Na Ucrânia, a realidade ultrapassou a ficção e um actor tornou-se presidente

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Na Ucrânia, a realidade ultrapassou a ficção e um actor tornou-se presidente

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Quem é o novo Presidente da Ucrânia, um actor de 41 anos sem experiência política, conhecido por ter interpretado aquilo que agora lhe aconteceu na realidade: um "Presidente por acidente."

Em Outubro de 2015 estreava na Ucrânia a série Слуга народу (Servant of the People). Nela, Volodymyr Zelenskiy interpreta Vasyl Petrovych Holoborodko, um professor de secundário que se torna “Presidente por acidente”, depois de um vídeo onde critica o Governo ucraniano se ter tornado viral, e o ter feito vencer as eleições.

Em Março de 2018, o protagonista da série registou oficialmente um novo partido no país, com o nome da série, confirmando assim a sua entrada na corrida às presidenciais. Em Abril, Zelenskiy, actor e comediante sem qualquer experiência política, ganha as eleições da vida real e torna-se o mais recente Presidente da Ucrânia.

Dizer que a sua campanha e eleição dava um filme não serve para retratar o caricato de toda esta história, de tão próximo que é da realidade. Depois de ter vencido a primeira volta, encostando os seus opositores a um canto, o actor de 41 anos repetiu a proeza na segunda, onde obteve 73% dos votos, contra os apenas 25% do actual Presidente, Petro Poroshenko. Importa lembrar que 12% dos ucranianos não participaram nas eleições por estarem em território “anexado” ou por estarem em solo russo, onde foi proibida a votação.

Uma campanha e eleição que davam um filme

A popularidade de Ze – como lhe chamam os seus apoiantes – nas audiências dos seus programas televisivos, teve reflexos óbvios no seu sucesso político, desde os primeiros dias de campanha. É que Zelenskiy não só venceu o homem que estava no poder desde 2014, como derrotou outros 38 candidatos, muitos com cargos de alta importância pública no currículo, naquelas que foram as eleições mais participadas da história da Ucrânia – o boletim de voto tinha 80 centímetros.

“Vocês estão prestes a começar uma nova vida: sem corrupção, sem subornos. Uma vida num novo país, um país de sonho. Acreditamos que tudo vai correr bem e que vamos ganhar, mas são os ucranianos que têm de decidir”, afirmou Zelenskiy, citados por vários órgãos de comunicação social ucranianos.

A campanha ficou marcada por várias acusações de compras de votos e outras fraudes eleitorais, a maioria da autoria de Yulia Timoshenko, antiga Primeira-Ministra que cumpriu dois anos de uma pena de prisão de sete, por abuso de poder, que ficou pelos 14% de votos na primeira ronda de votações e sem lugar na segunda volta.

Quando a corrida se cingiu a Zelenskiy e Poroshenko, na segunda volta, tornou-se ainda mais claro que o “comediante inexperiente” iria sair vitorioso face ao eterno “comandante supremo”. Foi dessa imagem de Presidente forte em tempo de guerra, que reformou as forças armadas e apoiou as forças separatistas no leste do país, que Poroshenko se fez valer ao longo da sua campanha, mas as sondagens mostraram que na hora H, acabou por dividir o voto militar com Zelenskiy, que tal como o resto da Ucrânia, “queriam uma cara nova” que os representasse.

Campanha, virais e provações nas redes sociais

Os dois homens fizeram campanhas muito diferentes. Zelenskiy usou as redes sociais e a sua massa de seguidores para mobilizar a sua base. A sua equipa também teve que lidar com um grande número de “fake news”, “black PR” e desinformação geral de que foi alvo. E a grande dúvida da segunda ronda era se iria haver um debate entre os dois candidatos, uma vez que Poroshenko já havia recusado debates no passado. Como homem do entretenimento que é, Zelenskiy desafiou o seu adversário para um frente-a-frente no estádio olímpico, num vídeo que acabou por se tornar viral onde faz uma série de exigências, e uma série de piadas.

Fez referência aos rumores que envolvem Poroshenko e abuso de álcool, exigiu a realização de exames médicos pré-debate, criou uma contagem decrescente que dava ao seu antecessor 24 horas para lhe responder e, quando Poroshenko finalmente respondeu – também num vídeo provocador publicado nas redes sociais –, Zelenskiy foi acusado de querer tornar um assunto sério num espectáculo. O frenesi mediático seguiu com live-broadcasts de exames ao sangue, e no meio de tudo isto, os dois campos pregavam mensagens com tons opostos. Enquanto Zelenskiy promovia uma de unidade, Poroshenko foi divisivo. Para tentar combater o carisma do actor cómico, Poroshenko tentou reinventar-se com novas promessas e pedidos de desculpa até que chegou o dia do debate.

