Elas são três irmãs e voam com destino ao sucesso

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Luan Okun, João Abreu e Ivvi Romão protagonizam a peça de Tita Maravilha e são "referências vivas" para si. © Filipe Ferreira / TNDM II

Elas são três irmãs e voam com destino ao sucesso

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"As Três Irmãs", peça vencedora do Prémio Amélia Rey Colaço TNDM II, chega a cena pelas mãos de Tita Maravilha. Mostra-nos como celebrar "a individualidade dentro do coletivo".

Foi há praticamente um ano que a equipa de comunicação do Teatro Nacional D. Maria II anunciou mais uma vencedora da Bolsa Amélia Rey Colaço. Por esses dias, quase todos os jornais portugueses partilhavam um take da Lusa que dava conta da premiada de 2022: Tita Maravilha. Na altura em que viu o seu nome anunciado, Tita circulava diariamente pelos corredores do histórico teatro no Rossio. É que desde o dia 26 de maio a Sala Estúdio era uma espécie de segunda casa onde co-habitava com Keli Freitas, Nádia Yracema e Raquel André. Juntas estavam a questionar as fronteiras da língua portuguesa na performance-conferência “Outra Língua”

Do que se sabia na altura, a proposta de Tita Maravilha era uma releitura de “Três Irmãs”, obra do dramaturgo russo Anton Tchekhov encenada pela primeira vez no Teatro de Arte de Moscovo em 1901. E mesmo para quem acompanha o trabalho de Tita, não era muito fácil prever como seria este seu encontro com Tchekov 121 anos depois — porque em Trypas Corassão, como noutro projeto qualquer, nada do que faz é previsível.

Tita Maravilha é atriz, performer, cantora, dançarina, drag queen, palhaça, apresentadora e dj. ©Ana Viotti

No momento do anúncio, deu algumas pistas à Lusa: “Nesta versão de ‘As Três Irmãs’ criarei uma deliciosa trama sobre irmãs de sangue que se descobrem pessoas trans e não binárias no mesmo percurso em que se tentam inserir na sociedade. Quero sobrepor a trama original a um tema que grita por atenção e que pouco tem sido discutido com sabedoria e lugar de fala”. Soube-se logo, também, que a peça teria João Abreu, Ivvi Romão e Luan Okun na interpretação, música de Aurora Pinho e Odete, direção de movimento de Jaja Rolim, iluminação de Luisa Labate, cenário e figurinos de Marine Sigout e produção de Maria Tsukamoto. E a dramaturgia seria feita a meias com uma companheira muito presente nos seus dias pelo D.Maria II: Keli Freitas. 

No original, Olga, Macha e Irina, três mulheres do século XIX que partilham uma relação de sangue,  vivem numa pequena cidade russa e sonham com o regresso a Moscovo. São três irmãs burguesas que querem voltar a um tempo onde já não se pode voltar, e que nem o futuro poderá trazer como que numa mágica repetição. E é curioso que tenha sido esta peça a vencer a bolsa Amélia Rey Colaço, criada em 2018 para homenagear uma figura ímpar do teatro português, entre 47 candidaturas. A certa altura, também Amélia Rey Colaço viu a vida que conhecia escorregar-lhe por entre os dedos, sem a conseguir agarrar de volta.

Portugal estava a uma década de gritar “Revolução!”, longe de imaginar como seria a vida em liberdade, quando um terrível incêndio deflagrou no Teatro Nacional D. Maria II. Nesse incêndio ardeu todo o guarda-roupa da Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, concessionária do Teatro desde 1929. O incêndio acabou por ser o prenúncio do fim da companhia de teatro que Amélia Rey Colaço e o seu companheiro Robles Monteiro tinham criado juntos, mas também de uma reviravolta na história pessoal de Amélia. 

A atriz nunca mais quis voltar a entrar no Teatro, mesmo depois das obras estruturais que sofreu e que foram tornadas públicas apenas em 1978. Chegou a dizer numa entrevista na RTP que lhe enviavam convites para estreias, mas nunca aceitava porque não conseguia entrar naquele edifício. “Olhe, pois, toda a gente sabe que eu acabei completamente arruinada com o incêndio. (…) Tive uns anos muito duros, isso toda a gente sabe. Tive de hipotecar a casa de campo (…) tive que vender muitas jóias (…)”, contou na mesma entrevista ao jornalista Jorge Cobanco, em 1983. E não bastasse o incêndio, foi despejada da casa com 30 divisões em que vivia. 

