De Soberano a Símbolo: o lugar do Imperador no Japão e a nova lei da sucessão

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De Soberano a Símbolo: o lugar do Imperador no Japão e a nova lei da sucessão

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O agora Imperador-emérito Akihito tornou-se no primeiro a abdicar do título em mais de 200 anos – 202, para ser exato –, cedendo o lugar ao seu filho mais velho, Naruhito.

 

O Trono de Crisântemo mudou de dono. O agora Imperador-emérito Akihito tornou-se no primeiro a abdicar do título em mais de 200 anos – 202, para ser exato –, cedendo o lugar ao seu filho mais velho, Naruhito.

O Trono dos Homens

Em junho de 2017, a Dieta aprovou uma lei especial que permitiu a resignação do Imperador, que até então só desocuparia o lugar em caso de morte. Após a decisão unânime da Câmara Alta (235 votos contra 0), já depois de a proposta de lei ter sido debatida na Câmara Baixa, ficou legislada a permissão de resignação do então Imperador Akihito.

Segundo a Lei de Sucessão, o trono deve sempre ser ocupado pelo filho (forçosamente masculino) mais velho do Imperador. De resto, apenas os filhos de membros masculinos da Família Real são considerados herdeiros do trono. Foi por isso apontado o então-Príncipe Naruhito.

Esta limitação a homens é motivo de polémica e debate no Japão. A contestação aumentou a partir de 1999, quando a Princesa Masako, mulher do Príncipe Naruhito, teve um aborto espontâneo. Segundo os médicos, terá sido devido ao stress da vida imperial. Já em 2004, a Princesa deixou de aparecer em público. Na altura não havia um sucessor, e especulou-se que a Família Real estava a pressionar Masako para que engravidasse novamente – já tinha uma filha, a Princesa Aiko.

Foi do outro lado da Família Real que saiu a solução. Em 2006, a Princesa Kiko e o Príncipe Fumihito anunciaram o nascimento do primeiro filho – depois de duas filhas –, e Masako saiu finalmente à rua.

Ainda assim, as complicações em torno do trono não se ficam por aqui. Existe ainda a possibilidade de as filhas dos Príncipes Herdeiros perderem o estatuto de membros da Família Real. Por exemplo, se se confirmar o casamento da Princesa Mako com Kei Komuro, um advogado, agendado para 2020, ela deixará de fazer parte da Família Real – como esclarece o Artigo 12.º da Lei da Casa Imperial.

Agora que foi entronizado o 126.º Imperador do Japão, importa perceber o que é o Imperador. Para tal, recuemos quatro séculos.

De Soberano a Símbolo

Nos séculos XVII e XVIII, um movimento anti-confucionismo emergiu na comunidade académica japonesa. Kokugaku – como ficou conhecido – tinha como matriz o fim da sujeição dos pensadores japoneses às ideias confucionistas, instaurando assim uma nova ordem em que o Japão liderasse a produção cultural e filosófica no Extremo Oriente.

No século XIX, inspirados nesta filosofia pré-imperialista, teóricos do sonnō jōi insurgiram-se contra o governo feudal-militar de Tokugawa Shogunate (1603-1867), a fim de tornar o imperador na autoridade máxima do Japão, a quem todos deviam lealdade, e que levaria a nação a conquistar grandes feitos.

No período final do Tokugawa Shogunate (1853-1867), a política isolacionista (sakoku) do regime feudal e o imobilismo social resultante do feudalismo eram vistos como obstáculos à modernização. Em 1867, o último shōgun, Tokugawa Yoshinobu, renunciou ao cargo e tornou públicas as debilidades do regime. Nos dois anos que se seguiram, a Guerra Civil de Boshwan (1868-1869) opôs os ainda apoiantes do regime e as forças reacionárias imperialistas. A derrota dos pró-shogunate deu início a uma nova ordem política no Japão.

Ao mesmo tempo, as elites intelectuais e políticas japonesas manifestavam uma grande admiração pelos ideais ocidentais, sobretudo pela ideia de uma constituição que conferisse verdadeiros e invioláveis poderes ao chefe de Estado – o imperador. Nas duas décadas que se seguiram, a nova oligarquia japonesa estudou formas de concretizar esse projeto.

Kido Kōin foi a primeira pessoa a propor um projeto de Constituição liberal, em que os poderes do imperador não seriam absolutos, em que a sua ação estivesse sujeita a checks e em que o povo estivesse protegido contra tendências despóticas. Mas o Príncipe Itō Hirobumi tinha outras intenções.

Numa viagem a Berlim, em 1882, o Príncipe encontrou-se com Lorenz von Stein, que lhe sugeriu uma Constituição feita à imagem do modelo prussiano, ou seja, concentração de poderes – política externa, forças armadas e legislação – na figura máxima de autoridade. Seguiu-se depois uma visita a Viena, onde se reuniu com Rudolf von Stein, que lhe propôs um constitucionalismo burocrático, isto é, um autoritarismo em que o Estado e o Imperador convergissem, e em que os ministérios prestassem contas ao Imperador e não ao Parlamento.

