QAnon: uma piada descontrolada, uma alucinação colectiva ou a emoção no comando

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QAnon: uma piada descontrolada, uma alucinação colectiva ou a emoção no comando

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Essencialmente, e sem qualquer tipo de prova, a Teoria QAnon diz que os democratas são seguidores do Diabo, que bilionários e celebridades de Hollywood são secretamente pedófilos, responsáveis por tráfico humano e estão a desenvolver uma forma de prolongar o seu tempo de vida recorrendo a um químico extraído do sangue das crianças de que abusam.

Explicar a história da teoria da conspiração QAnon não é propriamente fácil e em parte é isso que a torna resiliente mesmo que assente em muito pouca ou nenhuma lógica. As suas fundações assentam em cantos obscuros da internet, onde grande parte dos utilizadores não vai, e esta falta de articulação que dificulta a narração da história acaba por lhe dar força entre os crentes: aqueles que lhe dão, excessivamente, convenhamos, o benefício da dúvida. Assim foi, por exemplo, quando em 2016 um internauta convicto da teoria Pizzagate, foi até uma pizzaria armado para alegadamente desmantelar uma rede de pedofilia, mantida secretamente na Comet Ping Pong Pizza, que não existia, e nunca existira. Comecemos então por perceber o léxico que compõe este universo para passarmos de seguida ao fenómeno propriamente dito.

Anon é o nome que se costuma dar aos utilizadores anónimos da internet e, especialmente, a quem frequenta o fórum anónimo, 4 Chan, um dos lugares mais controversos da web e onde surgiram, por exemplo, alguns dos leaks de conteúdo explícito mais polémicos da internet. Por esse fórum é comum que, sobre o manto da anonimidade e a guarda de um pseudónimo, utilizadores se dediquem frequentemente a contar histórias, inventadas ou não, que procuram convencer os demais utilizadores, para os explorar por diversão ou para os tentar convencer da sua alucinação. Antes do QAnon, muitas outras teorias surgiram pelos boards do 4Chan: em 2016, alguém se descreveu como analista de alto nível do FBI e ofereceu informações sobre a investigação à fundação de Clinton, ficando conhecido como o FBIAnon; no mesmo ano, no HLIAnon, um utilizador mais uma vez afirmando ser insider – é isso que o acrónimo significa, High Level Insider – , partilhou várias teorias sobre temas quentes como a morte da princesa Diana ou o 11 de Setembro. O QAnon surgiu não muito tempo depois, embora só agora ganhe uma base de crentes que justifique a sua notícia.

Foi a 28 de Outubro de 2017 que surgiu a primeira de uma série de publicações, feitas por um utilizador intitulado “Q”, no board de imagens do 4chan. Foi nessas publicações que tudo começou e é nelas que ainda hoje em dia tudo se baseia. O utilizador justificava a escolha do nome Q com o facto de, segundo ele, ter Q Clearance, isto é, um estatuto especial dentro das instituições norte-americanas que lhe permitia ter acesso a informação restrita, e assim consubstanciava com um argumento de autoridade sob anonimato o teor das suas informações. Numa thread com o assunto “Calm Before the Storm” – uma clara referência às declarações que Trump fizera 21 dias antes – o utilizador foi publicando diversas mensagens crípticas sobre tudo e mais alguma coisa; ora versando sobre empresas conhecidas como o Facebook e a Google, acusando-as de serem governadas pela União Europeia, ora conferindo substância aos símbolos com que a teoria vingaria. O anónimo dizia-se mandatado para revelar uma série de segredos de estado norte-americanos que preparariam a população para os tempos seguintes, a pista que conferiu o carácter apocalíptico em que a teoria se tem baseado para se tornar tão atractiva.

“HRC [Hillary Rodham Clinton] extradition already in motion effective yesterday with several countries in case of cross border run. Passport approved to be flagged effective 10/30 @ 12:01am. Expect massive riots organized in defiance and others fleeing the US to occur. US M’s will conduct the operation while NG [National Guard] activated. Proof check: Locate a NG member and ask if activated for duty 10/30 across most major cities.”

The second one was even more specific: “Hillary Clinton will be arrested between 7:45 AM – 8:30 AM EST on Monday – the morning on Oct 30, 2017.”, lia-se nos seus posts.