Foto de spoilt.exile via Flickr

Perante um estádio cheio e durante uma hora, os dois candidatos falaram num tom vigoroso para os dois grupos de apoiantes que os ouviam no relvado – um grupo à frente do palco, a apoiar Zelenskyi, e outro mais lá atrás, depois da linha de meio-campo, a puxar por Poroshenko. Os especialistas deram a vitória ao entretanto novo Presidente ucraniano, mas a maioria salientou que mais do que um debate, se tratou de um concurso de chamar-nomes, com vários momentos caricatos entre dois candidatos preocupados em ofenderem-se e envergonharem-se.

Petro Poroshenko, o adversário de Zelenskiy (foto de spoilt.exile via Flickr)

Da TV para Presidente

Muitos disseram que os ucranianos se encantaram com um candidato “virtual” e que nem quiseram saber o que ele pensava. Ze estudou Direito mas nunca exerceu advocacia. É um dos mais conceituados e bem sucedidos empresários da TV ucraniana. Escreveu programas, apresentou-os,  entrou na versão ucraniana do Dança Com Os Estrelas, em longa metragens, foi Presidente-a-fingir na série com maior audiência do país. Durante a campanha foi acusado de ser um fantoche do oligarca ucraniano Igor Kolomoyski, que detém 70% do canal 1+1, de ser pouco transparente acerca do dinheiro para a sustentar. Na verdade, no dia a seguir ao anúncio da sua candidatura à Presidência em directo para as câmaras do canal 1+1, no mesmo canal, estreava a terceira temporada de O Servo do Povo. 

Sobre futuros encontros com líderes mundiais, Zelenskiy não parece estar intimidado. Sobre Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, disse de forma lacónica que “são ambos a mesma coisa”, não temendo futuras reuniões. Sobre Vladimir Putin, presidente da Rússia, com quem já disse que só se encontrará depois de a Crimeia ser devolvida à Ucrânia, foi mais incisivo: “Se me encontrar com Putin, dir-lhe-ei: ‘Finalmente devolveu-nos os nossos territórios. Mas quanto é que está preparado para pagar pela sua ocupação?’”

Espirituoso mestre da web, Zelenskiy explorou a vontade dos ucranianos desesperados por “um novo rosto” num sistema há muito dominado por políticos do establishment. Fê-lo com uma mensagem simples que ressoou em todo o país: eu sou o que vocês quiserem que seja. “Essa imprecisão é provavelmente deliberada, porque aumenta o apelo de Zelenskiy a um eleitorado centrista mais amplo”, disse Alex Kokcharov, analista de sondagens da Ucrânia. Os críticos argumentaram que a formulação errónea de políticas não é o que um país que enfrenta grandes desafios diplomáticos e económicos, entre os quais o conflito armado com combatentes apoiados pela Rússia, precisa. 

“Sem guerra, mas a lutar contra a corrupção” foi uma das frases mais repetidas pelo Presidente eleito em tempos de campanha, que deixava mais clara qual a bandeira da sua candidatura. Prometeu que, como presidente, proibiria os condenados por crimes de corrupção de exercer cargos no Governo e de serem libertados sob fiança. Os funcionários do Governo serão obrigatoriamente contratados através de concursos públicos e receberão salários mais altos do que os oferecidos pelo actual Governo, para desincentivar a aceitação de subornos.

Zelenskiy prometeu ainda negociar directamente com Vladimir Putin para pôr fim à guerra contra os separatistas russos no leste da Ucrânia, mas também disse que nunca concordaria em sacrificar qualquer território ou cidadãos. Mais recentemente, Zelenskiy disse que apoia os acordos de paz de Minsk, e que gostaria que os Estados Unidos e o Reino Unido se juntassem às negociações de paz. Também demonstrou interesse em permitir que uma força internacional de manutenção da paz assegure o leste devastado pela guerra.

Continua…

A história não pára, nem o espectáculo. Apesar das dúvidas sobre a sua capacidade para governar e das críticas à ambiguidade das suas propostas, o candidato ganhou popularidade ao adoptar como discurso a promessa de combater a corrupção e a resistência à classe política. A sua vitória segue uma tendência mundial anti-sistema, que conquista espaço em vários Governos na Europa e se mostra particularmente vincada na Ucrânia depois de anos de crise económica e escândalos.

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  • Rita Pinto

    A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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