Ao redigir a Constituição, Hirobumi teve a ajuda de Gustave Boissonade e Hermann Roesler. Roesler acreditava que a melhor solução era uma monarquia constitucional, em que o Parlamento fosse um concelheiro do Imperador, que teria total autonomia para governar.

Em 1889, o documento final foi aprovado sob a designação de Constituição Meiji. Segundo Hirobumi, “a lei não teria poder para responsabilizar o Imperador”. O Artigo 4.º da Constituição confirma isso mesmo: todos os poderes soberanos estão concentrados no Imperador, que os exerce de acordo com o previsto na Constituição.

Este novo período da história do Japão permitiu ao Imperador Meiji iniciar aquela que seria a “Revolução Industrial” japonesa, e que tornaria o país numa das maiores potências à escala mundial, à custa de repressão interna, invasão e colonização de países vizinhos – entre os quais a China e a Coreia.

Em agosto de 1945, após a aceitação da Declaração de Potsdam, o Japão consentiu que, para a sua democratização, a Constituição teria de ser reformulada. Em janeiro de 1946, Washington lançou a Reforma SWNCC 228, que traçou os objetivos gerais da revisão constitucional. Três das principais emendas foram a redefinição do papel do povo (de sujeitos para cidadãos livres), a limitação dos poderes do Imperador e o reforço do poder executivo do Primeiro-ministro, do seu naikaku (cabinet) e da Dieta.

Os EUA tinham pressa em normalizar a situação do Japão, por isso estabeleceram, no início de fevereiro, uma assembleia constitucional para iniciarem a redação do projeto de Constituição. Foi a primeira vez na história que um vencedor reescreveu os princípios legais do vencido.

No final desse mês, o Imperador Hirohito aprovou (alegadamente) o projeto de Constituição. Em abril este foi levado à Dieta que, depois de algumas alterações – esclarecimento acerca da soberania popular, da eleição do Primeiro-ministro e da universalidade do sufrágio –, foi definitivamente aprovado em outubro. Em novembro foi promulgada pelo Imperador e, no dia 3 de maio de 1947, entrou em vigor.

O Papel Reconciliador de Akihito

Com a nova Constituição, a figura do Imperador passou a ser meramente simbólica, como esclarece o Artigo 1.º: “O Imperador deverá ser o símbolo do Estado e da união das Pessoas; a sua posição provirá da vontade popular, onde reside o poder soberano.”

No seu último discurso enquanto Imperador, Akihito destacou a natureza não-executiva do seu cargo, agradecendo às pessoas “a aceitação e o apoio enquanto símbolo”. Então, que faz o Imperador?

As tarefas do Imperador dividem-se em palacianas e não-palacianas. No Palácio, o Imperador está encarregue de investir o Primeiro-ministro e o seu cabinet, de receber outros chefes de Estado, de comunicar o discurso de Ano Novo, de fazer condecorações, entre outras atividades, como chás, audiências e festas nos Jardins Imperiais de Akasaka.

Fora do Palácio, o Imperador visita cerimónias de entrega de prémios em Tóquio, acontecimentos regionais como o Dia da Árvore, locais destruídos por desastres naturais, antigos cenários de guerra e empresas. Naturalmente, para alguém de 85 anos que tem visto a sua saúde degradar-se desde 2003, o corpo já não consegue acompanhar a exigência da agenda imperial.

Nos últimos anos da sua era, impossibilitado de cumprir as suas funções enquanto símbolo, Akihito serviu-se sobretudo de declarações públicas transmitidas nacionalmente para comunicar com a população japonesa. Apesar de não ter qualquer poder real, o agora Imperador-emérito foi uma voz importante na manutenção da coesão do Japão. Em 2011, por exemplo, após o acidente nuclear de Fukushima, utilizou pela primeira vez o vídeo como forma de comunicar com os japoneses – num momento de desespero por não poder ir aos locais afetados.

“Emperor Akihito” by kureyonphoto is licensed under CC BY-NC 2.0

O Futuro do Imperador Naruhito

As atividades do novo Imperador não serão muito diferentes e começarão oficialmente no dia 4 de maio, quando agradecer à população a entronização. Ainda em maio, mas no dia 25, Naruhito receberá Donald Trump no Palácio Imperial. Em junho, marcará presença no Festival Nacional de Plantação de Árvores, na prefeitura de Aichi; no outono, terá na agenda a visita à Convenção Nacional de Florestamento (prefeitura de Akita), ao Festival Nacional de Desportos (prefeitura de Ibaraki) e ao Festival de Cultura Nacional (prefeitura de Niigata).

A primeira viagem internacional terá ocasião em junho, quando se deslocar à Polónia e à Finlândia, e depois ao Peru e à Bolívia, a meio de julho. Os eventos mais aguardados serão certamente os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2020, competições cuja inauguração é oficializada pelo chefe de Estado do país anfitrião.

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