Re-utilizando a metáfora proposta pelo colectivo de curadores The Decorators para o Circuito Ilha do festival, podemos encarar o Walk&Talk como uma expedição. Não só à ilha que lhe dá lugar como ao mundo da arte contemporânea para que nos abre portas — num espírito dialético que misture a procura da razão iluminista com a procura do sentido afectivo proposto pelos curadores.
Na ilha de São Miguel, em pleno Atlântico, o Walk&Talk deu espaço para que mais de duas dezenas de artistas mostrassem a sua proposta de interpretação em resposta a um contexto tão específicos. Tanto artistas portugueses, como internacionais, ou mistos – como é o caso do colectivo The Decorators, onde figura Mariana Pestana, ou da dupla de performers Lander&Jonas, do brasileiro Lander Patrick e do português Jonas Llllll.
Convidado a descobrir tudo isto, partilharei neste texto aquelas que pelo contexto, abordagem, aspecto final ou outra razão que tentarei explicar me suscitaram interesse. A escolha será sempre subjectiva, mas quando o tema da escrita é a arte é impossível fazê-lo de outra forma; de fora ficarão peças não por falta de interesse ou qualidade mas por força da necessidade de fazer opções, não só no texto como também no fim-de-semana em que pudemos percorrer a ilha e conhecer as peças.
Diana Vedrascu
Natural da Roménia mas sediada em Paris, a artista Diana Vidrascu veio até ao arquipélago dos Açores apresentar Vulcão, uma vídeo-instalação e Timeshores, uma exposição complementar. Em cerca de 20 minutos de vídeo, em Vulcão, Vidrascu mistura momentos de experimentação abstracta com o formato clássico do documentário narrativo, resultando numa intrigante película que incita o espectador à repetição e o introduz às particularidades geológicas do arquipélago, assente na fronteira de três placas tectónica. Produzido de modo analógico e com base nas 24 frames por cada segundo, a artista procura ainda evocar os permanentes tremores físicos que interrompem o contínuo do tempo mesmo sem que as pessoas se apercebam, tal como acontece perante o vídeo com um olhar destreinado.
Gonçalo Preto
Se neste caso o artista não foi bem uma descoberta, a peça e o seu contexto justificam a menção que aqui fazemos. Gonçalo Preto esteve desde o ano passado em residência artística na ilha de São Miguel, a convite do festival e apresentou Limbo, uma pintura que ganha forma quase escultórica pela sobreposição de camadas distantes de vidros que se fundem ao olhar criando uma imagem única em cada perspectiva. A peça que tem como protagonistas plantas e aves da região surge em contexto expositivo numa das salas do maravilhoso Museu Carlos Machado o que a informa e valoriza. O Museu contempla um lado religioso, onde expôs RITA GT a sua reflexão sobre o capote, e um outro dedicado à história natural onde podemos observar centenas de espécies de animais e uma colecção de herbários com mais de 200 anos. Fruto da residência que lhe permitiu aprofundar a visita, Gonçalo Preto teve acesso a alguns desses herbários, onde ainda permanecem exemplares secos das plantas, e foi a partir daí que criou a peça que neste contexto foi “devolvida” ao museu, ocupando uma das salas do percurso dedicado à história natural.
Mónica de Miranda
Nasceu no Porto mas divide a sua vida entre Portugal e Angola; para apresentar no Walk&Talk não escolheu debruçar-se directamente sobre as particularidades da ilha mas antes aproveitar o contexto para incentivar a uma reflexão mais ampla. Mónica de Miranda propôs-se a trabalhar sobre o famoso hotel devoluto Monte Palace, um ícone da ilha e testemunho material da vida social em seu redor para a partir daí criar contrastes, em camadas, entre os diferentes elementos que habitam o espaço e condicionam o nosso olhar — edifícios, memórias, histórias, pessoas. Com o Monte Palace como pano de fundo, o seu corpo como referência, Mónica de Miranda criou In(sul)ar, uma instalação em três partes. A primeira, uma fotografia que nos apresenta a figura feminina que nos guiará na história; a segunda, uma instalação sonora que nos convida à abstração e inevitavelmente ao sonho; e a terceira, um vídeo onde estes planos se fundem, quer na película, quer na disposição. Entre o espectador e a projeção, Mónica de Miranda dispôs plantas como que a formar uma barreira, como uma lembrança constante que entre o lado mais decadente da prática social — representado por uma certa ganância que transparece da história do hotel falido — e o lado mais individual, da experiência de cada um, está sempre, quieta e aparentemente imutável uma camada natural que nos permite ver mas sem total clareza.
