Quarta-feira era o dia marcado pela Assembleia Legislativa de Hong Kong para debater a polémica Lei da Extradição, que abre a possibilidade de qualquer pessoas suspeita de cometer um crime ser enviada para a China para ser julgada, e que é vista como um dos maiores desafios à autonomia da região face ao domínio crescente de Pequim. Várias manifestações ocupavam as ruas da cidade desde o passado Domingo, mas na manhã da votação do diploma, milhares de pessoas ocuparam em força as zonas junto aos edifícios governamentais, pedindo Democracia. Os organizadores falaram em mais de um milhão de pessoas na rua e as forças policiais admitiram apenas a participação de 240 mil.
The view in Central tonight. pic.twitter.com/n6lakjvpY8
— Louisa Lim (@limlouisa) June 12, 2019
Ao contrário dos outros dias, em que os protestos se mantiveram pacíficos, desta vez a polícia tentou dispersar à força os manifestantes que ocupavam as ruas em torno da assembleia. Recorreram a canhões de água e a gás lacrimogéneo. Segundo a imprensa local, até o final da tarde, 22 pessoas feridas tinham sido levadas aos hospitais da cidade.
Ao fim de algumas horas de tensão entre manifestantes e polícia, uma nota de imprensa do Governo informou que a sessão de debate no Conselho Legislativo, que devia ter começado às 11 horas (4 horas em Portugal continental), foi adiada para “hora posterior a ser determinada”.
A atmosfera dos protestos desta quarta-feira lembrou a chamada “Revolução dos Guarda-Chuvas”, a gigante onda de contestação de 2014, que também levou milhares de pessoas, sobretudo estudantes de liceu e universitários, a ocuparem a metrópole durante meses. Tal como há cinco anos, os protestos deixaram a cidade quase em estado de sítio. Centenas de lojas fecharam, foram convocados boicotes às aulas e vários sindicatos estão a organizar greves.
— Nathan VanderKlippe (@nvanderklippe) June 12, 2019
O Governo de Hong Kong já tinha apelado aos manifestantes que “dispersassem e respeitassem a lei”, mas horas depois de ter sido anunciado o adiamento do debate que motivou a mobilização, milhares de pessoas continuavam concentradas junto às instalações do Governo, dispostas a permanecer no local até que o executivo recue na intenção de avançar com as alterações à lei.
Mas o que diz afinal o documento que está a deixar Hong Kong de novo em alvoroço, interpretado num contexto em que Pequim está cada vez mais a limitar as liberdades e a autonomia de Hong Kong, com o objectivo de exercer a sua soberania de uma forma efectiva?
A lei da polémica
Proposta em Fevereiro e com uma votação final prevista para antes do final de Julho, a lei visa permitir que Executivo e tribunais de Hong Kong processem pedidos de extradição de jurisdições sem acordos prévios, como é o caso da China continental. Em teoria, os tribunais locais analisariam os casos individualmente e poderiam usar o poder de veto para impedir certas extradições no território semi-autónomo da China e antiga colónia britânica.
Os defensores da lei argumentam que se trata apenas de suprir uma “lacuna” no ordenamento jurídico do território e que o objectivo é impedir que a ilha se torne num “paraíso para criminosos internacionais”.
Os opositores dizem temer que Hong Kong fique à mercê do sistema judicial chinês como qualquer outra cidade da China continental e de uma justiça politizada que não garanta a salvaguarda dos direitos humanos. No limite, a aprovação da lei pode pôr em causa o trabalho de activistas políticos, jornalistas ou empresários perseguidos pelo regime chinês.
Esta oposição à lei da extradição estende-se a vários sectores da sociedade de Hong Kong, da comunidade jurídica a alguns líderes empresariais, passando pelos grupos de defesa dos direitos humanos e pelos partidos pró-democracia. Até o poderoso sector financeiro, que não costuma apoiar manifestações que ponham em causa a estabilidade da bolsa, olha com preocupação para a possibilidade, uma vez que as garantias legais asseguradas pelo ordenamento jurídico de Hong Kong – que respeita o Estado de Direito, a separação de poderes, garante julgamentos justos, e estabilidade normativa – são um dos principais factores de atracção de investimento estrangeiro.
Para insistir na urgência do debate, o Governo de Pequim está a usar o caso de um homem de Hong Kong que no ano passado assassinou a namorada durante uma viagem a Taiwan. De regresso a Hong Kong, foi detido mas por não poder ser extraditado para Taiwan, foi apenas julgado pelo uso indevido do cartão de crédito da sua vítima, e não por homicídio.
A chefe do governo local, Carrie Lam, que conta com o apoio do Partido Comunista Chinês, garantiu que não vai desistir de aprovar a lei sobre a extradição. “Que esta questão é controversa, é indiscutível. Explicar [a lei] e a comunicação pode ajudar, mas podemos não conseguir eliminar completamente todas as preocupações, ansiedades e controvérsias”, afirmou.
A questão da autonomia
Entre os opositores à lei da extradição persiste também o receio de que a sua aprovação seja mais um passo para tornar Hong Kong em apenas mais uma metrópole chinesa. É que se Hong Kong tem sido palco de intensa agitação política na última década devido à preocupação com a crescente interferência de Pequim nos seus assuntos internos, a lei em causa é vista como mais um passo nessa direção.
A transferência da soberania britânica sobre Hong Kong e Macau para a República Popular da China, em 1997 e 1999, respetivamente, decorreu sob o princípio “um país, dois sistemas”, que concedia a ambas as regiões https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativas um elevado grau de autonomia, a nível executivo, legislativo e judiciário, sendo o Governo central chinês responsável pelas relações externas e defesa. Hong Kong tem até uma mini-constituição própria chamada Lei Básica.
Mas nos últimos anos, Pequim tem tomado várias decisões que põem em causa essa liberdade. Em 2016, um partido foi proibido e os seus deputados, pró-independência, foram impedidos de tomar posse. Cinco livreiros de Hong Kong foram detidos e levados para a China também em 2016, o correspondente do Financial Times na ilha não viu o seu visto renovado e vários líderes dos protestos de 2014 foram considerados culpados de conspiração e incitação à perturbação da ordem pública, e enfrentam penas que podem ir até aos sete anos de prisão. Tudo decisões tomadas por Pequim, que tem a prerrogativa para interpretar a Lei Básica.
A liderança chinesa não esconde que a reunificação com Hong Kong é o único desfecho viável. Na primeira visita que fez ao território, no Verão de 2017, o Presidente chinês, Xi Jinping, disse que é “absolutamente inadmissível” questionar a soberania de Pequim sobre Hong Kong. Importa relembrar que a Lei Básica de Hong Kong tem um prazo de 50 anos, estabelecido em 1997. O tal “elevado nível de autonomia” para a ilha se auto-governar, que pretendia assegurar vários direitos e garantias, como a liberdade de imprensa ou a existência de um ordenamento jurídico próprio, termina oficialmente daqui a 28 anos, em 2047 – e o que vai acontecer com a autonomia de Hong Kong depois disso não é claro.
Já este ano foi inaugurada a maior ponte do mundo com 55km, ligando, precisamente, Hong Kong à China continental, numa acção que muitos veêm como uma espécie de materialização da vontade da China de se aproximar daquela ilha para que possa exercer a sua soberania. O caso é especialmente curioso uma vez que em Hong Kong os condutores seguem o preceito britânico de conduzir à esquerda, enquanto na China continental se conduz à direita.