O Iémen, país do Médio Oriente, atravessa agora a maior crise humanitária do mundo, segundo as Nações Unidas. Presos numa guerra civil desde 2015, os iemenitas lidam com a falta de condições básicas – como água, saneamento ou eletricidade –, mas também com a fome, dengue, cólera e, mais recentemente, o surto de coronavírus. “Uma criança morre a cada dez minutos no Iémen, é uma tragédia”, explica ao Shifter Ahmad Algohbary, jornalista freelancer iemenita e fundador da associação Yemen Hope & Relief.
Pelas redes sociais, os pedidos de ajuda alastram-se e apela-se aos internautas que assinem petições e ajudem os cidadãos do território com doações monetárias. As crianças são as mais afetadas pela crise humanitária e a instabilidade política que se estabeleceu há cinco anos transformou-se rapidamente num entrave ao progresso socioeconómico. Todos os dias, morrem iemenitas pelas mais diversas razões, intensificadas pela falta de um Governo que conduza o país e impeça a interferência dos países do Médio Oriente na crise.
Voltando atrás no tempo, o Iémen atual “foi formado em 1990 com a unificação da República Árabe do Iémen, apoiada pelos EUA e pela Arábia Saudita no norte, e a República Democrática Popular do Iémen (PDRY), apoiada pela URSS no sul”, explica o Conselho dos Assuntos Estrangeiros. Ali Abdullah Saleh foi responsável por assumir a liderança do país. Contudo, separadas pela religião, as regiões que formavam o novo Iémen mostravam-se frágeis na aceitação de uma unidade nacional. O norte rebelou-se várias vezes e o sul reivindicava a separação.
O conflito atual iniciou-se alguns anos após a Primavera Árabe, quando a transição para um novo Governo deveria ter sido um motor para incentivar a estabilidade. Em 2012, o então Presidente Ali Abdullah Saleh foi obrigado a renunciar ao cargo depois de mais de 30 anos de autoritarismo. No entanto, o sucessor, Abdrabbuh Mansour Hadi, mostrou grandes dificuldades em lidar com problemas ao longo do mandato, como os ataques jihadistas, desemprego, movimento separatista do sul, entre outras tensões, como explica a BBC.
Por essa altura, o país entrou em rutura, o que incentivou o movimento Houthi a encabeçar (mais uma) rebelião contra o Governo de Hadi, no norte do país, entre 2014 e 2015. As dificuldades do Executivo em lidar com os problemas sociais levaram os Houthis a tomar a capital, dando-se início a uma guerra civil. “No sul, as instituições estatais caíram nas mãos dos separatistas, apoiados pelo controlo [das cidades] de Aden, Abyan e Socotra. No norte, [o movimento] Houthi quer completar o domínio nas áreas de al-Bayda e está desesperado para controlar o petróleo de Marib”, explica Suaad Al Salahi, produtora freelancer, a viver no Iémen. Desde então que o território continua dividido e em constante para-arranca dos movimentos de norte e sul. Hadi exilou-se na Arábia Saudita.
“Neste momento, temos três lados de batalha”, clarifica Al Salahi: os Houthis no norte, o movimento separatista do sul – oficializado como Conselho de Transição do Sul – e o Governo de Hadi, também no sul.
Apesar de se falar em guerra civil, o Iémen lida com as tensões e pressões políticas que chegam do outro lado da fronteira. “O sul é controlado por Hadi, apoiado pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos (EAU)”, refere Ahmad Algohbary. “Os Houthis estão a lutar contra a Arábia Saudita e os EAU. O movimento do sul quer levar a cabo uma separação para ter o seu próprio país independente. Eles não querem um Iémen unido”. Já o norte conta com o apoio do Irão.
A Arábia Saudita organizou uma coligação de países árabes de maioria sunita para tentar fazer cair a liderança dos Houthis no norte e restabelecer o Governo de Hadi. Bahrein, Egito, Jordânia, Kuwait, Marrocos, Catar, Sudão, Emirados Árabes Unidos, Eritreia e Paquistão fazem parte da “lista”. Com os Houthis no poder, os sauditas sabiam que o Iémen seria uma pedra no sapato na fronteira do país.
“As relações entre o Iémen e os seus vizinhos são muito complicadas por causa da Arábia Saudita, que não quer que o Iémen seja um grande país. O território não deixa que os iemenitas extraiam o seu petróleo e esse é o principal problema. Mas também existem dificuldades nos portos e aeroportos, que são controlados pelos sauditas”, contextualiza Algohbary. A Arábia Saudita aliou-se às forças pró-Governo, que já conseguiram recuperar algum território, mas os Houthis mantêm a capital Sanaa na sua “zona de liderança”.
Yousef Al-Hadhrami, cidadão de 26 anos, conta ao Shifter que a presença da Arábia Saudita no Iémen é permanente e perigosa. “O Presidente internacionalmente reconhecido e exilado [Hadi] e o seu Governo estão a governar o Iémen a partir de dentro da capital saudita Riad”. Al-Hadhrami fala da conivência dos sauditas com a violência no território, afirmando que o país “recruta e paga a iemenitas pobres dos subúrbios para lutar nas suas fronteiras e defendê-los contra os Houthis”.