Jonas & Lander
A arte contemporânea não se coaduna com uma categorização constante de cada peça e actuação e o trabalho de Jonas & Lander é um bom exemplo disso. Apresentam-nos Lento e Largo, uma performance – nomenclatura mais elástica das artes contemporâneas porque de facto as suas criações não caberiam em nada que fosse mais restrito. Bailarinos de formação mas com percursos diversos, Jonas Lopes e Lander Patrick encenaram em palco um momento, com cerca de uma hora e meia, absolutamente surreal. Num ambiente inspirado em Bosch, de chão vermelho irrompido por uma piscina de água branca, 5 performers, 5 drones e 2 robôs com menos de meio metro coreografam uma frenética viagem que sem propôr directamente uma temática nos convida a uma reflexão mais ampla. Como se ouviu nas poucas palavras ditas ao longo da peça: é normal que algumas presenças sejam indesejadas porque nos tornam mais conscientes dos problemas; este pode ser um desses exemplos para mentes menos abertas, que não estejam predispostas a encontrar o sentido onde ele aparentemente não existe ou a conviver com a sua inexistência ao longo do espéctaculo. Lento e Largo traz para palco corpos quase nus, ora em comportamentos humanos, ora numa estranha forma de se locomover que nos remetem para o princípio da vida, vinda da água (lembrem-se da piscina), coordenando estes momentos estão os pequenos robots, pairando sobre tudo isto os drones. O resultado só visto, por isso, em tendo oportunidade: enconstem-se na cadeira, relaxem e apreciem.
Pedro Lino e Philippe Lenzini
O trabalho de Pedro Lino, musicado por Philippe Lenzini e enquadrado na proposta curatorial dos The Decorators surge nesta lista por uma diversidade de razões. Porque a exploração em vídeo de Pedro Lino sobre os mistérios negros da ilha de São Miguel é uma interessante peça audiovisual, porque Philippe Leibniz o musicou ao vivo e porque tudo isto aconteceu enquanto o público se banhava numa piscina de água quente num hotel na zona das furnas. Parece mentira mas não é e representa o espírito do festival – os mais de 80 inscritos para a Expedição terminaram a exploração num relaxante banho quente ao som da guitarra eléctrica distorcida de Philippe e perante as imagens abstractas quase hipnóticas capturadas por Pedro Lino, das águas lamacentas e fumegantes das furnas, até imagens de arquivo de outros tempos, passando por uma série de estruturas geológicas diversas… os tais mistérios nas rochas negras.
A terminar
Depois de feita e redigida a seleção, percebe-se ainda melhor a sua insuficiente. O trabalho de RITA GT, que envolveu uma procissão re-interpretada, ou o de Maria Trabulo, que espalhou cartazes pela ilha que fotografámos mesmo antes de saber que eram parte do festival, estariam provavelmente na lista caso a nossa visita tivesse coincidido com a apresentação das suas peças – ambas com uma forte componente performática.
Do circuito ilha também haveria mais por destacar, por diversos motivos: por exemplo, Inês Neto dos Santos serviu a sua obra de arte – utilizou a técnica de fermentação como processo de criação artística – e os Practice Architecture reinventaram algo tão marcante da sociedade portuguesa como o futebol; num jogo entre duas equipas do Futebol Clube Vale Formoso, no estádio da Vila das Furna, as regras e os rituais deste desporto tão conhecido foram reinventadas: as celebrações substituídas por desistência encenada, a mostrarem de cartões pelo atirar de flores e os fumos coloridos das claques trocados por uma névoa branca a relembrar as fumarolas.
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