Vincent Bevins: “o Norte Global tem uma tendência de criar uma narrativa de ‘ou estás connosco ou estás contra nós'”

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Martinus Rimo, 2019, Jakarta - horizontal

Vincent Bevins: “o Norte Global tem uma tendência de criar uma narrativa de ‘ou estás connosco ou estás contra nós'”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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O documentário “O Acto de Matar”, de Joshua Oppenheimer, nomeado para um Oscar em 2013, mostrou ao Norte Global as práticas dos esquadrões de morte indonésios nesse período, em que o Estado massacrou — com o apoio dos Estados Unidos — mais de um milhão de Indonésios acusados de serem comunistas. O Método de Jacarta”  (Temas e Debates), primeiro livro do jornalista Vincent Bevins, lançado em 2020, é uma análise histórica desses acontecimentos.

No passado mês de Maio Timor-Leste celebrou 20 anos de independência. Após séculos de domínio colonial português, a pequena nação do sudeste asiático foi invadida pelo regime militar de Suharto, ditador que liderou a Indonésia entre 1968 e 1998. Estima-se que o domínio Indonésio tenha causado 300 mil mortes, o equivalente a cerca de 40% da população antes da invasão, um historial mais sangrento que o terror perpetrado por Pol Pot no Cambodja. 

Este período levou a uma mobilização da população portuguesa, com algumas semelhanças com a mobilização no início da guerra na Ucrânia. Houve boicotes ao consumo de produtos indonésios, angariação de fundos e umas das maiores manifestações realizadas em Portugal

Nas campanhas de terror na guerra fria, o combate ao comunismo foi uma justificativa frequente, e a definição de comunismo muitíssimo maleável. Para além de proibir o tétum (língua nativa) e o português, os indonésios consideravam automaticamente comunista qualquer Timorense “sem religião”, o que justificaria a perseguição e o uso da violência.

A violência indonésia em Timor a partir de 1975 é, de certa forma, uma réplica de um método que Suharto usou 10 anos antes, quando chegou à presidência da Indonésia, através de um golpe Militar. O documentário “O Acto de Matar”, de Joshua Oppenheimer, nomeado para um Oscar em 2013, mostrou ao Norte Global as práticas dos esquadrões de morte indonésios nesse período, em que o Estado massacrou — com o apoio dos Estados Unidos — mais de um milhão de Indonésios acusados de serem comunistas. O Método de Jacarta”  (Temas e Debates), primeiro livro do jornalista Vincent Bevins, lançado em 2020, é uma análise histórica desses acontecimentos. O livro mostra-nos como as alterações geopolíticas do pós-guerra levaram a diversas campanhas de terror, alegadamente para combater o comunismo, apoiadas pelos EUA. O autor narra como os acontecimentos nesta nação do Sudeste Asiático se relacionam com a política doméstica de outros países do Sul Global: da ditadura militar brasileira ao golpe contra o Chile de Allende. De resto, ainda hoje é possivel ver as cicatrizes deixadas pelos acontecimentos descritos no ‘Método de Jacarta’: na Indonésia ainda é ilegal ser-se comunista, um modelo de referência para politicos da extrema direita global, como Eduardo Bolsonaro.

Antes de escrever este livro, Vincent Bevins (V.B.) foi correspondente no Brasil (LA times e Financial Times) e no Sudeste Asiático (Washington Post), bem como autor publicado em revistas como a The Baffler. O Shifter conversou com Bevins em Londres sobre o “Método de Jacarta”  e como esta obra se relaciona como os acontecimentos políticos do século XXI. 

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos da América estiveram envolvidos em duas intervenções militares no leste asiático, na Coreia e no Vietname. Contudo, argumenta no livro que a Indonésia, do ponto de vista dos Estados Unidos, era a mais importante peça do xadrez Asiático. Qual era a importância da Indonésia na Guerra Fria?

V.B.: Sim, na década de 60, existia um consenso alargado na politica externa norte-americana de que a Indonésia era uma peça mais importante no mapa da Guerra Fria que o Vietname. Existiam algumas razões para tal. A Indonésia era um país maior em termos de população, sendo o quinto mais populoso do mundo, tinha mais recursos naturais, mas também era um país crucial no movimento terceiro-mundista [Movimento Não Alinhado]. Nos dias hoje, no hemisfério norte, o termo terceiro mundo por vezes tem conotações negativas. Mas naquele período era um termo totalmente optimista, um projecto progressista e de transformação dos papéis [das nações] na economia global. Um dos fundadores e principais lideranças desse movimento era Sukarno, primeiro presidente da Indonésia [1945-1967]. 

