A história de Miguel reflete o racismo estrutural do trabalho doméstico no Brasil

A história de Miguel reflete o racismo estrutural do trabalho doméstico no Brasil

12 Junho, 2020 /

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Mirtes Renata de Souza perdeu o filho Miguel, de 5 anos, por “falta de paciência da sua patroa”. No fatídico 2 de junho partilhavam-se quadrados pretos nas redes sociais, enquanto no Recife um episódio resumia o peso do racismo estrutural no seio do trabalho doméstico.

A 2 de abril de 2020 a Género Número, plataforma brasileira de jornalismo de dados focada em questões de género, publicou a reportagem “PEC das Domésticas completa 7 anos golpeada por empregadores, economia e coronavírus”. No subtítulo do artigo lia-se que “em tempos de pandemia, trabalhadoras são ameaçadas e nem um terço da categoria conta com proteção estabelecida por lei”. Dois meses depois, perde-se a conta ao número de empregadas domésticas infectadas com a Covid-19 que se viram obrigadas a trabalhar, assim como o número total de casos e mortes pela doença, que o Presidente Jair Bolsonaro decidiu ocultar. O vírus não ataca por classe social, mas o isolamento a que recomenda é apenas direito para algumas pessoas.

Precisamente dois meses depois da publicação da Género Número (GN), Mirtes Renata de Souza, empregada doméstica na casa de Sari Côrte Real, regressava à casa em que laborava, no edifício Torres Gémeas, no Recife, para mais um dia. Não tinha com quem deixar o filho de 5 anos, Miguel, e viu-se obrigada a levá-lo consigo para o trabalho, sem imaginar o desfecho do que pensava ser apenas mais um dia normal. Como de costume, levou a cadela da família à rua e pediu à patroa para ficar de olho no seu filho; enquanto, na rua, Mirtes dava a volta do costume, Miguel sentiu a falta da mãe e tentou sair de casa. À primeira tentativa a patroa repreendeu o menino, à segunda viu-o sair e entrar no elevador sozinho.

Em poucos minutos, 2 de junho tornou-se um dia fatídico para Mirtes. As imagens de videovigilância mostram que, ao chegar ao nono andar, Miguel subiu para uma caixa de condensadores de ar condicionado e caiu de uma altura de 35 metros. Miguel morreu e Mirtes percebeu que tinha perdido o filho quando regressou a casa. Afinal não era apenas mais um dia. Foi a própria Mirtes quem encontrou o filho caído no chão.

Mirtes Renata de Souza trabalhava há quatro anos na casa de Sari Côrte Real e Sérgio Hacker, perfeito de Tamandaré. “Ela confiava os filhos dela a mim e à minha mãe. Na única vez que confiei meu filho a ela, ela não teve paciência”, disse Mirtes numa entrevista dada poucos dias depois na tentativa de pedir justiça publicamente. Sari foi acusada de homicídio negligente, mas após ter pago 20 mil reais – valor correspondente a cerca de 3 532 euros – saiu em liberdade.

Não tardou muito para que #JustiçaporMiguel começasse a circular nas redes sociais e que a rua fosse ocupada por pessoas que se manifestavam em Tamarandé, em solidariedade com Mirtes. No dia 5 de junho, enquanto noutros países já decorriam manifestações pela causa Black Lives Matter, o caminho até aos edifícios das Torres Gémeas do Recife encheu-se de cartazes com frases como “Crime burguesia branca”, “Cinco unhas valem mais do que cinco anos de um preto” (porque alegadamente Sari estava a arranjar as unhas enquanto Miguel se dirigiu para o elevador), mas também “O racismo mata” ou a pergunta “E se fosse ao contrário?”

Podia ser ao contrário?

Para Mirtes a resposta à pergunta é clara: “Se fosse ao contrário, eu acho que eu não teria nem direito a fiança. Se fosse eu, a esta hora, estava no presídio porque não tenho 20 mil reais.” Depois de ter perdido o irmão e ter visto o caso arquivado, a mãe de Miguel garante que com o seu filho não acontecerá o mesmo.

