Indignação rima com desinformação e alternativa não

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Ilustração de João Ribeiro/Shifter

Indignação rima com desinformação e alternativa não

É preciso mudar o chip, sermos mais construtivos e menos reactivos. Criticar o que nos incomoda de um ponto de vista articulado e não embarcar em manifestações vãs de indignação espontânea.

O tema da desinformação está mais do que disseminado. Depois de uma fase em que eram sobretudo os geeks da área dos media a preocupar-se com este fenómeno, o leitor médio está cada vez mais consciente e, consequentemente, motivado para o combater. Contudo, se todos concordam mais ou menos com o enquadramento da problemática, quanto à estratégia de combate, as opiniões divergem, como divergem as estratégias de disseminação.

O primeiro ponto de divergência caracteriza-se sobretudo pela ambivalência que certos sites, alegadamente informativos, assumem. Se, por um lado, criam uma base com notícias críveis ou minimamente fundamentadas, por outro, tornam-se especialistas na difusão de meias verdades ou factos articulados de forma indutora em erro que divulgam sem aceitar contraditório. Neste particular e em artigos simples, as estratégias comuns passam pela omissão de parte importante dos factos, pela abreviação de outros, seguida de uma acusação de tentativa de censura de quem tenta corrigir ou completar a informação veiculada, ou pela referência de fontes não creditadas num exercício de desresponsabilização jornalística. 

De outro modo, na dimensão da entrevista, outra estratégia que se tornou popular e expressiva, por exemplo, no Brasil através de youtubers como o MamãeFalei, é a do interrogatório confrontacional disfarçado de entrevista assertiva. Neste tipo de caso, é habitual que o entrevistador procure abordar os seus entrevistados em locais públicos, sem premeditação e cite factos não confirmados ou meticulosamente seleccionados para sustentar o seu ponto, partindo depois para a postura do tipo ‘não respondes, é porque é verdade’ e tentando explorar reacções mais emotivas de quem se vê interpelado por alguém que não conhece, nem reconhece.

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Em ambos os casos, as estratégias têm um objectivo simples: gerar matéria suficiente para pela indignação gerar apoio dos seus seguidores. A ideia recorre aos mais básicos instintos do posicionamento social, explorando o maniqueísmo clássico do ‘nós vs eles’, em que todos ‘eles’ se tornam adversários e o nós, por muito irrelevante que seja, se assume como único representante independente da verdade. Assim, um órgão de comunicação social deixa a sua postura socialmente neutra para assumir uma postura de protesto, um combate ideológico assumido mas tranvestido pela falsa neutralidade, construído não no campo das ideias mas no campo da sua negação. É através do outro que o agente se posiciona, levando os seus seguidores a dispensar uma verdadeira validação factual ou argumentativa – como se algo se tornasse verdade simplesmente porque se opõe ao establishment que nos conduziu até “aqui”. Nestes contextos, deixa de ser sequer relevante perceber a agenda editorial do órgão como, se quisermos, em partidos de protesto como o Chega o seu plano político se torna irrelevante.

Em todo o caso, é preciso enquadrar este tipo de estratégias no campo onde ocorrem, a internet, e introduzir aqui a importante acção automatizada levada a cabo por algoritmos, relacionando-a até com o modelo de negócio das redes sociais – as plataformas onde por norma os leitores menos ávidos de revistas e jornais consomem grande parte da informação. Este exercício, aparentemente simples, permite-nos perceber a forma como, na contemporaneidade e numa era onde a informação é cada vez mais omnipresente e de mais fácil acesso, a desinformação se tornou num perigo epidémico com uma forte componente viral.

Os modelos de negócio das principais redes sociais, colonizadoras de quase todo o espaço público online, têm linhas muito simples e que se traduzem na fórmula ‘quanto mais, melhor’. Portanto, são desenhadas por forma a fazer com que os seus utilizadores criem um vínculo afectivo forte com os contactos desta rede – através da partilha de emoções (boas ou más) –  e, para além disso, os algoritmos garantem que aquilo que chega à vista de cada um é o que mais interacção gerou. Sem complexificiar o evidente, esta estrutura de moderação é a tradução mais pura do que vulgarmente se chama populista, com a agravante de em momento algum este populismo ser alvo de uma regulação forte ou sequer de uma crítica que surta efeito. Foquemo-nos neste segundo ponto, da crítica.

