Em 1857, o anarquista francês Joseph Déjacque acusava Pierre Joseph-Proudhon de ser um “anarquista moderado, liberal”, e não um “libertário”, por aceitar a discriminação das mulheres e defender o mercado livre em alguns sectores da indústria. Neste que foi o primeiro uso político conhecido da palavra, “libertário” surgia como clarificação de uma doutrina política então emergente, o anarquismo, e sublinhava a proposição radical, que lhe conferiria distinção, de que a liberdade individual e a igualdade social eram mutuamente dependentes. Para Joseph Déjacque, libertário era aquele que defendia o fim de toda autoridade – fosse ela política ou económica – e, como tal, pretendia a abolição do Estado e do capitalismo. E foi assim que a palavra foi exclusivamente usada durante quase um século: como um termo amplo, e não doutrinário, referente a todos aqueles que, dentro da tradição socialista, se opunham a formas de organização hierárquicas, coercivas e centralizadas.
Os revolucionários libertários de barbas longas e indumentária operária, com os seus fatos coçados e gastos, parecem ter dado subitamente lugar a libertários munidos de fatos lustrosos de executivo e diplomas académicos nas melhores faculdades de economia. E os princípios da ajuda mútua deram lugar à sobrevivência do mais apto.
Nas últimas décadas, passados mais de 150 anos deste episódio fundador, tem-se vindo a banalizar o uso da palavra libertário para caracterizar um conjunto de ideias antagónicas àquelas a que nasceu associada como categoria política. Nos principais meios de comunicação social, e em alguns departamentos universitários de ciência política e economia, o adjectivo libertário deixou de se referir a um universo ecléctico de ideias, cuja comunhão se dava pelo anti-capitalismo e pelo anti-estatismo, e passou a identificar um programa ideológico proponente de uma versão radical de laissez-faire económico, com a iniciativa e a propriedade privadas no centro, e da limitação profunda ou abolição da intervenção do Estado. Os revolucionários libertários de barbas longas e indumentária operária, com os seus fatos coçados e gastos, parecem ter dado subitamente lugar a libertários munidos de fatos lustrosos de executivo e diplomas académicos nas melhores faculdades de economia. E os princípios da ajuda mútua deram lugar à sobrevivência do mais apto.
É a reconceptualização e a mutação ideológica que estão por trás desta transformação, relativamente recente, que pretendemos explorar sinteticamente neste ensaio. Com isso, não procuramos qualquer definição purista do que é ou foi o anarquismo e o campo libertário. Todas as ideias e conceitos estão em mutação constante, são atravessadas por idiossincrasias individuais, desdobram-se em formas híbridas ou encenam rupturas com a tradição em que se inserem.
Os socialismos libertários e a interdependência da igualdade social e da liberdade individual
As culturas políticas libertárias, de resto, assim como o próprio anarquismo, sempre foram pouco atreitas a definições conceptuais e programáticas rígidas. Mas, como campo político, são inseparáveis de um movimento, que eclodiu no século XIX, num contexto marcado pela institucionalização dos Estados modernos e pela liberalização acelerada da economia. Nesse processo, e com as profundas transformações sociais que impulsionaram, as condições de vida das classes populares foram particularmente afectadas, em especial pelas transformações no mundo laboral que forçavam a sua proletarização e as empurravam para urbes sobrelotadas e insalubres. É nesse mundo em ebulição que se desenvolve uma corrente política e filosófica, genericamente designada como anarquismo ou socialismo libertário, inspirada pelas múltiplas experiências anti-autoritárias que aconteciam um pouco por todo o lado pela mão das classes populares.
Por libertária, aliás, importa sublinhar, não se designava nenhuma doutrina política específica, mas antes, precisamente, uma miríade de experiências e ideias socialistas, unidas pela particularidade de conjugarem uma postura anti-capitalista com um forte anti-autoritarismo e anti-estatismo. Os anarquismos foram, porventura, as ideias libertárias que se afirmaram historicamente com maior estrondo, mas, na constelação libertária, coexistiram, igualmente, ideias afiliadas ao campo marxista, entre elas o conselhismo e o autonomismo. Parafraseando David Graeber, o socialismo libertário, mais do que um programa ou uma teoria, foi, e é, um “discurso ético sobre a prática revolucionária” que, através de múltiplas propostas, visou o desmantelamento de todas as formas de autoridade, opressão, violência e desigualdade estruturais. Foi essa dimensão não-programática que conferiu a elasticidade e o eclectismo que caracterizou o universo de ideias e práticas do campo libertário, mas foi também esse conjunto de fundamentos básicos que lhe deu uma continuidade e permitiu que constituísse sempre um campo delimitado e singular. É, por isso, a partir deste lastro histórico que devemos identificar o que há em comum entre aqueles que se apresentaram como libertários ao longo da história.