As suas mensagens crípticas, a que chamou “migalhas”, encenavam uma teoria maniqueísta – ao jeito de “uns contra os outros” – em que o presidente Donald Trump seria a face da renovação de uma América em luta contra uma elite corrupta composta por apenas três ou quatro famílias, pelo menos esta foi a leitura feita por outro utilizador do mesmo fórum e que ganhou tração. As pistas deixadas pelo utilizador inicial, uma lista de questões vagas e de promessas ao estilo “America Needs You”, eram ambíguas o suficiente para que as interpretações pudessem variar, mas a mensagem final corroborava o essencial: o movimento criado por Trump, Make America Great Again, era a força de mudança do bem. “POTUS is counting on you. MAGA is counting on you”, lia-se.

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Neste ponto é fundamental fazer uma ressalva, até em nome do rigor jornalístico. Como comecei por escrever, a história desta teoria é das mais difíceis de acompanhar e rastrear pela internet; de resto, é esse seu carácter suficientemente ambíguo ao ponto de se tornar quase esotérico que tão rapidamente faz dos seus crentes autênticos fundamentalistas da teoria. É a confusão de mensagens e informações que só os Qanon’ers dizem conseguir perceber, ridicularizando quem olha de fora, que confere um carácter tão forte à sua bolha, bolha essa que embora tenha muito pouca lógica se torna difícil refutar à medida que se torna ainda mais difícil de narrar. É provável que mesmo entre os seguidores da teoria ela ganhe diversas formas, e isso vê-se nos vários grupos que a propagam, por exemplo no Twitter. Existem vários ‘triggers’ e cada grupo acaba por explorar um deles, ignorando o fundamental, as incoerências basilares de toda a história. Mas continuemos.

A veracidade da história que Q contava era um dos pontos que faltava neste momento para dar à história a tração e credibilidade que ela necessitava. Contudo, tudo mudaria dias depois. O anónimo antecipara no 4Chan que Trump iria usar a palavra “small” num discurso no chamado “Small Bussines Day” e publicou uma fotografia desfocada de uma imagem aérea que o colava junto de Trump a 9 de Novembro de 2017. “/pol/ confirms QAnon is on AF1 using flight times and geo photo analysis” pôde ler-se a 10 de Novembro no Reddit, plataforma para onde entretanto a história migrara – a confirmação, essa, baseava-se em cálculos sobre os timings de viagem do presidente Donald Trump no americano AirForce1 que coincidiam com a fotografia publicado pelo anónimo; já esses timmings de Trump baseavam-se nas horas dos seus tweets, como se fossem timestamps da sua localização num determinado sítio. Foi a partir daqui que a teoria começou a distinguir-se das demais. Q continuou as suas publicações. 

Com as pistas dúbias sobre a identidade de Q, o anon começou a ser levado cada vez mais a sério enquanto a dúvida sobre quem seria de facto a pessoa por detrás de tudo começou a ser cada vez mais o mistério para quem acompanhava de fora. Entre as suspeitas surgiam as mais diversas hipóteses, desde os que apontavam alguém próximo de Trump por suspeitarem de influências de Q no discurso de Trump, até aos que continuavam a achar que era só um troll da internet (a esta parte, já lá iremos). No meio da confusão sucedia a teoria, que entre 2017 e 2018 começava a sair do submundo do 4chan e ocupando outros cantos escuros da internet, muito graças à comunidade que ali gerara. Identificar os vectores da mensagem é mais uma das tarefas quase impossíveis de fazer com exactidão, mas entre os principais profetas da teoria QAnon há 3 que se destacam, como aponta a NBC. Dois moderadores da rede 4Chan, que dão pelos nomes de Pamphlet Anon e BaruchtheScribe, terão contactado a youtuber e blogger Tracy Diaz para que juntos pudessem disseminar – ou devemos antes dizer, capitalizar – a mensagem.

Não foi preciso muito tempo para que a equipa se juntasse e começasse a produzir tanto material de divulgação como merchandising para venda. A sua intenção, como explicou à NBC o utilizador BaruchttheScribe, entretanto identificado como o sul-africano Paul Furber, programador web, era “decidir que a mensagem tinha de ir mais longe” por isso contactaram “youtubers que tinham comentado as revelações do Q”. Identificar estes youtubers não deve ter sido difícil, a sua linha temática é previsível, e já em 2016 muitos deles tinham sido activados pelo supra-citado Pizzagate que acabou com a prisão de Edgar Welch, que fez desmoronar a teoria a que até a Fox News chamou fake news. Os moderadores da plataforma e a youtuber anunciavam ter contacto com Q, que por sua vez ia negando tudo no Reddit, algo que ainda assim não impedia a história de avançar e emergir, e os seus profetas de aumentar de popularidade – os vídeos de Tracy sobre a teoria somam mais de 8 milhões de visualizações e foi a própria a assumir que tinha audiência por falar sobre a QAnon.