Em declarações prestadas à Globo Pernambuco numa reportagem da manifestação do dia 5, Linda Ferreira, membro da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), disse que “a morte de Miguel é resultado de uma estrutura racista que, desde os tempos do Brasil colonial, faz parte da sociedade”. “Este ato é pela dor de cada mãe que enterrou seus filhos, é um grito contra a violência policial, contra a miséria que se volta para este país. Não temos políticas públicas que garantam a vida dos negros e negras no Brasil. Não estamos pedindo direitos, nós temos direito”, disse ao jornalista. 

Segundo dados disponibilizados pela Género Número, publicados na reportagem do dia 2 de abril, mais de 3,5 milhões de um total de 6,2 milhões de pessoas empregadas domésticas no Brasil são mulheres negras. Mirtes é uma delas, tal como a sua mãe, Marta Alves, já o era antes de si.

Dados reunidos pela Género Número com foco no perfil dos trabalhadores domésticos no Brasil

Entrevistada para a mesma reportagem, Márcia Soares, diretora-executiva da Themis, organização de Direito voltada para atendimento a mulheres, diz à GN que “não dá para falar sobre as trabalhadoras domésticas e a naturalização da violação de direitos dessas mulheres sem entender que a maioria é formada por mulheres negras e de baixa escolaridade. Nesse processo, tem um resquício inegável da escravidão e da ausência de direitos de quem trabalhava nas casas dos seus senhores.”

A morte de Miguel levantou o véu a uma série de problemas já existentes, tanto na classe das trabalhadoras domésticas do Brasil como no caso particular de Mirtes e Marta, a mãe e a avó do menino. De acordo com a Agência Pública, ainda antes do episódio fatal do dia 2 de junho a família já tinha contraído a Covid-19, bem como Mirtes e Marta que não foram dispensadas do serviço. No momento atual, os serviços de trabalhadoras domésticas dividem-se em dois cenários possíveis: ou ficam em casa dos seus patrões como internas, ou se deslocam todos os dias para o local de trabalho, tendo muitas das vezes de levar os filhos consigo, porque não têm com quem os deixar.

“Nós, trabalhadoras domésticas, carregamos a herança do trabalho escravo e a sociedade brasileira carrega a herança de ser escravocrata. Os empregadores não querem se dar ao trabalho que preparar uma refeição, de botar a roupa na máquina, de limpar o banheiro”, diz Luíza Batista, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), à Agência Pública. Luíza diz que falta empatia, “solidariedade, independente de cor, classe, religião, orientação sexual”.

No dia em que todos partilhavam no Instagram quadrados pretos em solidariedade com a ação Black Out Tuesday, Miguel perdia a vida num sopro. Enquanto nas redes sociais se começavam a explicar os diferentes tipos de racismo e a aconselhar literatura para melhor o entender, no Brasil acontecia mais um episódio que, por si, abre a hipótese de dar a ver a perpetuação do racismo estrutural.

Bernadete Azevedo, procuradora aposentada do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e fundadora do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo, disse ao jornal Metrópole que “o racismo está nas entrelinhas”. “É o que a gente chama de racismo estrutural, aquele que se reproduz de certa forma até automática para quem o pratica. É como se fosse normal”, comentou.

Entrevistada por Wilfred Gadelha para a mesma peça do Metrópole, Fabiana Moares, jornalista e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), destacou o papel que também Miguel tinha nesta relação de poder e submissão. “Miguel é a terceira geração de uma família negra que está amparando essa família branca. Faz a gente pensar na política de quotas, na importância da universidade para que pessoas negras não permaneçam nestes postos de trabalho que signifiquem doar suas vidas para que pessoas brancas possam cuidar das delas”, disse.

Que horas ela volta?

Nas primeiras declarações que Mirtes Renata de Souza concedeu na sua área de residência, que em tudo se distancia da zona em que trabalha, rapidamente conseguimos desconstruir as relações que vão além da limpeza, de cozinhar o almoço e jantar, ou de passear a cadela na rua. “Eu perdi o meu único filho por uma questão de paciência, Sari. Paciência, que eu sempre tive com os seus. Eu amo os seus filhos como se fossem meus”, diz Mirtes a certa altura no sufoco de quem perdeu o que de mais valioso tinha na vida.

