Agora mais do que nunca: não deveria existir um serviço público e universal de internet?

Agora mais do que nunca: não deveria existir um serviço público e universal de internet?

8 Abril, 2020 /
Foto de Markus Spiske via Unsplash

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Talvez com um serviço público e universal de internet, Portugal estivesse mais apto para o ensino à distância e trabalho remoto, sem precisar de recorrer a soluções que parecem saídas do século passado.

Os alunos do Ensino Básico (até ao 9º ano) vão ter aulas a partir da televisão na RTP Memória. O canal que recupera o excepcional arquivo da RTP vai recuperar desta vez a Telescola, uma ideia de escola por televisão que funcionou lá para os anos 1960. De 1960 a 2020 muita coisa mudou mas no que toca a comunicações a televisão continua a ser a mais universal delas todas. Graças à existência de um serviço gratuito de televisão, composto por seis canais (quatro dos quais de um serviço público de televisão), todos podem ter e ver televisão. Só têm de ter um aparelho e um descodificador que, regra geral, custa tuta e meia.

Mas então e a internet?

O Covid-19 encerrou escolas, universidades e politécnicos por todo o mundo. Em Portugal, as semanas antes das férias da Páscoa foram, para alunos e professores, períodos de habituação forçada a uma nova realidade: aulas à distância por videochamada e trabalhos de casa entregues através da internet. De repente, a comunidades escolar e académica viram-se obrigadas a aprender a funcionar com ferramentas como o Zoom ou o Moodle, e a tentarem manter a normalidade do seu trabalho através da internet… que nem todos têm.

Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) de 2019 dão conta de que a 80,9% dos agregados familiares têm internet em casa, sendo que se estivermos a falar de famílias com jovens até aos 15 anos essa percentagem sobre para 94,5%. Contas feitas, há ainda 19,1% de lares offline e 5,5% de alunos até 9º ano desconectados. Outra questão pertinente tem a ver com a qualidade do acesso à internet: o INE refere que só 78,0% dos agregados familiares têm acesso a banda larga, o que inclui cabo, ADSL e fibra. Mas, destas, só a fibra garante velocidades rápidas e ligações fiáveis, essenciais para a realização de aulas por videochamada – principalmente se, num mesmo lar, mais do que uma pessoa precisar de estar ligada em simultâneo.

De acordo com dados do final de 2019 da Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), só 67,3% das famílias subscrevem um serviço de fibra óptica, ou seja, 2,8 milhões de clientes. No entanto, a fibra chega a 78,7% das casas portuguesas; se lhe juntarmos o chamado HFC, ou seja, a fibra híbrida com cabo coaxial, a percentagem sobre para 84,5% – ou seja, há 5,3 milhões de lares com ligação à rede de alta velocidade. Os dados são animadores e, segundo a ANACOM, tanto as casas cabeladas com internet de alta velocidade como os acessos por essa via estão a aumentar de ano para ano. Contudo, a cobertura do território nacional está longe de ser uma realidade homogénia e justa e até no meio de cidades como Setúbal existem zonas sem essa opção.

Em 2015, o compromisso Agenda Portugal Digital definiu que, num prazo de 5 anos (ou seja, até 2020), toda a população teria acesso a internet de pelo 30 Mbps, pelo menos 50% das casas teriam 100 Mbps e que existiria coesão territorial e investimentos em áreas rurais que promoveriam igualdade de oportunidades. Mas a realidade é que zonas mais rurais e também bairros mais pobres, onde as operadoras não têm garantias de retorno financeiro, são particularmente afectadas por ligações à internet de baixa velocidade e/ou fiabilidade.

Porque deixou de existir financiamento público para a orientar a implementação de redes de fibra óptica no território e porque esse investimento é privado, Portugal tem estado à mercê das leis do mercado e de onde as empresas de telecomunicações (MEO, NOS, Vodafone) conseguem maior rentabilidade. Ainda assim, com a ajuda da União Europeia, tem existido um esforço para contrariar o abandono das áreas rurais; a DSTelecom é uma empresa privada que está a instalar infra-estrutura de fibra óptica em pontos mais remotos do país para depois ser alugada aos operadores para comercialização ao cliente.