Mas afinal quais os elementos da QAnon?

Essencialmente, e sem qualquer tipo de prova, a Teoria QAnon diz basicamente que os democratas são seguidores do Diabo, que bilionários e celebridades de Hollywood são secretamente pedófilos, responsáveis por tráfico humano e estão a desenvolver uma forma de prolongar o seu tempo de vida recorrendo a um químico extraído do sangue das crianças de que abusam. A história em si não é propriamente inovadora, uma vez que, mais uma vez, assenta em linhas paralelas com a da Pizzagate, viral em 2016, ou alude, por exemplo, à clássica teoria anti-semita do Libelo de sangue em que se diz que um grupo de pessoas sacrificaria outras para estender a sua vida. Aqueles que são pintados como os vilões também não são novidade, tirando um outro exemplo. Entre a lista encontra-se Hillary Clinton, Barack Obama, George Soros, Bill Gates, Tom Hanks, Oprah Winfrey ou o Papa Francisco; todos, segundo a teoria, envolvidos numa conspiração global de que só Donald Trump seria capaz de livrar os americanos.

Outro dos elementos curiosos da QAnon é que apesar da sua face pública ser o Q, entre os seus apoiantes a linguagem é outra Referem-se constantemente à Tempestade ou ao Grande Acordar, uma apropriação semântica que permite perceber melhor o teor e o sucesso da teoria. Em mais um pormenor, a teoria respalda-se sobre clássicos da conspiração, neste caso, teorias apocalípticas sobejamente conhecidas… e refutadas. É neste particular que a teoria encerra um dos seus principais factores de atractividade, segundo parece. Ao apontar um dia para um confronto, a teoria mascara-se de recrutamento de pessoas que queiram estar do lado de Trump, que queiram estar do lado de Q, no dia em que chegar a tal tempestade. Entre os símbolos do grupo surge a hashtag #WWG1WGA que significa Where We Go One, We Go All e marca claramente o espírito de pertença em que se funda a sua recruta de crentes. E é também aí que as coisas começam a ficar confusas, quando esse suposto dia se aproxima, segundo os seus apoiantes.

Na teoria central, Donald Trump foi um dos primeiros homens a saber tudo o que se passa de mal com o mundo, e a sua ascensão à Casa Branca foi como um plano para acabar com tudo isso. Segundo a mesma teoria, o seu mandato tem sido marcado por lutas contra um “deep-state” e são as notícias dessas lutas que chegam aos demais através do messias Q, que depois de começar a teoria no 4Chan, se viu obrigado a migrar para o 8Chan, depois de o primeiro ter sido fustigado após do tiroteio de El Paso.

Assim, mais do que participantes directos na narrativa central da teoria, os crentes são como coadjuvantes do Presidente que neste caso assume uma figura central, quase teísta, que com ele contactam através de um intermédio humano – internauta – numa triangulação que nos lembra o veio central mais básico das crenças religiosas.

Mais uma vez é sobre as pontas soltas da QAnon que crescem novas ramificações e o carácter profundamente ambíguo encerra uma das suas partes mais fascinantes. É que apesar de o nome Q se ter desde cedo justificado com o estatuto Q Clearance, Q é também o nome de um livro publicado em Itália nos anos 90, assinado por Luther Blisset. E esta informação pode ser mais relevante para demonstrar a verdadeira face da história do que os seus crentes podem considerar. Q, o Caçador de Hereges foi publicado em 1999, ano da morte de John F. Kennedy, e há quem sugira que tudo terá sido uma simulação e que o verdadeiro Q é Kennedy. Contudo, uma outra teoria proposta vem ganhando força, entre quem se dedica a descobrir o autor Luther Blisset.