No sudeste asiático, a Indonésia era de longe o maior país da região. A Indonésia era também o país da [da região] com o maior peso geopolítico. E do ponto de vista global, o Partido Comunista Indonésio era o maior partido político, fora do bloco do socialismo real da China e da União Soviética.

Por estas razões, a Indonésia era muito mais importante [para o establishment norte-americano] que o Vietname. A Coreia do Sul também teve um papel de grande importância no início da Guerra Fria, mas no início dos anos 60, toda a gente em Washington concordava que a Indonésia era mais importante que o Vietname. 

No livro é referido que antes de 1965 [golpe de derruba Sukarno], a CIA bombardeou a Indonésia e posteriormente decidiu mudar de estratégia geopolítica. Porque é que os Estados Unidos decidiram mudar de curso?

V.B.: Nos primeiros anos depois da Segunda Guerra Mundial, o governo dos Estados Unidos encontrava-se na posição de maior potência geopolítica do planeta, e provavelmente da história até aquele ponto. Os Estados Unidos começaram a desenvolver um conjunto de técnicas para serem usadas para moldar os resultados daquilo que era chamado de terceiro mundo na altura, e que hoje chamamos de sul global. O governo norte-americano começa por copiar algumas técnicas do MI6 [agência de inteligência, a versão britânica CIA] e usar técnicas que tinham sido anteriormente testadas em países Europeus, países que tinham sido ou ainda eram potências imperiais formais.

A Indonésia no início da década de 50, começava a ser vista com desagrado pelas autoridades de Washington, e em 1955, os Estados Unidos começam a considerar inaceitável o rumo que a Indonésia levava, sob a liderança do Presidente Sukarno. De forma a impedir que isso aconteça — de forma a parar algo visto como uma ameaça para os interesses geopolíticos norte-americanos — eles [CIA] experimentaram ferramentas que tinham desenvolvido noutros países. A primeira delas foi algo que resultou na Itália, nos primeiros anos da Guerra Fria. Os Estados Unidos enviaram um monte de dinheiro para partidos políticos, para tentar neutralizar o Partido Comunista da Indonésia nas urnas, de forma a dar a vitória a um partido moderado e desarmado [Masyumi]. 

Esta primeira tentativa é uma cópia do método usado em Itália, nos primeiros pós-Segunda Guerra Mundial. Há várias histórias bem detalhadas da forma como funcionou em Itália, com a participação de Frank Sinatra. No final de contas, a táctica que tanto em Itália como em França deixou os comunistas de fora dos governos pós-guerra, não resultou. O Partido Comunista da Indonésia, o PTI, continua a ganhar cada vez mais votos nas eleições. E hoje sabemos, através de documentos desclassificados, que a CIA e o MI6 entendiam que o motivo pelo qual os comunistas ganhavam cada vez mais votos era por serem populares. Os comunistas não faziam fraudes, não usavam a violência, e eram melhores a falar com os camponeses. Os comunistas eram vistos como menos corruptos que os outros partidos e tinham programas de divulgação cultural muito eficazes.  

Como o primeiro método não resultara, eles tentaram em 1958 algo que tinha resultado na Guatemala, quando derrubaram o presidente democraticamente eleito, Jacobo Árbenz. Esta [Indonésia em 1958] acabou por ser a maior operação da história da CIA até à data. Resumidamente, em 1958, a CIA fomentou e depois participou numa guerra civil com o intuito de dividir o país, da mesma forma que tentaram dividir o Vietname. Mas os norte-americanos são apanhados. Um piloto da CIA, cidadão norte-americano, é atingido e aterra na ilha de Ambon, após um ataque militar que matou civis em várias partes do país. Isto confirma algo que a esquerda da Indonésia sempre tinha suspeitado em relação à guerra civil: a guerra estava a ser coordenada, até certo ponto pela CIA, e que a CIA estava a participar [diretamente no conflito].