Se outrora um artigo de um jornalista, imagine-se, do Expresso, podia ser rebatido por um outro do Público gerando um debate num espaço público partilhado, hoje em dia o fenómeno não ocorre necessariamente assim, com as funcionalidades das redes sociais a criarem câmaras de eco onde opiniões se insuflam, onde teorias se articulam, e onde grupos de pessoas se isolam criando circuitos de legitimação acrítica das suas ideias. Exemplo disso são os grupos de Facebook onde abertamente se partilham mensagens racistas, apelos à violência, fora da atenção e do crivo a que está sujeito o espaço público – e que aparecem no feed de cada um com a mesma ponderação que uma notícia de um órgão de comunicação social sujeito ao escrutínio e ao cumprimento deontológico.

Se é verdade que a internet permitiu que se criassem alternativas de comunicação social e que este quarto poder se diluísse de uma forma mais democrática, permitindo a entrada de novos agentes sem necessidade de adquirir licenças de emissão televisiva, radiofónica, ou sem os custos da impressão de um meio em papel, é preciso perceber que essa realidade está altamente sujeita aos critérios definidos pelos meios em que circulam. Se, por exemplo, um quiosque se interessa pela maior representatividade do mundo, adquirindo diversos jornais e revistas, de diversas proveniências, na experiência de individualidade prometida pelas redes sociais a lógica é perfeitamente invertida. Nos feeds vemos conteúdo com o qual concordamos previsivelmente, ou com o qual concordamos radicalmente – conteúdo que gere reacções mais do que reflexões. E é aqui que chegamos à rima do título ou, por outras palavras, à forma como a indignação é hoje em dia um dos maiores motores de partilha de desinformação ou informação pouco credível – informação de protesto.

Nos últimos dias, tornou-se popular especialmente no Twitter um vídeo de uma entrevista feita ao estilo provocatório acima descrito. Imediatamente, as reacções se dividiram ao jeito maniqueísta entre os que estavam contra a atitude do entrevistador e os que estavam contra a atitude do entrevistado. As críticas ao entrevistado – acusado de empurrar o entrevistador – levavam à legitimação da entrevista, onde era suposto um facto não confirmado e adiantado por um blogue de credibilidade reduzida. Não obstante à validade deste conteúdo que não me cabe a mim avaliar, foco a reflexão na consequência da indignação – relembrando os critérios populistas que pontuam, repito, o principal meio de consumo de informação do cidadão comum.

Se os elogios ao trabalho em questão fazem-no vingar junto do seu meio – e legitimamente – é preciso apontar o papel das indignação e a forma como esta apenas contribui para que o conteúdo se propague ainda mais e ganhe mais crédito aos olhos dos algoritmos das redes sociais. Em suma, é preciso percebermos que, a partir do momento em que se joga nas redes sociais actuais – em que o engagement é a métrica preferida –, as regras são sempre as do populismo; por isso, para combater a desinformação ou, enquadre-se de outra forma, a informação extremada, menos reflexiva e mais protestante, é preciso criar sinergias em torno daquilo que são as boas alternativas, mais do que gerar euforia em torno daquilo que nos indigna. Até porque, grande parte das publicações criadas nesta nova era vivem de uma relação directa entre os cliques que recebem e o dinheiro de que dispõem.

É preciso mudar o chip, sermos mais construtivos e menos reactivos. Criticar o que nos incomoda de um ponto de vista articulado e não embarcar em manifestações vãs de indignação espontânea. Porque se todos sabemos que estamos numa fase de transição e mudança, não podemos apenas apontar o que está mal deixando um espaço vazio onde apenas o entretimento inerte tem razão de ser; é preciso unirmo-nos em torno das alternativas sérias, mesmo que seja para as criticar. Só essa via permitirá a renovação de um tecido social pobre e a adopção de posturas que privilegiem a ponderação ao protesto, o bom senso à indignação.

Indignação rima com desinformação e alternativa não. Para a construção de um espaço público mais construtivo e, por isso, saudável, é fundamental uma massa crítica e devidamente informada, menos indignação e a procura (ou criação) de alternativas de comunicação social que de forma desinteressada mas honesta pluralizem perspectivas, debates e ideias.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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