Tal como a maioria das correntes socialistas, os socialistas libertários defendiam que a emancipação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores, mas levavam-na até ao limite da sua consequência lógica e recusavam recorrer ao que consideravam ser os instrumentos da burguesia, negando quer a colaboração de classes, quer a actividade partidária e parlamentar. Para os libertários, os fins não justificavam os meios e um mundo livre e igual não podia ser alcançado por métodos autoritários. A sua acção devia pautar-se por um modelo prefigurativo que criasse “o mundo novo no seio do velho”, desenvolvendo, para esse efeito, no imediato, novas formas de relacionamento e sociabilidade igualitárias, capazes de potenciar a criatividade e o desenvolvimento do indivíduo e garantir a sua autonomia, bem como extinguir os aparatos coercivos de governação e eliminar as desigualdades sociais.
O termo libertário (libertarian) foi então adoptado para formular uma doutrina política específica, o libertarianismo ou libertarismo (consoante as traduções), divorciada dos seus usos históricos (inclusivamente nos Estados Unidos), e assente numa versão radicalizada da livre iniciativa individual, na propriedade privada e no mercado livre, baseadas nas teses de algumas figuras do liberalismo económico clássico.
Em ruptura com as premissas que guiavam a maioria das doutrinas políticas modernas, privilegiando, nuns casos, mais igualdade ou ordem social e, noutros casos, mais liberdade individual, os libertários defendiam que um máximo de igualdade social e um máximo de liberdade individual não só não eram incompatíveis, como eram interdependentes. O famoso aforismo de Mikhail Bakunin (1814-1876) – que afirmava que “a liberdade sem socialismo é privilégio e injustiça e socialismo sem liberdade é escravatura e brutalidade” – sintetizava a posição distintiva em que os socialistas libertários se colocavam e que tanto hostilizava as formas autoritárias estatocêntricas presentes no campo socialista, como repudiava a ideia de liberdade individual emanada do liberalismo económico e, mais concretamente, do capitalismo. Por outras palavras, sem igualdade social e económica a liberdade não era possível e sem liberdade a igualdade era uma quimera. A postura contida na asserção de Bakunin foi transversal a todas correntes presentes no campo libertário e nela se reviam tanto os anarquismos mais individualistas, como os anarquismos sociais (colectivistas, comunistas ou sindicalistas). E foi justamente por ambicionarem a igualdade social e a liberdade individual que os socialistas libertários afirmaram, desde a sua origem, uma disposição simultaneamente igualitária e anti-autoritária, hostil a todas as formas de dominação, fossem elas de natureza cultural, social, política ou económica. No seu entendimento, o Estado e o capitalismo eram duas faces da mesma moeda de privilégio, tirania e opressão que regia o mundo, com o sacrifício de muitos para o benefício de poucos.
Estas idiossincrasias dos libertários tornaram-nos difíceis de situar numa modernidade em que as correntes políticas se distinguiam pela inclinação que revelavam para um desses dois lados da equação. Uma boa parte das correntes socialistas, perseguindo a igualdade económica, tomaram como desígnio a tomada do poder de Estado – e com a revolução soviética essa tendência tornou-se hegemónica na maior parte do mundo –, enquanto os liberais privilegiaram a liberdade individual estabelecendo como seus pilares a iniciativa privada económica e o mercado auto-regulado. Existindo na confluência desses dois pólos, os libertários foram remetidos, por muitos socialistas, para a esfera burguesa, enquanto que, aos olhos dos liberais, a oposição radical à propriedade privada e ao capitalismo tornava-os uma força socialista e revolucionária irrecuperável.