Depois disso, eles [CIA] acabam por perder. Os Estados Unidos são forçados a acalmar-se. Neste caso em particular, as forças de esquerda do governo Indonésio sentem-se reivindicadas. A Indonésia dá uma viragem à esquerda em termos geopolíticos, e até o embaixador norte-americano escreveu, nas suas memórias, que entendia o porquê. Ele escreve que entende o porquê da Indonésia, depois deste incidente, estar mais consciente em relação aos Estados Unidos e mais receptiva a obter ajuda da União Soviética. E com isto o segundo método falhou.

De forma muito engenhosa, eu penso que eles implementaram uma outra estratégia. [do ponto de vista histórico] É menos claro, mas acho que as evidências apontam para isso. Eles implementaram uma estratégia que funcionou durante décadas na América Latina: em vez de entrar em guerra diretamente com os militares indonésios, eles tentam cooptá-los. Eles levam milhares de militares para formação [em território norte-americano]. A CIA trata-os muito bem, com jantares e afins. A CIA explica aos militares Indonésios os objetivos dos Estados Unidos para a região. Eles tentam explicar aos militares os seus valores e ideias. Dessa dinâmica, entre 1958 a 1965, é criado um consenso, e talvez mesmo uma hegemonia, anticomunista entre os militares. Os Estados Unidos deixam bem claro aos militares indonésios o que esperam deles na região, e o tipo de ações que seriam recompensadas.

Os documento desclassificados indicam que o topo da hierarquia dos governos norte-americanos por vezes estavam mais preocupados com o risco de partidos socialistas chegarem ao poder democraticamente

Como dizia, os Estados Unidos começam a mudar de estratégia num período em que o Partido Comunista da Indonésia é muito popular. Dito isso, havia um real risco de um governo liderado pelos comunistas em 1965?

V.B.: O primeiro sistema político da Indonésia, nos primeiros anos [pós-independência], era um sistema parlamentar com eleições entre vários partidos. Foi ficando claro que o Partido Comunista iria ficar em primeiro nessas eleições. Portanto, se houvesse eleições justas até 1965, havia a hipótese de que o Partido Comunista fosse o maior do país. Agora, eu não vejo nenhum tipo de coligação concreta, não vejo que tenham existido condições concretas para qualquer tipo de tomada do poder de forma forçada e ilegítima por parte desse partido. Contudo, houve certamente a hipótese que a Indonésia tivesse uma presença muito forte do Partido Comunista. É difícil especular porque a situação em 1965 já é bastante complicada. Digamos que a partir de Setembro de 1965 já não seria possível esperar um bom desfecho. Mas acredito que se tivesse sido permitido que a democracia permanecesse, sem os bombardeamentos a civis por parte da CIA em 1958, que resultaram num estado de emergência permanente entre 1958 a 1965, poderíamos imaginar muitos caminhos diferentes. Um deles poderia ter sido uma democracia multipartidária com uma forte presença na esquerda.

O problema é novamente a situação geopolítica. Na segunda metade do século XX, todas as vezes que isso [um governo marcadamente de esquerda] foi uma possibilidade, os Estados Unidos tomaram medidas cada vez mais agressivas para impedir que isso acontecesse. Os documento desclassificados indicam que o topo da hierarquia dos governos norte-americanos por vezes estavam mais preocupados com o risco de partidos socialistas chegarem ao poder democraticamente, do que com um eventual terror estalinista ou modelo norte-coreano. Nos bastidores, eles admitiam que outros povos no mundo iriam querer copiar um [governo] Allende vitorioso. As pessoas iriam querer copiar um país em que o socialismo ganha democraticamente. Então os Estados Unidos desejavam que os movimentos socialistas se radicalizassem e se tornassem mais repressivos.

É difícil especular. Podemos imaginar vários cenários diferentes, em que os Estados Unidos não tivessem intervido na Indonésia entre 1958 e 1965, se não tivesse existido esta espécie de espaço-tempo geopolítico, onde foram criadas as condições para uma hegemonia crescente dos Estados Unidos. Se tivesse sido deixado exclusivamente ao povo indonésio, penso que havia uma boa chance de que em algum momento a esquerda fosse liderar grande parte daquele país.

Uma década depois [do golpe de estado de Suharto], tivemos a invasão e início do genocidio de Timor Leste. Um acontecimento bastante conhecido em Portugal mas muito pouco falado na maioria do mundo. O genocidio foi dominado por uma forte narrativa anticomunista. Teria sido possível esta tragédia sem as purgas [campanhas anticomunistas domésticas na indonésia] de 1965? 