A universalidade

Num país a duas velocidades, a internet não é rápida para quem a tem, muito menos universal. Se nas áreas metropolitanas de Lisboa ou Porto a cobertura de fibra óptica está próxima dos 100%, à medida que nos afastamenos desses pólos a realidade é outra, tornando difícil um país, de repente, adaptar-se ao ensino à distância e ao trabalho remoto a partir de casa. A universalidade é importante nestas situações, em que coberturas de 80% ou próximas de 100% não chegam – basta uma pessoa ficar de fora para existir um problema, para ser motivo de preocupação.

Contudo, não é só uma ligação à internet lenta ou inexistente que pode interferir com o modelo de ensino à distância, mas também a disponibilidade de equipamentos de acesso. Arlindo Ferreira, especialista em Estatísticas da Educação e autor do blogue Blog DeAr Lindo, realizou um inquérito online, tendo recolhido cerca de 400 respostas de Encarregados de Educação sobre os seus educandos: 20,8% não tem computador em casa. Um movimento da sociedade civil chamado #SomosSolução está a criar uma onda de solidariedade para resolver este problema onde ele existe; a ideia é oferecer material informático às escolas e alunos que dele precisem. A iniciativa deu frutos de imediato com a uma fabricante a disponibilizar 20 computadores portáteis e uma outra empresa a oferecer cinco impressoras a escolas.

O Ministério da Educação, entretanto, sugeriu também algumas soluções, como as escolas imprimirem as fichas de trabalho para os seus alunos, articularem com os CTT a entrega e levantamento dos TPCs ao domicílio ou criar exercícios que possam ser realizados numa chamada telefónica ou por SMS. Todas essas soluções vão coexistir com uma nova que deverá arrancar já no início do 3º trimestre, após as férias da Páscoa: uma nova Telescola. Através do canal RTP Memória, disponível na TDT, alunos até ao 9º vão ter aulas que servirão de complemento ao trabalho que os professores já começaram a desenvolver no final do trimestre passado.

E um serviço público e universal de internet?

Só a televisão e os correios são verdadeiramente universais. Através da TDT, é garantido que toda a gente tem acesso a seis canais de televisão (quatro deles do serviço público de televisão prestado pela RTP) e, no actual Estado de Emergência decretado em Portugal, se for necessário, as operadoras têm de garantir o sinal de televisão mas não o de internet. Também os correios estão garantidos; o chamado serviço postal universal está concessionado aos CTT e garante que, em todo o país, é possível enviar e receber correspondência, jornais e encomendas. Existiu ainda um serviço de telefone fixo, que garantia uma linha telefónica a qualquer pessoa independentemente da localização geográfica e por um preço fixo. Contudo, o serviço, prestado pela NOS, tinha apenas dois clientes à data de Abril do ano passado, pelo que por recomendação da ANACOM foi terminado em Maio desse mesmo ano. Mantém-se apenas as cabines telefónicas, serviço prestado pelo MEO.

Quanto ao telefone móvel ou à internet, não existe nenhuma universalidade. As operadoras não têm qualquer obrigação de assegurar a cobertura da totalidade do território nacional, mas, apesar de existirem encargos definidos com base o conjunto do território nacional e não as diferentes regiões, continuarão a existir zonas sem rede de telemóvel, sem 4G, sem banda larga fixa, sem fibra óptica.

É difícil imaginar toda a situação de pandemia que estamos a viver sem internet. Essa é a realidade de muitos. Não seria já altura de pensarmos num serviço público e universal de internet? Um serviço que desse a todos uma ligação rápida e fiável à internet e que coexistisse com a TDT ou a substituísse (afinal, dá para ver televisão online). Um serviço a que todos pudessem aceder com a mesma velocidade e qualidade, sem discriminação pela geografia em que vivem. Um serviço que desse acesso aos conteúdos da televisão pública da RTP Play, aos arquivos da RTP, à arte e espólio de museus de toda a Europa, ao conhecimento da Wikipédia, à informação digital de jornais e revistas de referência… Um serviço ajustado às exigências e comodidades do século XXI e que permita alargar horizontes além da programação televisiva, limitada e enquadrada. Talvez com um serviço público e universal de internet, Portugal estivesse mais apto quer para o ensino à distância como para o trabalho remoto, sem precisar de recorrer a soluções que parecem saídas do século passado.

Autor:
8 Abril, 2020

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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