O anarco-capitalismo e a liberdade sem igualdade
Até que, nos anos 50, um grupo de economistas, próximos da chamada “escola austríaca” encontraram, na defesa da liberdade individual, e na ideia de “soberania do indivíduo”, tal como formulada por alguns anarquistas individualistas norte-americanos, um terreno fértil para sustentar as suas teses. O termo libertário (libertarian) foi então adoptado para formular uma doutrina política específica, o libertarianismo ou libertarismo (consoante as traduções), divorciada dos seus usos históricos (inclusivamente nos Estados Unidos), e assente numa versão radicalizada da livre iniciativa individual, na propriedade privada e no mercado livre, baseadas nas teses de algumas figuras do liberalismo económico clássico.
Murray Rothbard (1926-1995), economista e ex-aluno de Ludwig Von Mises, foi o principal proponente do “elo” anarquista e quem mais sistematicamente desenvolveu a conexão entre o capitalismo da escola austríaca e o anarquismo individualista de figuras como Josiah Warren (1798-1874), Lysander Spooner (1808-1887) ou Benjamin Tucker (1854-1939). Foi, também, aquele que adoptou com menos hesitação os termos “libertário” e “anarquista” para caracterizar as suas ideias (terá sido inclusivamente um dos primeiros, senão o primeiro, a auto-classificar-se como anarco-capitalista), defendendo que “o anarquismo é a mais completa expressão do capitalismo” e que “o capitalismo é a mais completa expressão do anarquismo”.
Na luta intransigente contra o Estado, e na importância central concedida à liberdade individual, desenhou-se uma aparente convergência entre estes libertários (doravante libertaristas) e seus antecessores. Os libertaristas, contudo, operavam uma ressignificação antropológica profunda, propondo uma leitura da natureza humana mais rígida e divergente da dos socialistas libertários: segundo o seu entendimento, o indivíduo era auto-suficiente, racional e auto-centrado, e era no mercado livre e auto-regulado que encontrava o sistema mais adequado à sua natureza. No fundo, por outras palavras, o mercado derivava da própria natureza humana e a liberdade de quaisquer restrições coercivas externas sobre a acção individual era um direito intrínseco ao indivíduo. Esta visão negativa da liberdade contrastava com a perspectiva integral, presente nos socialismos libertários, que a concebia sempre em inter-relação com a liberdade positiva. Consequentemente, o desígnio igualitário, que sempre esteve no cerne dos socialismos libertários, era abandonado ou remetido para segundo plano (afinal, para o indivíduo auto-suficiente, a igualdade era também uma condição inerente e, como tal, alheia a quaisquer condicionantes externas não-coercivas). No libertarismo, em suma, a singularidade das ideias libertárias era sacrificada no instável balanço matricial da modernidade: ou mais igualdade ou mais liberdade.
As ideias de Warren, Spooner e Tucker, os anarquistas individualistas invocados pelos libertaristas e anarco-capitalistas, resultavam da confluência das correntes revolucionárias europeias com o individualismo radical de fundo liberal comum no continente americano. Da Europa, a maior influência terá vindo da obra Pierre Joseph-Proudhon, o primeiro autoproclamado anarquista e autor da célebre afirmação de que “a propriedade é um roubo”. Contudo, como nos lembra a diatribe de Joseph Déjacque, a relação de Proudhon com a propriedade privada não era redutível a uma oposição linear. Proponente de um modelo económico mutualista, Proudhon reconhecia a legitimidade de algumas formas de propriedade e as suas ideias económicas, em contraste com o seu contemporâneo e antagonista Karl Marx, apontavam para uma ideia de mercado livre socialista, e anti-capitalista, distinta do comunismo (assinale-se que anarquistas defensores do mercado livre e anti-capitalistas compõem, actualmente, uma corrente com alguns seguidores, sendo de destacar Kevin Carson e o think tank Center for a Stateless Society). Com a evolução doutrinária do anarquismo, o mutualismo desapareceu das tendências predominantes no movimento, mas, entre alguns individualistas, a garantia da soberania do indivíduo face ao Estado parecia exigir o reconhecimento de direitos proprietários como forma de assegurar a liberdade individual face a formas de restrição coercivas externas.
A relação dos libertaristas e anarco-capitalistas com a história do socialismo libertário nunca foi homogénea e alguns, situados no mesmo universo de ideias, recusaram o epíteto.