V.B.: Não. Os níveis chocantes e inconcebíveis de violência que o povo timorense sofreu depois de 1975 foram apenas possíveis porque Suharto era o ditador da Indonésia. Suharto é ditador da Indonésia, resultado dos massacres de 1965. Lembra-se do que eu disse antes sobre a Guerra Fria? Certas técnicas surgem num local e depois alguém as experimenta noutro. Suharto em 1975 usa o guião que funcionou em 1965 na Indonésia. Ele quer invadir Timor Leste e estabelecer hegemonia indonésia. O que é que ele diz aos Estados Unidos e à Austrália? O que é que ele diz ao mundo? Qual é a justificação usada para uma invasão assassina de um país vizinho? Que existe uma ameaça comunista em Timor. Existiam de fato alguns Timorenses que foram, de alguma forma, inspirados pelo Marxismo, como existiam na América Latina e noutros locais do mundo. Suharto usou esse guião que tinha funcionado em 1965 e sabia que iria funcionar de novo em 1975. Os Estados Unidos e a Austrália – naquilo que é frequentemente chamado de “o grande piscar de olho” [the big wink], basicamente autorizaram a invasão. Suharto foi autorizado devido a importância da Indonesia durante a Guerra Fria e porque ele usou o “anticomunismo” como justificativa.

Como disse, as pessoas em Portugal conhecem esta história mas as pessoas no mundo não. Pode ter morrido uma maior percentagem de pessoas em Timor-Leste, sob ocupação indonésia, do que de cambojanos sob Polpot no Camboja. Nos países de anglófonos, toda a gente conhece os horrores no Camboja. Muito poucas pessoas sabem que os Estados Unidos e a Austrália deixaram um dos seus principais aliados da Guerra Fria no Sudeste Asiático, invadir um país de língua portuguesa e dizimar a sua população. E não, não teria sido concebível as coisas terem acabado tão mal [em Timor] sem os acontecimentos de 1965. 

“Se quiseres olhar para a velha História da Guerra Fria, vais olhar apenas para os países mais poderosos. Mas se considerarmos que o valor de cada vida humana é igualmente importante, que eu penso ser uma posição moralmente responsável e coerente do ponto de vista intelectual, os países com maiores populações são os mais importantes.”

Ao ler o seu livro, em que se foca principalmente na Indonésia mas também no Brasil, pode ficar-se com a sensação que existiam dois patamares dentro do Método de Jacarta. Estes dois países, Brasil e Indonésia, seriam o centro do Método de Jacarta, e depois teríamos os outros países que seriam uma espécie de periferia. Considera uma avaliação justa? 

V.B.: Sim, penso que é justo. Penso que centro é um termo preciso, se entendermos dar importância ao tamanho da população de um país, como uma espécie de ferramenta analítica. Porque se quiseres olhar para a velha História da Guerra Fria, vais olhar apenas para os países mais poderosos. Mas se considerarmos que o valor de cada vida humana é igualmente importante, que eu penso ser uma posição moralmente responsável e coerente do ponto de vista intelectual, os países com maiores populações são os mais importantes.

O Brasil é relevante não só por causa do tamanho da sua população, mas porque se torna um modelo. No Chile, entre 1970 e 1973, a extrema-direita foi ganhando poder no Exército, mas não teve o controlo total das Forças Armadas. Os Estados Unidos querem derrubar o governo e o Brasil [golpe militar de 1964] é o modelo. Os militares brasileiros actuaram nos bastidores. Em Santiago, a ideia é replicar o sucesso do golpe militar brasileiro e subsequentemente implementar uma ditadura. O Brasil está presente e tem um papel importante na fundação da Operação Condor.  

O Brasil acaba por recuar neste tipo de assassinatos em massa. Acaba fazendo-o mas não na escala que se comete em países – como a Argentina, Guatemala e El Salvador – por motivos próprios de política interna. Mas [o Brasil] é essencial para criar as condições que em última instância acabam por viabilizar a Operação Condor; e é geopoliticamente crucial para a construção da hegemonia norte-americana no Hemisfério Ocidental e na Guerra Fria. Por todos estes motivos, coloco o Brasil no centro da narrativa, ao lado da Indonésia. Algum crítico pode acusar-me de passar uma grande parte do livro no Brasil porque vivi lá por muito tempo e pessoalmente considerar importante. Talvez também seja uma crítica justa. Estes são os motivos pelos quais eu coloco o Brasil no centro da narrativa, ao lado da Indonésia. 

