Os portugueses foram chamados às urnas três vezes num período ligeiramente superior a um ano. Foram contados quase 15 milhões de votos, com direito a uma repetição do voto no círculo da Europa. Devido à natureza dos actos eleitorais, as campanhas e temas abordados foram distintos. Este ciclo eleitoral começou com um clima de coroação do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com dezenas de debates focados na gestão da pandemia. Por fim, as eleições legislativas centraram-se simultaneamente em hipotéticos acordos pós-eleitorais (sem um real debate programático) e em medidas que dificilmente seriam aprovadas durante a legislatura – seja o Rendimento Básico Incondicional defendido pelo Livre ou propostas retrógradas como a prisão perpétua, apresentadas pelo Chega.
No meio de um relativo vazio programático foram-nos apresentados, por partidos de diversos quadrantes ideológicos, os habituais diagnósticos estruturais da nação: o crescimento do litoral em detrimento do interior, a estagnação da economia portuguesa, e o crónico défice de qualificações do país. No entanto, estes chavões tendem a ser uma constante repetição dos desafios históricos da sociedade portuguesa, que acabam por dificultar o nosso entendimento das mudanças a acontecer debaixo dos nossos pés, em especial desde da intervenção da troika.
A desertificação é um fenómeno nacional
Na maioria das vezes, as assimetrias territoriais são implicitamente apresentadas como um triunfo de um litoral dinâmico e próspero que causa a desertificação do interior. Contudo, a realidade da última década não é tão cor de rosa, mostrando o país num processo geral de desertificação.
A população portuguesa atingiu o seu máximo histórico em 2010, e perdeu 274 mil residentes na década seguinte. Porém, existem problemas estruturais camuflados nos números agregados. Por um lado, o declínio demográfico tem sido, em parte, anulado por um aumento significativo da população estrangeira, parcialmente explicada por fatores alheios a Portugal como crises económicas nos países de origem. Por outro lado, o declínio demográfico deu-se essencialmente em populações em idade de trabalho relativamente jovens: Portugal perdeu mais de meio milhão de residentes com idades compreendidas entre os 25 e 39 anos.
Os fluxos migratórios são altamente sensível aos ciclos económicos em países terceiros
O inverno demográfico está longe de ser um sintoma exclusivo do interior de Portugal. Os mais recentes censos mostram que o declínio populacional deu-se em quase todas as regiões do país e que as grandes assimetrias no território são entre zonas urbanas e não urbanas, uma tendência global. Os municípios capazes de estabilizar minimamente a sua população são maioritariamente urbanos, sejam estes no litoral (Leiria) ou interior (Viseu). Enquanto isso, os municípios ao seu redor sofrem acelerados processos de desertificação.
Principais centros urbanos na Região de Leiria (Municípios de Leiria e Marinha Grande) e em Viseu Dão Lafões (Município de Viseu) conseguiram estabilizar a população na última década (2011-2021), ao contrário dos restantes municípios
Uma política territorial maioritariamente focada no interior, que ignore os principais problemas das cidades portuguesas, como a escassez de habitação acessível, não irá promover a repovoação do interior rural. Apenas gerará uma nova vaga de emigração para outros centros urbanos, como temos assistido na última década.
A linha ténue entre estagnação e o empobrecimento escondido
O fraco crescimento económico das últimas duas décadas, período que coincide com a entrada de Portugal no Euro, tem-se tornando (de forma gradual) um consenso na sociedade portuguesa. Todavia, um longo período de relativa estagnação (com altos e baixos) não se traduziu numa organização económica estática.
A longa recessão durante a intervenção da Troika e a posterior retoma marcam uma profunda alteração da base da economia portuguesa, em especial nos seus dois principais centros urbanos. Uma combinação de decisões políticas que nunca foram totalmente revertidas (legislação laboral, vistos gold e o regime fiscal do alojamento local) e tendências globais (um boom do turismo no mundo e a expansão das companhias aéreas de baixo custo) tornaram a economia nacional menos complexa, dependente de actividades de baixo valor acrescentado associadas ao turismo, em que os trabalhadores detêm menos daquilo que é produzido.
É impossível ignorar o recente crescimento da pegada do turismo na economia portuguesa. Antes da pandemia, Lisboa tinha-se tornado a cidade europeia com mais Airbnbs por habitante e nos dois anos de pandemia, o aeroporto Humberto Delgado teve um volume de tráfego aéreo comparável ao início do milénio. Não coincidentemente, a revista Foreign Policy escolheu o termo “Capitalismo da Sardinha” para descrever a retoma portuguesa de forma elogiosa. O artigo não se focava, contudo, no sector das pescas e indústria conserveira, que representa menos de 1% da economia portuguesa, ou no sistema de quotas de pesca. A sardinha como símbolo turístico tornou-se muito maior que o seu sector originário.
O atual modelo de crescimento económico depende da constante expansão de atividades turísticas de baixo valor acrescentado, que pode ser resumido no famoso “Não sei o que é ter turistas a mais” do anterior presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina. Este sistema deteriora a capacidade produtiva das principais áreas metropolitanas do país, ao retirar espaço à habitação e aos sectores mais inovadores. Consequentemente, gera um novo equilíbrio que combina estagnação da produtividade com uma forte inflação imobiliária, o que torna os custos de arrendamento da capital portuguesa comparáveis a Viena, cidade com salários substancialmente superiores aos salários lisboetas.