Para quem está longe das múltiplas realidades do Brasil e nem sempre tem acesso a histórias como a de Mirtes e Miguel, as narrativas vão chegando, ainda que em alguns casos por meros apontamentos, por meio audiovisual. A representação dxs empregadxs domésticxs na casa da família burguesa está tanto nas telenovelas da Globo como nos filmes de autor — ainda que a profundidade dessa representação varie.

Em Aquarius (2016), filme de Kleber Mendonça Filho, vemos Clara (Sonia Braga), uma mulher de 65 anos de classe média-alta que se recusa a sair do apartamento em que sempre viveu e já pertencia à sua tia, no Recife, com uma relação aparentemente próxima com Ladjane (Zoraide Coleto), a empregada doméstica que diz já fazer parte da sua família. Por muito próximas que possam ser, e por muito que Clara apareça no aniversário de Ladjane numa casa no meio da favela, as diferenças acutilantes estão lá. Já em Som ao Redor (2012), sem que a empregada doméstica assumisse um papel de protagonismo na história, Kleber Mendonça Filho explora as tensões inerentes à condição destas mulheres, numa série de enunciações que vão pairando sobre a obra e de planos-chave que ilustram o desequilibrio de poder de forma subtil mas evidente.

Por sentir os muros invisíveis na sua própria casa, João Moreira Salles gravou Santiago (2007), um documentário que leva para o plano principal o mordomo que dá nome ao filme, que trabalhou na sua casa durante mais de 30 anos. O filme que deixou a meio e em que voltou a pegar mais tarde, para o terminar, leva para a tela a relação desigual que nem na hora de gravar o documentário de desaparecer. “Não existem planos fechados neste filme, nem um close de rosto. Ele está sempre distante. Penso que a distância não acontece por acaso. Ao longo da edição, entendi o que agora parece evidente: a maneira como conduzia as entrevistas me afastou dele; desde o início. Havia uma ambiguidade insuperável que explica o desconforto de Santiago. É que ele não era apenas meu personagem, eu não era apenas documentarista. Durante os cinco dias de filmagem, eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa, e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo”, diz Moreira Salles, a certa altura, na narração que surge como uma espécie de pensamento em voz alta.

Pensar na história de Mirtes e nas suas declarações sobre os filhos de Sari Côrte Real e de Sérgio Hacker pode transportar-nos para umas quantas referências dentro do cinema brasileiro, mas as semelhanças com Val (Regina Casé), protagonista de Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, saltam à vista. Val trabalha na mesma casa, em São Paulo (SP), desde que Fabinho (Michel Joelsas), o filho dos donos da casa coberta de arte moderna e com uma piscina em frente, era bebé. Mudou-se para SP à procura de uma oportunidade de trabalho que lhe garantisse sustentar Jéssica (Camila Márdila), a filha que deixou ao cuidado de outra pessoa, à distância, e para isso tratou de Fabinho como se de um filho seu se tratasse. Enquanto Fabinho perguntava a Val a que horas voltava a sua mãe do trabalho, Jéssica perguntava o mesmo sobre Val à mulher que ficou a cuidar de si.

O momento paradigmático no filme de Muylaert dá-se quando Jéssica vai estudar para São Paulo e percebe que terá de ficar no “quartinho dos fundos” em que a mãe sempre viveu, na “casa deles”. Se até então a relação de verticalidade entre Val e os seus patrões ia sendo pontuada com “é como se fosse da família”, os ânimos alteram-se a partir do momento em que Jéssica vai atravessando os tais muros invisíveis. Jéssica e Val são da família, mas apenas “da cozinha para lá”. Bárbara (Karine Teles), a patroa, não suporta a presença de Jéssica na sua casa; não suporta a presença da filha da mulher que cuidou do seu filho como se fosse seu.