“Há uns dias o Lula disse publicamente a mesma coisa que disse em 2003, quando George Bush tentou envolvê-lo na Guerra do Iraque. Ele disse: a minha guerra é contra a fome. E a semana passada ele disse que a Guerra dele não era com a Rússia mas sim contra a pobreza”

Pensa que existem consequências políticas nos dias de hoje para estes dois países, por terem estado no centro destas campanhas? Por exemplo, a Argentina e Chile tiveram comissões da verdade para investigar os crimes da ditadura. Acha que há uma relação entre o Brasil ter sido o modelo exportador e a situação de hoje, onde ainda há uma quase negação dos crimes da ditadura, quando comparado com outros países?

V.B.: Eu penso que há duas coisas a serem ditas em relação ao Brasil para responder a essa pergunta. A primeira, tem mais evidência e substância material, enquanto o segundo argumento é geralmente baseado em motivos culturais. 

A primeira é que o Brasil, ao contrário de países como Argentina e Chile, não enfrentou diretamente os crimes cometidos por sua ditadura. [O Governo de] Dilma Rousseff organizou a Comissão da Verdade, em 2011. Nós hoje sabemos que os militares nos bastidores mostraram desagrado com o processo. O Brasil é um país em que não existe um confronto direto com os crimes da ditadura e não são estabelecidas penas para os seus responsáveis. Quando o meu livro é publicado, o Brasil tem pela primeira vez um político de extrema direita eleito para governar o país. Alguém que disse na televisão que a ditadura militar deveria ter morto muito mais, que o Brasil precisava de matar 30 mil pessoas, incluindo inocentes, para avançar. O que eu costumo dizer, em especial no Brasil, é que comecei a trabalhar neste livro em 2017, mas quando terminei, o tema se tornou, infelizmente, muito mais relevante do que eu esperava.

Então, eu penso que em parte faz parte da resposta ao primeiro ponto. Que as duas coisas podem ser ligadas: a falta de confronto com os crimes cometidos com a ditadura e o Brasil entre 2018 e 2022 ter sido governado por um movimento violento, antidemocrático e anticomunista. 

A outra é uma explicação cultural, que eu acho que tem alguma validade também, embora seja mais difícil de provar com fatos e dados concretos. Muitas vezes diz-se que na cultura política brasileira, as coisas se resolvem mais com conversas pessoais e construindo consensos dentro das elites, do que nos países Latino Americanos de língua espanhola. A história do Brasil tem vários processos de transição: do Império para a República, da República para a Ditadura, da Ditadura para a Democracia. Todas estas transições, de certa forma, envolvem algo que se resume na expressão brasileira ‘tudo acaba em pizza’. Ou seja, no fim todos se sentam na mesma mesa. Eu penso ser uma explicação mais fraca, mais baseada em eventuais características culturais, mas que muitas vezes esta é a forma como as transições no Brasil são descritas. Eles [as elites] reúnem-se,  ninguém vai ser realmente prejudicado, e chegam a um tipo de solução colectiva. Enquanto a política latino-americana nos países de língua espanhola envolve mais resoluções de conflitos políticos de uma forma mais confrontacional. 

Destas duas explicações, eu penso que a primeira é mais bem fundamentada por uma análise material. A segunda é algo que se ouve muito por parte de historiadores e de uma forma mais caricatural. Quando analisamos a história, faz muito sentido, mas talvez seja mais um estado de espírito, ou mesmo um mito do tipo “jogo bonito”, não tenho a certeza.

Em relação a assuntos da actualidade como a Guerra entre Russia e Ucrania. Políticos muito diferentes têm sido apontados como pro-Putin, ou até mesmo fantoches de Putin. Na esquerda podemos ver isso com Lula, Mellenchon e Corbyn. A vemos a mesma acusação a políticos da extrema direita como Le Pen, Salvini e Bolsonaro.

Este tipo de ataque e descredibilização pode ser visto, em parte, como um resquício das campanhas anticomunistas da Guerra Fria, por parte dos países do Ocidente?

