse que “a Internet ia acabar, tal como a conhecemos”. Na verdade, a Ministra da Cultura de então, Graça Fonseca, não esteve muito longe desta ideia nas declarações que fez, citada pelo Observador, ao comparar plataformas como o YouTube a plataformas como o Spotify, que para o Governo “fazem ambas o mesmo”.
A grande revolução que a Internet trouxe ao espaço público foi a possibilidade de qualquer pessoa poder publicar as suas obras ou vendê-las diretamente ao seu público, sem ser obrigada a passar por um intermediário, como uma editora, por exemplo. O YouTube é um exemplo deste ecossistema: se quisermos fazer um vídeo ou música podemos publicá-lo naquela plataforma ou monetizá-lo sem estarmos dependentes de uma editora ou produtora e, portanto, sem termos de partilhar a remuneração que obtivermos com outras entidades. Apesar do Spotify também estar na Internet, esta plataforma segue o modelo tradicional: se quisermos colocar uma música que criámos no Spotify teremos de convencer uma editora a fazer um contrato connosco, ou teremos de procurar um distribuidor que colocará a nossa música no Spotify. Neste caso, os criadores estão sempre dependentes de intermediários e que ficam com parte da remuneração obtida, tal como no modelo tradicional.
Quando o legislador propõe uma lei com o objetivo de obrigar as plataformas do tipo YouTube a funcionarem como as plataformas do tipo Spotify está claramente a tentar forçar uma mudança da Internet para um sistema controlado por intermediários, tal como acontecia nos media antes da Internet. E não se trata de remover conteúdos colocados nas plataformas sem autorização dos titulares dos direitos: as plataformas sempre estiveram obrigadas a remover essas obras e o sistema não só funcionava — e funciona — como era — e é — abusado pelos titulares dos direitos, que regularmente mandavam as plataformas removerem conteúdos que não tinham o direito de remover.
É verdade que a Internet não acabou com a aprovação da diretiva, mas também é verdade que o artigo 17 aprovado é muito diferente do artigo 13 proposto inicialmente pela Comissão Europeia. O trabalho de várias associações e as manifestações dos cidadãos por toda a Europa resultaram em melhorias daquela proposta pelo Parlamento Europeu, mesmo não se tendo conseguido remover o artigo da lei.
Já depois da diretiva ter sido aprovada, o Governo da Polónia levou o artigo 17 ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJEU), que determinou que aquele artigo era legal porque havia um conjunto de salvaguardas dos direitos dos cidadãos na lei, sublinhando que importava “recordar que o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de declarar que um sistema de filtragem que poderia não distinguir suficientemente entre um conteúdo ilícito e um conteúdo lícito, de modo que a sua implementação poderia ter por efeito provocar o bloqueio de comunicações de conteúdo lícito, seria incompatível com o direito à liberdade de expressão e de informação, garantido pelo artigo 11.° da Carta, e não respeitaria o justo equilíbrio entre este e o direito de propriedade intelectual.”
Percebe-se que a transposição de uma lei europeia para a legislação nacional possa suscitar algumas dúvidas de interpretação ao governo que tem essa responsabilidade. Mas no caso do artigo 17, que foi analisado pelo TJUE, bastaria ao Governo Português olhar para o acórdão do tribunal e introduzir os pontos listados pela decisão. No entanto, o executivo limitou-se a copiar o texto da diretiva, não introduzindo salvaguardas específicas para antes dos carregamentos, nem impondo as limitações ao sistema de filtragem sublinhadas pelo tribunal, nem garantindo que os bloqueios não podem ser realizados nos casos em que a plataforma precisaria de analisar a sua legalidade, entre outros, tendo introduzido apenas uma obrigação geral de não impedir usos legítimos, o que claramente não é suficiente para equilibrar os direitos dos cidadãos e os direitos de autor, segundo a interpretação do TJUE. E se o acórdão do TJUE não fosse suficiente, poderia ainda o Governo ter olhado para aqueles países que fizeram uma melhor transposição, como a Alemanha ou a Suécia.
Duas exceções para prospeção de texto e dados
A proposta para a diretiva feita inicialmente pela Comissão Europeia continha apenas uma exceção para prospeção de texto e dados ou text and data mining (TDM), mas era extremamente restritiva: apenas podia ser usada por organizações de investigação científica, reconhecidas pelo Estado-Membro. Tal opção deixava de fora investigadores que não estivessem num centro de investigação, entidades de património cultural, associações, câmaras municipais, startups e outras empresas, assim como o cidadão comum. Mesmo no caso daqueles projetos que emanam da sociedade civil e que usam texto e dados públicos era necessário remover a incerteza jurídica dessa utilização: a prospeção de texto e dados analisa milhares ou milhões de dados, sendo impossível verificar a condição de direito de autor de cada um, pelo que o legislador europeu reconheu que era importante criar uma exceção ao direito de autor para esta utilização das obras.
Foi o trabalho e participação das associações da sociedade civil que conseguiu que o Parlamento Europeu alargasse a exceção proposta pela CE para incluir bibliotecas, arquivos, e outros, e criasse ainda uma outra exceção que pudesse ser usada por todas as pessoas, entidades, e empresas.