É provável que Mirtes continue a tomar conta dos filhos dos outros como se fossem seus. As circunstâncias em que nasceu não lhe permitem muito mais. A possibilidade da vida de Miguel ter outro rumo e ser polícia ou jogador de futebol, como dizia à mãe que queria ser, foi roubada por “falta de paciência”. Miguel não vai poder perguntar mais “que horas ela volta?”.

 

Estamos assim tão longe?

As manifestações Black Lives Matter em Portugal convidaram a voltar a olhar para a forma como a História de Portugal está contada nos livros. Já em 2017, num artigo que escreveu para o Diário de Notícias, Fernanda Câncio alertava para o excerto de um manual de História do 6º ano em que se podia ler que “os Portugueses traziam de África ouro, escravos, marfim e malaguetas – produtos de grande valor.”

A construção do olhar para o(s) outro(s) pouco se tem alterado, e o impacto na memória coletiva reflete-se, também, em relações de poder. O cenário português e o brasileiro diferem em muitos aspetos, mas se nos permitirmos olhar para dentro rapidamente percebemos quais são as pedras de toque. Na dissertação “Serviço Doméstico: Perfil das empregadas domésticas e necessidades das famílias empregadoras”, integrada no mestrado em Sociologia no ISCTE, Mariana Raposo Louro Ramos conclui que a evolução na organização das famílias teve um impacto direto no perfil das empregadas domésticas.

Também em Portugal existe trabalho doméstico interno e externo, e a possibilidade de romper limites de um horário de trabalho no regime interno é maior “porque a trabalhadora, estando sempre em casa, acaba por ser alguém sempre disponível a ajudar e é, assim, muito requisitada”. Com o crescente fluxo de imigração, o perfil de empregada doméstica também se alterou, uma vez que este acaba por ser o emprego de muitas mulheres que vêm para Portugal à procura de um novo rumo para a sua vida.

Nacionalidade de inquiridas para a dissertação de Louro Ramos

Em 78 mulheres inquiridas por Mariana Raposo Louro Ramos, 32 (o maior número entre as 11 nacionalidades que reuniu) corresponde a cabo-verdianas. No capítulo correspondente às condições e necessidades de empregadas e empregadores, Louro Ramos escreve que “há algumas preferências e estas recaem sobre as empregadas de nacionalidade cabo-verdiana, portuguesa e filipina. A primeira nacionalidade referida deve-se ao facto dos cabo-verdianos serem muito afáveis, de confiança e, ainda, terem alguns traços da cultura portuguesa. A preferência pelas empregadas de nacionalidade portuguesa deve-se a estas já conhecerem os hábitos e costumes das famílias portuguesas. Assim, o empregador não tem que explicar e ensinar a fazer as tarefas domésticas”.

Ainda no mesmo estudo, é possível ler que muitas dessas mulheres não têm carta de condução e, como vivem longe das casas em que laboram, acordam de madrugada para apanhar transportes públicos e se deslocarem até ao local de trabalho. Algumas delas não trabalham em regime interno apenas porque é a única forma de continuarem a viver com os seus filhos.

Na segunda-feira, dia 8 de junho, Conceição Queiroz, jornalista da TVI, levou para um programa da tarde a realidade de muitas destas mulheres, que tantas vezes acumulam trabalhos para garantir uma refeição aos seus filhos. “As mães destes miúdos saem de casa às quatro e cinco da manhã, saem de madrugada de casa e têm três e quatro empregos. Trabalham durante todo o dia para que consigam garantir aquela única refeição, muitas das vezes, o jantar, ao entardecer, aos seus filhos. O que é que tu podes pedir mais a esta mãe?”

Tal como situação precária de Mirtes, levantada pela morte de seu filho Miguel, pode servir para olharmos para dentro e fazermos zoom na condição de muitas empregadas domésticas e de limpeza, sobretudo nos grandes centros urbanos, a urgência de amplificar a reflexão Black Lives Matter nos Estados Unidos da América pode servir para pensar em que camadas o racismo se encontra colado à sociedade portuguesa. Para que, ao contrário de Grada Kilomba e de tantxs outrxs jovens e adultos que já foram crianças, o banco de trás da sala de aula não continue a ser sempre para xs mesmxs.

Autor:
12 Junho, 2020

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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