Não obstante, Spooner e Tucker, para nos cingirmos aos anarquistas individualistas mais invocados pelos libertaristas e anarco-capitalistas, sempre se consideraram socialistas (Spooner integrou, inclusivamente, a Primeira Internacional). As suas ideias fizeram-se tanto da hostilidade radical à dominação e ao poder centralizado e coercivo, cujo Estado se considerava constituir o maior expoente, como da oposição às desigualdades económicas derivadas da acumulação de riqueza e da usura promovidas pelas economias capitalistas. A ideia de propriedade que reclamavam ia, aliás, de encontro a essa postura e divergia profundamente da sacralidade atribuída à propriedade privada pelos liberais clássicos e, posteriormente, pelos libertaristas e anarco-capitalistas: remetia para uma ideia de posse, tal como definida por Proudhon e por outros pensadores e economistas socialistas, cuja legitimidade assentava na ocupação e no uso, e era uma extensão da lógica autogestionária assente na posse dos meios de produção pelos trabalhadores. Nesse sentido, o direito hereditário e a acumulação irrestrita de património era recusada. O anti-capitalismo de Spooner e Tucker manifestava-se, ainda, na recusa absoluta das mais-valias, sob a forma de juro ou lucro, o que implicava, por exemplo, a recusa do salariato, entendido como uma apropriação ilegítima do produto do trabalho pelo empregador. Para citar Tucker, “a liberdade insiste (…) na abolição do Estado e na abolição da usura; insiste no fim do governo do homem pelo homem e no fim da exploração do homem pelo homem”. Em síntese, Spooner e Tucker, como quaisquer outros socialistas libertários, defendiam a soberania do indivíduo e que as relações entre os indivíduos deviam ser sempre voluntárias, mas entendiam que a acumulação de capital, com as desigualdades que gerava, constituía uma forma de constrangimento da liberdade e da acção individuais tão importante quanto a intervenção coerciva do Estado. A sua transformação em arautos do capitalismo é, grande medida, o resultado de leituras instrumentais e descontextualizadas do que escreveram e defendiam.
Mais amplamente, o termo libertário serve, hoje, frequentemente, como um ponto de referência para situar diversas ideias e actores que se movem no universo do liberalismo neoclássico.
A relação dos libertaristas e anarco-capitalistas com a história do socialismo libertário nunca foi homogénea e alguns, situados no mesmo universo de ideias, recusaram o epíteto. Ayn Rand, por exemplo, uma das inspirações morais dos libertaristas, acusava os auto-proclamados libertários da “Nova Direita” de “quererem ser hippies” e acusá-los-ia de ter plagiado as suas ideias (que rotulava como Objectivismo). Nas suas palavras, o anarquismo era um fruto do “lado anti-intelectual do colectivismo” e os anarquistas “a escória do mundo intelectual da esquerda”. Em contraste, para Rothbard, em tempos próximo de Rand, e de quem se afastaria motivado, em parte, pela sua afinidade anarquista, o uso dos adjectivos “anarquista” e “libertário” devia ser celebrado, pois representava a “captura de uma palavra crucial do inimigo” – ainda que reconhecesse, em alguns momentos, que o anarco-capitalismo pouco tinha que ver com as correntes anarquistas e que mesmo o anarquismo individualista era essencialmente socialista.
A criação do Partido Libertário, em 1971, nos Estados Unidos, hoje o terceiro maior partido no país, e a obra de Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, publicada em 1974, dariam um contributo fundamental para a popularização das ideias libertaristas e para os caminhos que iriam prosseguir. Contrariamente a Rothbard, porém, que defendia a abolição total do Estado, Nozick propunha um Estado mínimo (cunhado como Estado minarquista) limitado a funções de protecção e segurança específicas, uma tese que se tornaria dominante nas correntes libertaristas e que, por exemplo, Ayn Rand já teria esboçado no seu trabalho. Por esta via, o libertarismo e o anarco-capitalismo tornar-se-iam relativamente autónomos um do outro. Hoje, ambos constituem campos auto-referenciais e completamente divorciados das tradições a partir das quais se baptizaram, cobrindo-as com um manto de invisibilidade histórica (com algumas excepções, como Bryan Caplan, que insiste na comparação, mantendo que o anarco-capitalismo é a mais lógica e consequente forma de anarquismo).
Mais amplamente, o termo libertário serve, hoje, frequentemente, como um ponto de referência para situar diversas ideias e actores que se movem no universo do liberalismo neoclássico.