Em 2019, dois campos de extração de petróleo da Arábia Saudita foram atacados por via aérea. Apesar de os Houthis terem reivindicado o ataque, a Arábia Saudita e os Estados Unidos da América acusaram o Irão de os terem orquestrado e executado. Al-Hadhrami afirma que “o Irão não tem envolvimento militar no Iémen”.
Nos últimos meses, os iemenitas têm testemunhado ataques violentos no território. Milhares de civis já morreram devido à guerra civil. “A ONU tinha verificado a morte de pelo menos 7.700 civis em março de 2020, sendo a maioria causada por ataques aéreos da coligação liderada pela Arábia Saudita”, avança a BBC. Ainda assim, acredita-se que os números sejam mais altos: “O Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos (ACLED), com sede nos EUA, disse em outubro de 2019 que tinha registado mais de 100 mil mortes, incluindo 12 mil civis mortos em ataques diretos. Mais de 23 mil fatalidades foram relatadas em 2019, tornando-se o segundo ano mais letal da guerra até agora”.
Suaad Al Salahi acredita que “há um sentimento entre a sociedade de que a coligação liderada pela Arábia Saudita fracassou no projeto do Estado norte e sul”. A produtora iemenita afirma que tem sido difícil perceber os passos das frentes de ataque e que “as características do Estado estão a desaparecer ano após ano”. A UNICEF já avisou: “O Iémen está a enfrentar uma emergência dentro de uma emergência”.
“As crianças estão a ser roubadas do seu futuro”, afirma a UNICEF
Sem fim à vista para a atual crise política, o Iémen não está a conseguir dar resposta à crise de Covid-19. Algohbary explica que existe um difícil acesso aos cuidados de saúde, cujo sistema está a colapsar. Este fator leva a que muitas das vítimas do novo coronavírus morram sem um diagnóstico formal. “Existem várias províncias que não possuem soluções de teste e o Iémen possui apenas seis laboratórios que registam 250 mortes, enquanto as Nações Unidas afirmam que as vítimas são muitas mais”, diz Al Salahi. “Existem estimativas britânicas do Ministério do Desenvolvimento Internacional que afirmam que há um milhão de casos de infeção por Covid-19 no Iémen. As Nações Unidas também afirmam que 16 milhões estão em risco de infeção”, continua.
Neste momento, as ajudas internacionais continuam a ser um balão de oxigénio para a população. “Contamos com a ajuda de organizações internacionais, mas estão sujeitas à disponibilidade de financiamento. Há uma enorme escassez de camas hospitalares e aparelhos respiratórios. As organizações também pagam a trabalhadores da saúde: cerca de nove mil médicos e profissionais de saúde”, conclui.
“As crianças estão a ser roubadas do seu futuro”, diz a UNICEF que estima que, em abril deste ano, existiam “mais de 24 milhões de pessoas – cerca de 80% da população – a precisar de assistência humanitária, incluindo mais de 12 milhões de crianças”. O encerramento dos hospitais e escolas foram alguns dos motivos que colocaram os mais novos em situação vulnerável. “As crianças continuam a ser mortas e mutiladas no conflito. Cerca de dois milhões de crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição aguda e necessitam de tratamento”. Em 2019, a Rights Radar disponibilizou um relatório sobre a violência contra as crianças iemenitas.
Yousef Al-Hadhrami vive no país há 26 anos e já testemunhou muita coisa. Diz que “viver no Iémen é muito difícil, especialmente para os pacientes, devido ao cerco naval, terrestre e aéreo”. Para procurar ajuda médica noutro país é preciso “viajar por terra por, pelo menos, 1800 quilómetros de Sanaa a Omã em vez de se poder viajar de avião”.
Os dados de um relatório da ONU sobre a crise iemenita mostram que “um total de 17,8 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e saneamento e 19,7 milhões não têm acesso a cuidados de saúde adequados. O mau saneamento e as doenças transmitidas pela água, incluindo a cólera, deixaram centenas de milhares de pessoas doentes no ano passado [2018]”.
“Temos 3,1 milhões de pessoas deslocadas internamente, não tenho certeza sobre [o número de] refugiados fora do Iémen. Às vezes as pessoas tentam escapar e outras vezes estão apenas a tentar viajar para outros países para procurar tratamento médico”, continua Al-Hadhrami. O iemenita invoca a intervenção de países ricos, como a Arábia Saudita e os EAU, para justificar a pouca mediatização da crise nos meios de comunicação social. Para Al Salahi, no entanto, não se fala do caso nos media de outros países “talvez pela falta de autoridades oficiais a exercer o seu papel e a transmitir o sofrimento do povo à comunidade internacional”.
Para o futuro, Al Salahi e Algohbary apontam várias soluções para atenuar as complicações que se vivem no país. A produtora iemenita diz que é imperativo levar a cabo “um movimento sério da comunidade internacional para salvar o sistema de saúde em dificuldades desde o início da guerra e apoiar as autoridades de saúde com mais suprimentos para cercar a epidemia que começou a explodir no campo antes do desastre”. Já Algohbary afirma que a solução deve vir dos países ocidentais, que continuam a incentivar a morte de milhares de pessoas com a venda de armas: “Os EUA e o Reino Unido têm de parar de vender armas à Arábia Saudita, porque estão a alimentar a guerra”.
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