A Inteligência Artificial está um pouco por todo o lado. Desde as soluções complexas para tomada de decisão com uma eficiência nunca antes vista, ao serviço dos mercados financeiros ou das grandes potências militares, os feeds das redes sociais que ordenam aquilo que vemos diariamente, até aspiradores que maximizam a limpeza graças às suas artificiais capacidades cognitivas. Por extenso ou em formato abreviado, a I.A (ou A.I.) tornou-se numa espécie de símbolo universal de inovação terminal, e praticamente num sinónimo de criações fora do alcance humano. E se a verdade é que Inteligência Artificial tem realmente capacidades muito para além das nossas, não é menos verdade que ainda tem muito para aprender connosco. Quem a vai educar é a grande questão.
Apesar de enquanto tecnologia e área de estudos a Inteligência Artificial existir desde, pelo menos, meados dos anos 1950, foi a digitalização das sociedades que criou o terreno para que socialmente este conceito proliferasse. Num momento do mundo em que nas sociedades mais desenvolvidas nos habituámos a complementar as nossas capacidades com pequenos engenhos tecnológicos – dos smartphones aos GPS –, sobre os quais pouco percebemos de facto, a Inteligência Artificial surge apenas como mais um capítulo dessa fascinante evolução. Pensar criticamente sobre esse capítulo pode parecer uma perda de tempo ou o capricho de ludita.
“Se é feito pelas máquinas deve ser bem feito” é um pensamento mais do que recorrente e a expressão do viés da automação. O fenómeno, estudado pela psicologia social, que faz com que o Humano tenda a confiar demasiado nas decisões tomadas por sistemas automatizados – mesmo perante informações a contradizem – exprime-se não só nos casos anedóticos em que o GPS nos faz andar às voltas, mas numa falta de interesse que se agudiza ao ponto de já nem querermos saber como são e como funcionam esses sistemas. Mas desengane-se quem acha que a sua origem é natural.
Imersos num universo de dados, onde a informação de qualidade é difícil de distinguir das mensagens comerciais, a perda de sentido crítico sobre as criações tecnológicas de que vamos vendo apenas uma miragem não resulta de uma falta de curiosidade que tenha chegado para assombrar a Humanidade, mas antes da conjugação complexa de estruturas e processos que fazem hoje em dia a informação circular e que determinam até a forma como nos sentimos em relação ao saber. Desde os estudos que mostram como o Facebook é capaz de influenciar o humor de milhões de pessoas em simultâneo, até ao recente caso da investigadora afastada da Google por autorar um paper sobre as dimensões críticas da I.A., exemplos não faltam para de forma mais ou menos directa percebermos a perversidade das relações subjacentes a este debate.
Perante a necessidade de recursos para investigar sobre esta tecnologia fundamental, cujo potencial transformador que não deixa espaço para qualquer dúvida, e perante a dependência de privados para este financiamento, as dinâmicas do mercado fundem-se ou confundem-se com as demais. Como resultado, temos tido desenvolvimentos verdadeiramente fascinantes, outros nem tanto, e muito pouca gente capaz de os distinguir ou de participar no debate sobre alternativas. Com a promoção exacerbada da Inteligência Artificial, a expressão perdeu o seu sentido concreto à medida que se afastava a possibilidade de entendimento e, com isso, enfraqueceu-se uma discussão extremamente necessária, desde logo sobre o que significa ser inteligente neste contexto – e o que significa ser artificial. E sobre quais as consequências de confiar em algo que não conseguimos inteligir.
Kate Crawford, uma das investigadoras mais conceituadas no que toca a crítica de I.A, diz numa das suas afirmações mais provocadoras que esta não é inteligente nem artificial. E se a intenção não é menosprezar a capacidade da tecnologia, a provocação ilumina por um lado o critério subjetivo daquilo a que chamamos inteligência e, por outro, a ausência de uma perspectiva material no termo artificial – as duas dimensões fundamentais em que a influência humana pode ser vista como verdadeiro ensinamento para a máquina.
Se hoje em dia os principais desenvolvimentos de I.A. acontecem longe do feed do utilizador comum, onde chegam as aplicações especialmente vistosas, como a recriação inteiramente automatizada de imagens com alguma verosimilhança ou de excertos de textos a imitar determinado escritor ou género, também a dimensão crítica do debate está longe do acesso do cidadão comum. Pese embora o esforço de universidades, investigadores, organizações ativistas, jornalistas e curiosos, a falta de literacia sobre as reais aplicações, capacidades e os recursos necessários para produzir a tal Inteligência Artificial dificultam a democratização do desenvolvimento desta tecnologia, com todas as consequências que daí podem advir – e já advém.
Algoritmos com viés racista, perigosas promessas de compreensão total das emoções do humano através da sua expressão, proliferação de notícias falsas ou teorias da conspiração, veiculadas pelos algoritmos que sabem o que as pessoas querem ler, são conhecidas falências dos grandes empreendimentos actuais. E revelam apenas a face mais visível do problema. A precariedade das plataformas de etiquetamento de dados ou até mesmo na fonte das matérias primas, o uso sem consentimento expresso de informações pessoais para treino de sistemas, a concentração das principais decisões na mão de um número muito restrito de pessoas, ou os custos energéticos associados, sugerem que o modelo de desenvolvimento da tecnologia também carece de reflexão – e regulação.
Seja qual for o caminho, é certo que o futuro da Humanidade passará cada vez mais pelo convívio com a Inteligência Artificial. E que a capacidade de processamento de informação, reconhecimento e recriação de padrões, a sistematização de processos e tantas outras funções que surgem habitualmente mascaradas pelo termo Inteligência Artificial têm com certeza o poder para fazer do mundo um lugar melhor – transformando a eficiência em redistribuição e sustentabilidade, e a capacidade de previsão estatística numa forma de antecipar crises, por exemplo. Contudo, se é ou não esse o seu caminho não depende de si mas de tudo o que a envolve, de todos os que a rodeiam. Para educar uma Inteligência Artificial comecemos por despertar a nossa inteligência colectiva. A participação no debate, o desenvolvimento da consciência crítica e o cruzamento de perspetivas são o primeiro passo da democratização do desenvolvimento. Um processo que terá que passar pela regulação de desenvolvimento e utilização, uma maior abertura nos processos de decisão, e menos a ilusão de que podemos parar de pensar agora que existe uma Inteligência Artificial.
Na quarta-feira, 22 de Junho, ao final do dia, vamos debater sobre Inteligência Artificial no segundo evento do nosso ciclo Encontros Com Impacto. Com a presença de Inês Cisneiros, advogada com pesquisa na área da regulação da I.A.; Joana Sá, professora no Instituto Superior Técnico e investigadora principal do Grupo de Física Social e Complexidade (SPAC) no LIP, e Miguel Freire, co-fundador da startup NeuralShift.
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