V.B.: Penso que existe um legado. Vamos usar o Lula como um exemplo. Penso que há um legado mas não exatamente o legado da Guerra Fria e do anticomunismo. Em parte é pela forma como são vistas tentativas de estabelecer blocos geopolíticos contra-hegemónicos. Estas tentativas foram categorizadas como difamatórias, como perigosamente subversivas no século XX. Na medida em que a política externa de Dilma e Lula envolve tentar ter boas relações com a Rússia. Eu não preciso de falar em nome do Lula mas isso não é a demonstração de qualquer tipo de apreço pelo modelo Russo. Tem que ver com a tentativa de relações amigáveis com o maior número de líderes do mundo, e construir alianças pragmáticas que facilitem o quotidiano no Sul Global. Os BRIC incluem a Rússia. A Rússia não é exatamente um país do terceiro mundo, é um ex-país do segundo mundo [bloco comunista], mas está claramente fora do grupo de países mais ricos do Norte Global. E um país como o Brasil, embora nunca o assuma, não ficaria do lado de Putin nesta guerra, e não se quer envolver nela. Por vezes, pessoas no Norte Global lêem estas posições e não entendem o que é não conseguir alimentar a população de um país e o nível de dependência de fertilizantes por parte de um único país [Russia]. Há uns dias o Lula disse publicamente a mesma coisa que disse em 2003, quando George Bush tentou envolvê-lo na Guerra do Iraque. Ele disse: a minha guerra é contra a fome. E a semana passada ele disse que a Guerra dele não era com a Rússia mas sim contra a pobreza.  

Nós, como seres humanos, talvez estejamos muito propensos a um pensamento dicotómico em geral. Esse pensamento fomenta a ideia que se não te juntares imediatamente ao lado NATO contra o inimigo, tu estás do lado do inimigo. Considero que isso era um problema do século XX e continua a sê-lo no século XXI. Que outros políticos referistes? Corbyn? Mellenchon? Salvini?

Sim, mas também há outros exemplos no Norte Global. Por exemplo, a ideia de interferência Russa na eleição norte-americana de 2016. Sentes que estes tipo de reação, quase que um estereótipo, contem resquícios do anticomunismo da Guerra Fria?

V.B.: A política norte-americana e a questão da Rússia é muito perversa porque hoje em dia a política é movida pela polarização negativa, ao nível discursivo. Se a maioria dos Democrata tomarem uma uma posição, os Republicanos vão tomar a posição oposta. Podem ser vistos muitos republicanos que aparentam ser pró-Rússia, pelo menos comparativamente e a nível discursivo. Eu acho que a melhor explicação para isso é os Republicanos quererem ser o oposto dos liberais norte-americanos, cuja mensagem é muito vocal e pró-Zelensky, logo eles apresentam-se como pró Rússia.

Eu penso que qualquer análise histórica séria coloca a [responsabilidadade da] eleição de Donald Trump principalmente no povo norte-americano. Mas os Liberais norte-americanos estavam à procura de uma explicação para pessoas como eu, para as pessoas do meu círculos e para os media tradicionais. Trump ser eleito foi um grande choque para nós, uma espécie de golpe psicológico. Eu penso que houve uma tentativa de culpabilizar um outro. Enquanto os Republicam viam os Democratas a culpar a Rússia, decidiram tomar a posição oposta, e dizer que a Rússia era aceitável.

A política [externa] norte-americana é muito pouco saudável ao nível discursivo. Na minha opinião, porque ela afeta muito pouco as condições materiais da população. A população norte-americana é muito pouco afetada por uma guerra como a da Ucrânia. Óbvio que muito menos que a população ucraniana, mas também menos que a população europeia. Voltando à questão inicial, infelizmente o Norte Global tem uma tendência de criar uma narrativa política de “ou estás connosco ou estás contra nós”. Esta postura foi destrutiva para com o Movimento dos países Não Alinhados do século XX e tem criado bastantes dificuldades para países como o Brasil, e outros do terceiro mundo, a navegar no século XXI. Considero que é uma forma insuficiente para entender a política mundial. 