Luther Blisset é um pseudónimo colectivo, um projecto que decorreu entre 94 e 99 em que quem quisesse se podia apropriar deste nome e desta identidade ficcional. A ideia do grupo que o criou era fazer dele um elemento subversivo dos media. Assim, Luther lançava noticias falsas, criava boatos e rumores, até que se dedicou à ficção e publicou Q. Q foi a última obra do colectivo e foi criada por quatro trabalhadores da zona de Bolonha que a 6 de Março de 1999 revelaram a sua identidade ao jornal italiano La Reppublica. A obra foi traduzida em 8 línguas e tornou-se entretanto maior do que a história do seu autor, perdendo assim parte da lógica basilar essencial a entendê-la, pelo que em seu lugar surgiram também várias teorias sobre a obra. Q, O Caçador de Hereges passa-se na Europa no Século XVI e acompanha a vida de um radical Anabatista que nunca se chega a conhecer muito bem para além das suas lutas. Os seus autores descreviam-no como um manual de sobrevivência, encontrado pelo personagem entre os muçulmanos, outros como uma incitação à revolução. Fundamentalmente, o livro procura centrar num personagem as ideias de pelo menos quatro, o que lhe confere um carácter mais dinâmico e difícil de interpretar – e que pode ser fácil de instrumentalizar. Foi para isso que apontaram os autores originais.

Depois da publicação de Q, o LBP (Luther Blisset Project) transformou-se em Wu Ming (que em mandarim significa literalmente “sem nome”) e o colectivo constituiu-se como uma fundação. Foi essa fundação que através da sua conta de Twitter lançou a sugestão de que toda esta encenação do Q podia de facto ser uma piada de um militante de esquerda procurando expôr a fragilidade das crenças dos apoiantes desta facção crente de direita.

Se este ponto é verdade ou não, só o verdadeiro autor da teoria poderá dizer. Ainda assim, e porque nos tempos que corremos, estamos fartos de ouvir falar de pós-verdade, é preciso analisar os factos à luz dessa tendência. Se, de facto, tudo pode ter sido uma piada extremamente bem construída ao ponto de se tornar descontrolada, a verdade é que ao Presidente norte-americano tudo isto parece dar vontade de rir. Durante os protestos que recentemente ocorreram na América em torno do movimento Black Lives Matter, Trump fez questão de ir até à capela junto da Casa Branca – onde nem sequer rezou – para pousar com a Bíblia em frente a uma série de manifestantes furiosos, uma atitude que muitos vêem como uma encenação de um capítulo desta história, procurando colher dela valor político. Se essa encenação é difícil de provar, mais fácil é ouvir as palavras de Trump, que diz desconhecer a história mas “saber que gostam muito dele” e que “isso é bom” e que se “puder ajudar a livrar o mundo dos problemas” o irá fazer, declarações que não refutam a teoria e ao seu jeito esotérico se permitem a múltiplas interpretações. A dar mostras da aproximação desta teoria ao mundo da política e do poder norte-americano está também a eleição de Taylor Greene, vencedora das primárias republicanas na Georgia, que de arma na mão fez um assustador vídeo secundando as posições xenófobas e divisionistas da alucinante teoria QAnon.

Se sobre o princípio da teoria pouco se sabe, sobre a sua instrumentalização numa altura em que se aproximam as eleições norte-americanas, pode esperar-se o pior. Analistas políticos norte-americanos apontam para a possibilidade de Trump explorar mais e mais este filão, e a inércia do partido face à eleição de Taylor Greene, mesmo depois das suas ameaças altamente condenáveis em qualquer democracia, mostram que, institucionalmente, o sistema bipartidário dos Estados Unidos pode não ter agilidade, sensatez e capacidade para neutralizar o movimento, enquanto houver quem esteja disposto a usá-lo para ir mais além.

Tal como todas as teorias da conspiração, refutar a QAnon torna-se difícil porque o que move os seus seguidores é uma adesão afectiva e emocional, uma construção alienante de um “nós contra eles” que no caos comunicacional em que vivemos ainda se agrava mais. Os canais de radicalização na internet são sobejamente conhecidos e é seguindo pequenas pistas como estas que se descobre o manancial de canais de Youtube, contas de Twitter, grupos de Facebook e sites por toda a web, onde este tipo de informações nunca verificadas e nunca comprovadas são apresentadas como aquilo que o Estado quer esconder, um argumento que facilmente convence aqueles que por algum motivo desconfiam à partida desse mesmo Estado.

Numa sociedade com uma tempo de atenção e concentração cada vez mais baixo, com as redes comunicacionais dominadas por algoritmos que, conforme provam os estudos, tendem a acentuar preconceitos, é no espaço da dúvida sobre a lógica, onde não só é possível como é fácil empregar a emoção, que teorias como a QAnon ganham tração. Entre os que se irritam contra, e os que festejam a favor, faz falta quem tenha paciência para contar ou ler esta tão longa história. À falta de atenção dada à razão, emerge o populismo à boleia da emoção, e Trump já provou ser forte a capitalizar a confusão.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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