Libertários e libertistas em Portugal e o statu quo disfarçado de subversão
Em 1894, o escritor francês Octave Mirbeau afirmava que o “anarquismo tem as costas largas, tal como o papel suporta tudo”, incluindo actos de que nem o seu mais mortal inimigo se lembraria. Mas, apesar dessa flexibilidade, a transformação de uma cultura política ferozmente anti-capitalista e anti-autoritária num dos expoentes do capitalismo mais radical não pode deixar de causar perplexidade. Especialmente quando consideramos o seu lugar na história dos movimentos revolucionários e, em particular, na história contemporânea de Portugal, país onde as correntes libertárias tiveram grande influência entre as classes populares nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século XX (a título de exemplo, a maior organização sindical portuguesa antes da eclosão da Ditadura militar e do Estado Novo, a Confederação Geral do Trabalho, era inequivocamente libertária, e o seu órgão oficial de imprensa, o jornal diário A Batalha, ainda existente, chegou a ter a terceira maior tiragem do país). Mais surpreendentemente, os socialismos libertários continuam vivos e registam um ressurgimento assinalável nas últimas décadas. A convivência de dois usos tão díspares e inconciliáveis do mesmo conceito remete, por isso, no mínimo, para uma estranha e irreparável confusão.
O que não é tão irrelevante é que tudo se dê sobre o apagamento da memória histórica de um campo político com fortes e vivas raízes em Portugal, reclamando, simultaneamente, o seu pedigree subversivo para afirmar um programa de aprofundamento do statu quo.
A actualidade portuguesa não é alheia a esta confusão e, da esquerda à direita, o uso do adjectivo libertário para categorizar os proponentes ou simpatizantes do liberalismo neoclássico tem-se banalizado das mais diversas maneiras. A isso não será alheia a emergência de figuras próximas dos ideais libertaristas na academia, na política e na imprensa nacional (em alguns casos com ligações directas ao poder, como “conselheiros independentes” de governos e figuras de Estado), ainda que, em alguns casos, mantendo alguma discrição quanto a essa filiação. Para além da tentativa de criação de um Partido Libertário, que decorre, pelo menos, desde 2016, um dos “acontecimentos” que mais difundiu esta ressignificação do termo libertário foi o surgimento do partido Iniciativa Liberal (IL), em 2017. Sem que nunca tivesse declarado abertamente qualquer filiação libertária, a conotação da IL com a corrente libertarista é frequentemente enfatizada, quer pelo percurso ideológico de alguns dos seus fundadores e integrantes, quer pelo seu programa liberal em defesa de “Menos Estado, Mais Liberdade” (slogan do programa apresentado em 2018). Mais recentemente, em 2021, pela mão de um dos fundadores da Iniciativa Liberal, Carlos Guimarães Pinto, e reunindo membros independentes e de outras forças partidárias, como Adolfo Mesquita Nunes, ex-CDS, foi criado o Instituto +Liberdade, think tank liberal, que declara como “denominador comum” dos seus aderentes “a defesa da economia de mercado e a liberdade individual”. Nos seus conteúdos e iniciativas, a ligação libertarista é mais notória (na Biblioteca que disponibilizam no seu site, e que pode servir como guia ideológico do Instituto, abundam obras de autores da “escola austríaca” e dos principais pensadores proto-libertaristas e libertaristas, lado a lado com trabalhos de Lysander Spooner e Benjamin Tucker).
Nada disto parece ter especial importância. O libertarismo constituiu-se como uma escola autónoma e abundante e, apesar do revisionismo que operou sobre a tradição libertária e anarquista “clássica”, seria absurdo contestar a sua denominação. O que não é tão irrelevante é que tudo se dê sobre o apagamento da memória histórica de um campo político com fortes e vivas raízes em Portugal, reclamando, simultaneamente, o seu pedigree subversivo para afirmar um programa de aprofundamento do statu quo. É que o capitalismo – e em particular estas suas derivações – não é apenas um programa económico; é uma mundividência que abarca todas as dimensões da sociedade, modelando-as e subsumindo-as a um ideal totalizante do que são a natureza e as relações humanas, reduzidas que ficam a uma única medida de valor.
Num tempo em que, aparentemente, se tornou “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, pela hegemonização do que Mark Fisher designou como “realismo capitalista” (o famoso “there is no alternative”), talvez seja oportuno reverter a contínua drenagem das múltiplas formas de vida que encerram outras possibilidades e que desafiam as “inevitabilidades” que se abatem sobre nós.