Voltando ao Sul Global, mais especificamente a América do Sul no Século XXI. Hugo Chavez, depois de eleito, promoveu uma politica de colocar militares de topo na reserva e promover milicias populares. Em 2011, Evo Morales expulsou a DEA [Drug Enforcement Agency, Agência norte-americana de combate ao narcotráfico] do território boliviano. O Ecuador, por exemplo, retirou bases militares norte-americanas do seu territorio. 

Vê estas acções, dos governos mais radicais da “Maré Rosa”, como uma aprendizagem das práticas descritas do seu livro?

V.B.: Bem, eu penso que não se pode explicar as acções de Hugo Chavez depois de 2003, por exemplo, sem pensar nos receios que ele tinha depois da tentativa de golpe que sofreu em 2002. Basta uma breve análise da história da América Latina para se entender que, se alguém for derrubado num golpe, é muito possível que essa pessoa e todos os seus aliados sejam torturados até a morte.

Muitas das ações tomadas pelos governos da Venezuela nas décadas seguintes pareceram incompreensíveis para os norte-americanos. Acho que é porque eles não entendem que existe um medo real, que vem do trauma histórico de ver movimentos de esquerda a serem literalmente aniquilados ao longo do século XX. Não é irracional ter receio de um golpe militar. Claramente foi tentado de novo em 2019, Marco Rubio estava claramente pressionando para que isso acontecesse. Nos últimos anos, a Venezuela tem passado por um período de grande sofrimento, e eu penso que as ações do governo da Venezuela são vistas como incompreensíveis para os norte-americanos. Na minha opinião, isso mostra que num ambiente criado por 100 anos de intervenções violentas, não há um caminho claro que possa ser seguido. Recordo-me de alguém perguntar a Dilma, quando ela foi retirada da presidência, se ela devia ter seguido os passos de Chávez; e ela disse algo como “Não. Ele apostou nos militares. Eu não queria fazer isso, mas aquilo em que eu apostei também não funcionou.” Portanto, não sei qual é a resposta certa numa real possibilidade de reação violenta a qualquer movimento de esquerda na América Latina. No entanto, penso que é impossível entender as ações particulares dos países da “Maré Rosa” – sejam eles do tipo rosa claro [mais moderados, como Brasil] ou escuros, mais radicais – sem perceber que os seus receios são fundamentados pela realidade histórica. 

É possível conceber um golpe militar de direita sem o apoio dos Estados Unidos? Sim, e provavelmente cada vez mais, já que os Estados Unidos continuam a ser de longe o estado mais poderoso do mundo, mas menos poderoso do que costumava ser em termos relativos.

No livro “Como as Democracias Morrem” os autores alegam que os golpes militares estão em certa medida “fora de moda” e a subversão gradual dos processos democráticos é a ferramenta usada por autocratas democraticamente eleitos. Na sua opinião, as últimas décadas na America Latina, em especial a última, confirma que este tipo de pensamento de aplica para interferência externas? Passamos dos golpes militares descritos no seu livro para novas técnicas como o Lawfare 

V.B.: Portanto, lembre-se, se voltarmos a uma das suas primeiras perguntas, eu referi que existe uma escalada de táticas utilizadas pelo establishment da política externa dos Estados Unidos e dos seus aliados no Sudeste Asiático. Eles não querem matar pessoas. A sua primeira reacção não foi executar entre 500 mil a 1 milhão de pessoas [na Indonésia]. A reacção inicial foi tentar algo mais subtil nos bastidores. Isto era o que eles [CIA] preferiam. Regra geral, uma potência hegemónica inteligente preferirá técnicas subtis e quase invisíveis, em vez de técnicas muito óbvias em que a sua autoria possa ser identificada facilmente. A não ser que esteja a tentar passar uma mensagem, ou algo do género. Mas em princípio essa é a regra. 

O que eu costumo dizer é que nesta Era, criada após o rápido colapso da União Soviética, um período de hegemonia norte-americana sem precedentes, essas técnicas não desapareceram. Elas continuam a ser parte do conjunto de ferramentas dos Estado Unidos. Elas estão disponíveis caso sejam necessárias e nunca devemos pensar que estas técnicas desapareceram para sempre. Contudo uma hegemonia mais completa cria um espectro mais amplo de ferramentas que podem ser usadas para moldar os resultados no Sul Global. Podemos ver isso quando a potência hegemónica do século XXI, os Estados Unidos, tenta influenciar os resultados de governos que são considerados inimigos, ou que se encontram em partes do mundo que são identificadas como ameaças. [Hoje] isso pode ser feito com mais ferramentas como sanções financeiras, ou o uso de mecanismos legais para cumprir certos objetivos. Também pode ser visto em ferramentas como o financiamentos a certos tipos de organizações da sociedade civil, que detenham determinados objetivos, na esperança de que estas sejam um caminho mais eficaz do que a opção de último recurso de qualquer movimento político da história, que é a violência.