O aumento exponencial do turismo criou um ciclo vicioso que cria milhares empregos nas duas maiores cidades do país, enquanto empobrece parte da classe trabalhadora através da inflação imobiliária e expulsa essa mesma população para zonas cada vez mais periféricas. Portugal passou da república dos pijamas dos anos 60/70 para uma autêntica república dos Airbnbs.
O processo de simplificação económica nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto alia inflação imobiliária com um fraco crescimento da produtividade, abaixo de noutras áreas urbanas.
Este fenómeno está longe de ser uma especificidade portuguesa e devem ser tomadas as devidas lições de experiências semelhantes noutras partes do mundo. No sul da Europa, Veneza é um exemplo emblemático das consequências da monocultura do turismo. Hoje em dia, a cidade tem uma população 70 por cento inferior ao que tinha na década 50 e tenta reverter décadas de turistificação, com programas para atrair jovens profissionais do resto do mundo.
Os riscos da ultra especialização em poucas atividades de baixo valor como turismo não é uma mera questão simbólica ou de prestígio. A simplificação da economia das áreas metropolitanas portuguesas deve ser vista como uma fragilidade estrutural da capacidade produtiva do país, algo que é facilmente identificado na cidade de Macau. A antiga colónia portuguesa desindustrializou-se rapidamente para se tornar uma economia totalmente dominada por casinos (70-80% do PIB), ficando altamente vulnerável a choques externos, como a pandemia veio provar. Em 2020, com a falta de apostadores, a economia macaense entrou em colapso, apresentando a maior recessão registada no mundo (PIB contraiu 54%). Uma pandemia pode parecer um cenário improvável nos próximos anos mas este tipo de actividades económicas são altamente vulneráveis a outros factores como instabilidade política e facilmente substituíveis por concorrentes mais baratos, o que cria uma repressão salarial crônica.
Ir para além do défice de qualificações
Em 2017, António Costa afirmava que o nível de qualificações é “o maior défice estrutural que o País tem e que se acumulou durante séculos, que se acumulou durante as décadas do século XX”. O diagnóstico do Primeiro Ministro está mais que correto. A inquisição durou quase três séculos em Portugal; mais de metade da população portuguesa era analfabeta há 100 anos; e o país viveu o flagelo do trabalho infantil até muito recentemente.
Para contrariar este atraso histórico, sucessivos governos apostaram nas qualificações dos mais jovens como política de desenvolvimento social e económico. No plano estritamente educacional, a estratégia tem tido sucesso. Portugal convergiu com os países desenvolvidos nos rankings internacionais e atualmente tem um maior percentual de jovens com ensino superior que a Alemanha e Áustria, algo que o Primeiro Ministro classificou como um dos principais sucessos dos seus governos. Infelizmente, o ciclo virtuoso do investimento educacional tarda a aparecer. As gerações com mais qualificações do país são confrontadas com maior desemprego e salários mais baixos que algumas das gerações anteriores.
Mesmo reconhecendo os progressos educacionais como vitórias civilizacionais, figuras ligadas ao sector da educação superior, de quadrantes políticos distintos, têm alertado para os riscos de um modelo de desenvolvimento excessivamente focado na promoção educação superior das gerações mais jovens. Helena Lopes indica que Portugal é um dos países com os maiores níveis de sobre-educação entre os jovens da OCDE e que o atual modelo – que é resultado do processo de Bolonha – inverte a lógica do elevador social ao “[admitir] nos mestrados das universidades públicas [alunos que] não tiveram nota para entrar nessas instituições aquando da inscrição em licenciatura”. Além disso, Ricardo Paes Mamede destaca os preços elevados de muitos mestrados. Em termos práticos, esta dinâmica causa uma redução camuflada dos rendimentos reais dos novos mestres, ao aumentar as despesas (ou mesmo divida) com formação superior. Já Daniel Traça, diretor da Nova School of Business and Economics, classifica de “um mito do princípio deste século” a ideia que a educação por si só iria desenvolver o país.
Uma política de sobrequalificação das gerações mais jovens não irá colmatar o défice de qualificações dos trabalhadores e empresários das gerações anteriores, nem reverter o atraso histórico de uma nação. Num contexto de integração europeia, tal estratégia arrisca-se a ser uma mera fuga de cérebros patrocinada pelo Estado, acelerando o inverno demográfico português. Resolver os problemas estruturais do país exige a definição de uma missão colectiva clara para a sociedade: reverter políticas que tornam Portugal um local atrativo para o lazer e rentismo (fazer turismo, passar a reforma, gerir Airbnbs e crypto especulação) e criar um ambiente que consiga reter e atrair setores produtivos e inovadores. No quadro atual, resolver a crise habitacional é uma condição necessária para superar os restantes desafios nacionais.
Na conferência do Partido Trabalhista Britânico de 1996, em Blackpool, o então líder da oposição Tony Blair afirmou que as suas três prioridades num futuro governo seriam “Educação, educação e educação“. O discurso de Blair capturava um dos principais consensos do neoliberalismo, também presente em Portugal, que a educação é uma das poucas áreas onde o estado deve intervir activamente. Vinte e cinco anos e duas crises mundiais depois, este sistema político-ideológico tem se mostrado incapaz de solucionar os principais desafios do mundo desenvolvido e de Portugal em particular. Para inverter o declínio demográfico vivido em todo o país, superar a armadilha de Airbnbzação da economia, e garantir que a inflação imobiliária não se apropria dos ganhos colectivos de toda a sociedade, as três prioridades da sociedade portuguesa nas próximas décadas terão de ser habitação, habitação e habitação.
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