Na entrevista com Jorge Cobanco, no programa “Venha Tomar Café Connosco”, Amélia Rey Colaço falou sobre os dissabores da sua vida sem tabus. ©RTP Arquivos

Amélia Rey Colaço acabou por se mudar para uma casa no Dafundo, propriedade da Marquesa de Cadaval, grande patrona dos artistas, que estava fechada há 5 anos. Mas também contou com a solidariedade de “altas personalidades do Estado”. “Estou a viver destas duas pensões [do Museu do Teatro e da RTP], não tenho vergonha nenhuma de dizer isto. Só tenho orgulho e gratidão”, disse a Jorge Cobanco e a todos os espectadores que a ouviram. Em novembro de 2021, a vencedora do prémio que lhe rende homenagem programou um festival de performances com artistas queer, imigrantes e racializadas que pôs em destaque, sem vergonha, as desigualdades que sentem num setor que já é precário — mas é mais precário para umas do que para outras. Chamou-lhe #Precárias

Entre a individualidade e o coletivo

Se tudo corresse dentro da normalidade, a estreia de “As Três Irmãs”, de Tita Maravilha, provavelmente seria na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II. Mas durante o ano de 2023, o Teatro está numa Odisseia Nacional, a apresentar todas as peças que fazem parte da programação em diversas salas do país. Nenhuma delas é no próprio D. Maria II porque pela primeira vez desde a reabertura pós-incêndio de 1964, passará por um processo de obras estruturais. A peça estreou n’ O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, onde a equipa tinha estado em residência artística. Também foi lá que receberam jornalistas para um ensaio de imprensa a dias de mostrarem ao mundo “As Três Irmãs” pela primeira vez. 

“Um, dois, três, somos três gémeas / Três, dois um, com muitas histórias / Fazemos amigos em qualquer lugar, temos brincadeiras de encantar”. Ainda na entrada do espaço de residências artísticas ouve-se ao longe a música do genérico da série de animação “As Três Irmãs”, da catalã Roser Capdevila. Uma referência rapidamente identificável — e carregada de nostalgia — para qualquer pessoa que tenha crescido em Portugal no final dos anos 90, início dos 2000, e que tivesse acesso à televisão. Mesmo sem ter um vislumbre da peça, tornou-se ali mais óbvio que Tita Maravilha faria uma viagem entre os muitos tempos que existem dentro do tempo em que vivemos. 

Ao abrir a porta, a música que vinha da sala de ensaios tornou-se mais perceptível. A dado momento, silêncio. “Podem entrar”, disse-nos Tita. Em palco já estavam João Abreu, Ivvi Romão e Luan Okun. Ou melhor, Macha, Irina e Diogo. Cada uma com a sua mala de viagem, alinhadas para seguir viagem rumo ao mesmo destino, moviam-se numa sintonia quase perfeita. De repente, através de uma expressão ou da forma como reagem aos momentos mortos, lembram-nos de que são individuais. São uma espécie de tríade viva cuja moldura que as une vai muito além de laços de sangue. É transcestral. 

No começo da peça, Irina, Diogo e Macha estão em perfeita sincronia mas a forma como se vestem já é sinal da sua individualidade. ©Filipe Ferreira / TNDM II

Desde o começo, Tita Maravilha sabia que faria uma peça com um elenco trans. A sua desconstrução “vem desse lugar de celebrar as trajetórias trans, renegociar as margens e renegociar os centros”, contou mais tarde ao Shifter. “Celebrando a individualidade de cada uma dentro do coletivo. Como é que entra juntinho mas, ao mesmo tempo, se mostra como ser independente.”  E Macha, Irina e Diogo são mesmo seres independentes; e trazem muito de João, Ivvi e Luan para o palco. Está lá “o humor e a precisão” da João, o background de ballet clássico da Ivvi, “que dançou no Bolshoi”, e a técnica de performance do Luan. 

Não são intérpretes que estão ali diante de nós. São “referências vivas” de Tita Maravilha, com quem se sente privilegiada por partilhar o mesmo tempo. Algumas com mais experiência de palco do que outras, mas igualmente entregues a esta história que contam juntas. Na relação entre as personagens e quem as interpreta — ou “des-interpreta”, como diz Tita —, não há que ter medo de fazer o que à primeira vista pode parecer mais óbvio ou mais pop. A única regra ali é não haver regras: cita-se Tchekhov e ouve-se Aurora, Odete, Puta da Silva, mas também MC Carol, Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda. “As minhas referências estão sempre comigo, eu não escondo elas”, contou Tita Maravilha. 