Eu concordo com a ideia que existe um mais amplo leque de táticas no século XXI, do que existiam no século XX. Mas ainda assim ainda existe a tentativa de um golpe militar. A Bolívia sofreu uma tentativa de golpe [apoiada pelos Estados Unidos] falhada em 2019; a Venezuela em 2002 e 2019. Mas, é muito interessante ver que o Papa Francisco fez um discurso no qual afirma que o lawfare é frequentemente empregado para alcançar os mesmos fins que o golpe militar foi usado para alcançar no século XX. Ele é alguém que viu de perto as consequências do governo militar da Argentina. Então, sim, acho que é uma forte possibilidade.

O Brasil tem vivido um período de instabilidade política desde que Lula foi eleito, com ataques e bloqueios, que sabemos que são promovidos e financiados por empresários Bolsonaristas. Dito isto, no dia 8 de Janeiro [dia dos ataques ao Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e ao Palácio do Planalto] Joe Biden rapidamente tweetou uma mensagem a condenar os ataques. Existe alguma hipótese de um golpe de estado na America do Sul sem o apoio dos Estados Unidos?

V.B.: Sim, penso que é possível. Qualquer grupo reacionário insurgente no Sul Global, se for inteligente, vai ter em conta se é possível ter o apoio dos Estados Unidos, se quiserem ser eficazes. Os Estados Unidos, mesmo no pico da sua hegemonia, nunca foram capaz de gerar os resultados desejados do nada. Eles eram capazes de influenciar e tornar certos resultados mais prováveis. Ao mesmo tempo, foi muito importante que o governo dos Estados Unidos, nos bastidores, tenha sido muito claro para o governo, sociedade civil e média do Brasil que não iria apoiar um golpe militar de Bolsonaro em 2022. Isso, de facto teve bastante importância. É possível conceber um golpe militar de direita sem o apoio dos Estados Unidos? Sim, e provavelmente cada vez mais, já que os Estados Unidos continuam a ser de longe o estado mais poderoso do mundo, mas menos poderoso do que costumava ser em termos relativos.

No final de seu livro, menciona um período inicial de esperança que rapidamente se torna uma deceção para grupos de direitos humanos e outras organizações, com a atual Presidente da Indonésia, Joko Widodo.

Há algumas semanas, ele condenou abertamente a opressão do regime de Suharto. O que é que isso realmente significa para a Indonésia?

V.B.: Para escrever este livro, o Método de Jacarta, passei vários anos a conhecer as vítimas repressão anticomunista apoiada pelos Estados Unidos, em 1965 e 1966. Para entender o que isso significava, eu simplesmente perguntei o que essas pessoas achavam. E elas consideraram um pequeno passo em frente, mas muito insuficiente. Como mencionado no caso Brasileiro, na Indonésia também nunca houve nada como uma Comissão da Verdade. Ele [Joko Widodo] lamentou que crimes tivessem sido cometidos, mas não condenou os perpetradores. Ele não iniciou qualquer tipo de investigação sobre quem cometeu esses crimes, ou sobre o que realmente aconteceu e quem deve ser julgado por isso. Também não disse a quem sofreu que não mereciam isso e que não são culpados. De qualquer forma, foi um dia importante para a comunidade de pessoas que eu conheço, um passo em frente, considerando o quão pouco tinha sido feito até então, mas insuficiente. Tragicamente eu acho que a maior parte desta comunidade morrerá antes de ouvir a mensagem que lhes é devida desde 1966, que foram cometidos crimes contra eles, e que estas pessoas são totalmente inocentes e outras pessoas são culpadas.


Vincent Bevins estará em Portugal a para duas apresentações sobre o seu livro, dia 22 de Fevereiro, às 18 horas, na UNICEPE, Porto e dia 23 de fevereiro, às 18h30, na Livraria da Travessa, em Lisboa.

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