A Capital: um “House of Cards” à Europeia sobre os meandros da União

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A Capital: um “House of Cards” à Europeia sobre os meandros da União

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Acabado o livro, fica a incompreensão: com tudo isto, como nunca houve um House of Cards de Bruxelas, um Mr. Smith Goes to Brussels? Sabemos muito sobre a arquitectura política americana só pelas séries que constantemente consumimos. A União deveria considerar seriamente pedir uma ajuda a um dos gigantes culturais.

(Nota prévia: este texto contém ‘spoilers’ do livro A Capital, de Robert Menasse.)

EPP reúne o seu congresso em Budapeste e o candidato austríaco desaparece misteriosamente. Perante esse cenário, é eleito o candidato húngaro, um nacionalista que quer proteger o sangue puro húngaro. Anti-semita, claro. A eleição do candidato húngaro torna-se possível pela anuência dos delegados alemães e neerlandeses, que já tinham secretamente garantido os seus interesses através de tratados bilaterais com a China. Uns meses depois, não há mais EPP.

Talvez tudo isto soe estranho. Talvez soe familiar, também. Neste caso, EPP é mesmo a associação de Produtores de Porcos Europeus, European Pig Producers. Uma das pequenas histórias no interior do genial romance de Robert Menasse, A Capital.

Esta é a ferramenta que faltava à União Europeia. Há anos que a comunicação da União Europeia se vira e revira para perceber como explicar uma arquitectura institucional altamente complexa. No espaço de 400 páginas, Menasse permite perceber muito melhor a máquina institucional de Bruxelas do que qualquer explicador que tenha lido (e, acreditem, tenho lido muitos). Ao usar histórias de vida de funcionários da União, de lobistas poderosos ou de académicos desesperados com o permanente estado de desprezo a que são votados, ficamos a saber que as relações entre funcionários dos vários órgãos são tensas, que a melhor maneira de paralisar um projecto é requerer a sua apreciação pelo Conselho, ou que a ascensão na hierarquia depende muito da nacionalidade, mas não necessariamente da forma mais óbvia. Em diálogos entre personagens, a exemplificação simples de alguns dos principais dilemas da União:

“– A história mostra que sempre foi desaparecendo aquilo que parecia eterno e….
– Estás a referir-te à UE?
– Não, refiro-me aos interesses nacionais. É absurdo os Estados europeus criarem um mercado comum, mas não agirem como comunidade no tocante ao comércio externo.”

Este é um livro que grita contra as pequenas grandes maleitas da União, pondo na voz de uma das personagens o desespero perante a narrativa de crise desacompanhada, sem qualquer proposta positiva a apresentar. Curiosamente, é num grupo de trabalho coordenado por uma personagem portuguesa que se dá o clímax europeísta, num discurso que propõe a construção de uma capital para a Europa, uma capital que possa estar, simultaneamente, cheia de história e livre de influências nacionais. Um local supranacional que, sentindo o legado histórico, faça avançar a União.

Haverá esse local livre de influências nacionais? Outro dos pontos mais interessantes deste livro é precisamente a referência constante aos detalhes nacionais de cada personalidade. Unidas a trabalhar em Bruxelas estão dezenas de identidades nacionais e regionais que não se apagam, mas antes melhor se compreendem. Deixo-vos um exemplo:

“Do que Martin mais gostava era do facto de, no caminho de casa para o escritório, se irem de modo espontâneo formando pequenas comunidades. Quando saía de casa de manhã, deparava-se o mais tardar no Boulevard Anspach com o primeiro colega de trabalho, depois com o segundo, até por fim formarem com frequência um pequeno pelotão de uns oito ou dez ciclistas. Os funcionários alemães passavam pelo pelotão em bicicletas de corrida, pedalavam até ao trabalho com roupa de ciclismo, como se tivessem de ganhar algum critério, e por isso eram quase todos alemães aqueles que, antes do trabalho, usavam os balneários na cave do edifício. Em ritmo descontraído, nas suas omafietse, seguiam os holandeses, ou ainda os colegas dos países românicos; pedalavam confortavelmente de fato completo, sem sequer transpirarem, seguiam ao pé uns dos outros, iam conversando sobre o que de mais recente havia em termos de rumores, intrigas e saltos na carreira….”

Do vestuário à escolha das bebidas, tudo serve para reflectir estereótipos (e para os desconstruir). A certa altura, há um debate entre peritos de várias nacionalidades, em que o alemão pede ao austríaco moderação, um perito grego em finanças públicas explica que a Grécia precisa de mais cortes, um francês lamenta a perda de poder do eixo franco-alemão e um Romeno imediatamente concorda, e por fim acabam todos a concordar exceto dois alemães, que discordam entre si sobre a forma como a Alemanha deve exercer a liderança da Europa. Realismo mágico ou hiper-realismo?

A burocracia da União é outra constante que está bem retratada. Podemos olhar o desespero de um funcionário da Comissão, cujo dia-a-dia é explicado assim: “embalavam velhos programas de ajuda, há muito existentes, com novos títulos e novas condições, em novas combinações de novos programas de ajuda, dando assim, com base em orçamentos velhos, origem a novas lutas de distribuição de meios, que por sua vez conduziam a novas estatísticas, nas quais novas percentagens e curvas gráficas demonstravam novas dinâmicas”. No final do livro, ficamos a perceber que talvez o sentimento dos funcionários da União não seja muito diferente do sentimento dos eleitorados quando se trata de desesperar pela falta de avanços significativos. A grande diferença para os eleitorados está na capacidade de perceber melhor (e de aceitar melhor a ignorância) os detalhes da União e dos povos que connosco a partilham.

O livro é tão bom que, a certa altura, me esqueci da história central que o torna um romance. De repente, damos por nós a vibrar com a reforma da União ou a tremer com a possibilidade de fracasso de um projeto da Comissão Europeia. Acabado o livro, fica a incompreensão: com tudo isto, como nunca houve um House of Cards de Bruxelas, um Mr. Smith Goes to Brussels? Sabemos muito sobre a arquitectura política americana só pelas séries que constantemente consumimos. A União deveria considerar seriamente pedir uma ajuda a um dos gigantes culturais para ter os cidadãos ambientados às suas guerras entre Parlamento e Conselho, para saber mais sobre o bom e o mau do lóbi, e para reparar que, afinal, não há grande diferença entre a democracia europeia e a democracia nacional (os cargos de nomeação em Bruxelas são diferentes dos cargos de nomeação nacionais em quê, exatamente?)

É no próprio livro que podemos encontrar citada uma frase de Jean Monnet: “Se pudesse voltar a fazer tudo do início, então começaria pela cultura.” No dia 26 de Maio, quando exercer o meu direito ao voto, vou certamente lembrar-me deste livro, e desejar que a próxima legislatura me traga mais exemplos destes.

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  • Jorge Félix Cardoso

    Estudante perpétuo, atualmente a completar o curso de Medicina na U.Porto e o mestrado em Filosofia Política na U.Minho. Apaixonado por perguntas e desconfiado das respostas. Ávido leitor, criador das newsletters "Qu'ouves de Bruxelas" e "Ementa do Jorge". Investigador do AI4Health, CINTESIS. Co-fundador do FÓRUM Diplomacia da Saúde. No Twitter em @jfelixcardoso.

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