Tita tem o Brasil nas suas referências e na sua identidade, mas o universo em que cria não se limita ao território que a viu nascer. Este espetáculo foi construído para Portugal, explica; de maneira a que chegue às pessoas de cá. Pensou-o com a consciência de que iria passar por Montemor-o-Novo, Santarém, Viseu e Guimarães. E com o objetivo de chegar “à tia ou à avô” das amigas que poderiam entender qualquer referência que transpusesse para o espetáculo. “Talvez eu consiga, porque as imagens que estão aqui são acessíveis e chegam um pouco a todo o mundo”, afirma.

Chama-lhe desburocratizar e desintelectualizar o teatro. Não no sentido de descer até ao grau 0 de facilidade no que toca ao entendimento, mas antes de não falar apenas para algumas pessoas. Se algum espectador não tiver lido o texto original de Tchekov, não vai ficar pelo caminho. Quem tiver lido, pode perceber onde há um piscar de olho. Mas ninguém fica para trás. “Acho que temos as principais bases que estão no original numa perspetiva mais popular.”

“Trabalhar com a realidade que a gente tem”

Há vários momentos de tensão quando Macha, Irina e Diogo se encontram em cena. A gargalhada de Macha pode ter tanto de contagiante como de constrangedora. Até o caos em que por vezes está a vida destas três irmãs se encontra se torna tragico-cómico. Mas a escolha do humor em tom de provocação “instaura-se” naturalmente: “Não sei se é para morrer de rir ou para te causar o choro. De alguma forma é um lugar intermédio. Mas essa proposição é minha, é um ponto que trago desde o início”, explica a encenadora. A sua mestria na escrita concretiza-se porque João, Ivvi e Luan falam a mesma língua. E quando se ouvem em uníssono, as palavras ganham outro peso. 

No original de Tchekhov, o trabalho é um tema central. Sonha-se com o direito ao trabalho, que tem outro significado para quem é “descendente de pessoas que desprezavam o trabalho”, como diz Irina. No processo dramaturgico de Tita Maravilha com Keli Freitas, as passagens sobre trabalho foram algumas das que chamaram mais à atenção. “Tem uma fala de um dos personagens soldados que entra e diz algo como: ‘Eu nunca trabalhei. Nem a minha bota tiro, quando chego em casa tenho uma pessoa que tira a bota por mim’. No início isso ficou muito guardado na dramaturgia, até que a gente percebeu que, de repente, durante a residência, três pessoas da equipe estavam sem casa, com problemas de habitação em Lisboa. Tudo muito caro, dificuldade em pagar o aluguel. Ok, essa é a nossa Rússia. É uma Lisboa realista.”

Tita Maravilha não descola o teatro da vida. ©Filipe Ferreira / TNDM II

Aqui, não é com Moscovo que se sonha. A realidade não podia ser mais distante, tendo tantos referenciais comuns que servem à reflexão. “A gente vai trabalhar a realidade que a gente tem”. E que realidade é essa? “Às vezes, é de contar moeda. Mas nós não somos precárias, somos precarizadas. Ao mesmo tempo, a ideia de que é: cada vez menos precárias, por favor.” E na condição em que vivem, as protagonistas d’ “As Três Irmãs” de Tita Maravilha querem ter direito ao trabalho com dignidade, mas também ao descanso. Porque o descanso pode ser um luxo. 

Trabalhar a realidade também é ter em palco três protagonistas trans a fazerem o papel de si mesmas. Mas antes de mais, Tita Maravilha quer que o público se interesse pelo que traz para o debate, das questões mais universais às particulares: “Se quem entrou se emocionou aqui dentro, o trabalho está feito.” Interessa-lhe que possam ser mais do que a sua identidade. “A gente quer mostrar que está viva, que é potente”, diz ao Shifter. Esta peça é “uma ação direta contra o transfake” e uma prova de que vale a pena serem elas mesmas a contarem as suas narrativas — e que estas sejam sempre plurais —, tanto quanto é simplesmente uma história que abre os braços a todas as pessoas que dela quiserem fazer parte. Mesmo todas. 

No final do ensaio de imprensa, a azáfama dos dias pré-estreia continua. Os jornalistas fazem-se à estrada. Na triangulação entre Lisboa e Montemor-o-Novo, existe um restaurante de beira de estrada chamado “Três Irmãs”. Na parede está uma fotografia das proprietárias que dão nome ao estabelecimento; há nelas uma proximidade que se sente sem precisarmos de as conhecer. Dá que pensar como podem existir tantas Três Irmãs por esse mundo fora. De Portugal ao Brasil, do Brasil à Rússia. 

Índice

  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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