Assim, a diretiva foi aprovada com duas exceções para TDM, com destinatários diferentes, tipos de utilização diferentes, e também condições diferentes:
- Uma exceção para TDM para fins de investigação científica, para ser usada por organizações de investigação científica e instituições de património cultural, em que as cópias realizadas podem ser mantidas para fins de investigação científica e verificação de resultados, mas em que os titulares dos direitos podem aplicar medidas de segurança nas redes e bases de dados, desde que tais medidas não excedam o necessário para esse objetivo, e porque este tipo de medidas muitas vezes impede o trabalho dos investigadores, a diretiva indica que os países devem incentivar os titulares dos direitos, as organizações de investigação, e as instituições de património a definirem conjuntamente boas práticas na aplicação dessas medidas;
- Uma exceção para TDM para qualquer fim (não apenas para investigação científica), para ser usada por qualquer pessoa ou entidade, em que as cópias realizadas podem ser mantidas enquanto forem necessárias para fins de TDM (e não apenas para fins de investigação científica), e em que a exceção pode ser usada em qualquer texto ou dados, desde que os titulares dos direitos não tenham colocado uma restrição que possa ser lida por uma máquina.
O governo transpôs, e bem, as duas exceções diferentes em duas alíneas diferentes do artigo 75º do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos, mas ao transpor, no artigo seguinte, as condições em que aquelas exceções se podem usar, impôs as mesmas condições a ambas exceções, impondo na segunda exceção a obrigação das cópias serem armazenadas com segurança, condição que não existe na diretiva, e dizendo que “podem ser conservadas para fins de investigação científica enquanto for necessário para prospeção de textos e dados, incluindo para verificação dos resultados da investigação”, quando a segunda exceção não é apenas para investigação científica.
Sendo uma exceção obrigatória na diretiva e havendo diferenças para a transposição nacional, considera-se que a lei correta será a diretiva. No entanto, pessoas ou entidades que queiram fazer uso da exceção para TDM devem verificar em que condições o podem fazer.
Obras fora do Circuito Comercial
Um dos grandes problemas no acesso a obras culturais e científicas decorre do facto das editoras perderem o interesse comercial por republicar ou fazer novas edições dessas mesmas obras. No caso das obras que ainda têm direitos de autor, se a editora que detém os direitos de publicação não quiser reeditar a obra, mais ninguém o pode fazer. Este problema foi estudado pelo Professor Paul J. Heald, da Universidade de Illinois, e reconhecido pela Europeana, a biblioteca digital europeia, como o buraco negro do séc. XX para descrever a falta de acesso dos cidadãos a obras ainda com direitos de autor com mais de 10 anos. Este problema não acontece com as obras em domínio público, uma vez que qualquer editora pode fazer reedições destas obras e disponibilizá-las para venda aos cidadãos.
Para minimizar o problema do acesso, o legislador europeu determinou que se existir uma entidade de gestão coletiva suficientemente representativa dos titulares dos direitos de um determinado tipo de obra, essa entidade pode fazer um acordo com bibliotecas, arquivos, e outras instituições de património para que estas disponibilizem essas obras ao público para fins não comerciais. No caso de tal entidade não existir, as instituições podem disponibilizar essas obras nas mesmas condições. Mas para que tal aconteça é necessário fazer um esforço para verificar se as obras não estão à venda nos vários canais de comércio. Para dar alguma segurança às instituições de património, a diretiva diz ainda que o legislador nacional pode decidir sobre uma data limite a partir da qual se considera que as obras estão fora do circuito comercial.
Como esta indisponibilidade das obras depende do tempo que passa, o que o legislador europeu tinha em mente quando permitiu a criação de uma data limite seria um período de tempo, como por exemplo obras que foram publicadas há mais de 20 ou 30 anos.
Em vez disto, o governo português decidiu colocar na lei uma data precisa: 1 de janeiro de 1980. Isto significa que à medida que o tempo passa mais obras publicadas depois de 1980 vão deixar de estar à venda, mas as instituições de património não vão poder usar esta exceção da diretiva para as disponibilizar ao público.
Na proposta de lei, o governo impunha ainda a condição de para além das instituições de património fazerem um esforço para avaliar da indisponibilidade comercial das obras, serem obrigadas a contactar os titulares dos direitos das obras, o que em muitos casos é impossível — veja-se o exemplo das obras órfãs — e contrário à diretiva europeia, pelo que é de saudar que o governo tenha decidido retirar essa condição na lei final.
Duas exceções para fins de ensino
A lei europeia criou uma nova exceção para utilizações digitais das obras para fins de ensino, e o governo decidiu transpôr essa exceção impondo restrições que não estão na diretiva, como por exemplo limitando o uso a materiais publicados anteriormente em territórios da União Europeia ou equivalentes.
Na verdade, o governo poderia ter simplificado e melhorado a lei criando apenas uma exceção para fins de ensino na condição de se indicar a fonte e o uso não ser para fins comerciais. E podia tê-lo feito porque a diretiva de 2019 permite, no seu artigo 25º, aos Estados-Membros alargarem as exceções, na condição de serem compatíveis com a diretiva de 2001, e esta tem uma boa e simples exceção para fins de ensino, que Portugal devia ter aproveitado.
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