Criticar antes de partilhar: uma atitude saudável no mundo online

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Criticar antes de partilhar: uma atitude saudável no mundo online

Já todos vimos essas imagens partilhadas nas redes sociais. É suposto haver uma comparação entre salários mínimos em vários países europeus, e depois uns comentários gerais sobre o país, o que leva a uma conclusão vincada: o nosso país é muito mau, o "povo" é manso e os governos, que são maus, são merecidos. Será mesmo assim?

De vez em quando, certas publicações tornam-se virais nas redes. Podem ser textos, imagens, vídeos… A viralização resulta normalmente quando há conteúdo emotivo acompanhado de uma crítica simples de algo percecionado como um problema diário de quem o partilha, uma espécie de válvula de escape para a sensação de impotência que se encontra frequentemente em conversas sobre o estado das coisas.

No entanto, raramente estas publicações representam verdadeiramente o estado das coisas, e é ainda mais raro encontrar publicações que contribuam para a resolução dos problemas. A Joana Rita Sousa já cá tinha escrito um guia prático para evitar cair na armadilha das partilhas, mas achei que seria interessante abordar exaustivamente um exemplo prático. Quando, na semana passada, fui confrontado com uma dessas publicações, não hesitei. O resultado é o que se segue:

É suposto haver aqui uma comparação entre salários mínimos em vários países europeus, e depois uns comentários gerais sobre o país, o que leva a uma conclusão vincada: o nosso país é muito mau, o “povo” é manso e os governos, que são maus, são merecidos. Será mesmo assim?

Vamos aos salários. São escolhidos a dedo, claro. Podíamos falar nos 6 países da UE que não têm salário mínimo, ou nos 10 que têm mas são mais baixos que em Portugal. Podíamos também ver que estão a misturar salários mínimos de 12 meses anuais, salários mínimos para 14 meses (como em Portugal), e salários mínimos por hora, não atendendo a diferentes horários de trabalho semanais. Para informação, não está grande coisa.

Para além disso, os custos de vida são muito diferentes. O valor que nos interessaria é um que está disponível sem esforço no Eurostat, e é o valor ajustado para paridade do poder de compra (PPC). No fundo, é isso que permite comparar vidas semelhantes nos vários países. O salário mínimo português, em PPC, é de 775 euros/mês. Para comparação, o mais elevado continua a ser o luxemburguês, mas passa a 1575 euros/mês. Muito ou pouco, são estes os valores que devem ser usados para comparar. Fica um link para a lista completa.

Vamos agora ao resto?

Impostos: somos o 17° mais elevado em 28 países. Abaixo da mediana, que é um indicador muito mais relevante aqui que a média, devido à distribuição dos valores. A diferença para o primeiro é de menos 12 pontos percentuais e para o último de mais 11,1 pontos percentuais.

Combustíveis: antes dos números, importa perceber que o preço dos combustíveis tem demasiadas variáveis que os influenciam. A parte que aqui interessa a quem fez isto, presumo, são os impostos. Há impostos sobre os combustíveis não apenas por razões fiscais, portanto é uma comparação algo irrelevante para saber coisas sobre o estado geral de um país – mas diz muito sobre um país que a sua população esteja preocupada com isso, nomeadamente sobre hábitos de mobilidade e importância dada ao transporte próprio e motorizado. Todo este raciocínio vale também para o preço dos carros. Ainda assim, vamos olhar para alguns números sobre impostos nos combustíveis. Vendo a componente de impostos indiretos, que é a que normalmente é abordada, percebemos que há 7 países na Europa com mais impostos indiretos, 3 países mais ou menos iguais a Portugal, e 17 países com menos impostos indiretos. É verdade que estamos na metade com mais impostos indiretos, mas não somos um dos mais tributados de forma significativa. Esta é uma sensação comum sobretudo pela comparação com Espanha, nosso vizinho, que tem realmente muito poucos impostos indiretossobre o combustível. É preciso entender que Espanha é um país com aglomerados populacionais bastante distantes entre si e que precisou de criar uma enorme rede de autoestradas e “subsidiar” os combustíveis automóveis para promover a coesão territorial.

Sistema educativo: em 1970, Portugal tinha 25,7% de analfabetos. Em 2011 tinha 5,2%. O número de diplomados anuais do ensino superior tem subido consistentemente, sendo mais do dobro de há vinte anos atrás. É verdade que a taxa de indivíduos de 30-34 anos com diplomas do ensino superior é baixa, mas é preciso ver se onde viemos recentemente. Nos testes PISA, da OCDE, conseguimos subir acima da média recentemente (e convém lembrar que a OCDE só faz testes em 34 países, e que é uma organização à qual muitas vezes se referem como “um clube de países ricos”). Onde está o sistema de ensino “dos piorzinhos?”

Sistema de saúde: o SNS é uma das maiores conquistas de 1974. Temos um sistema de saúde que é dos melhores do mundo. É claro, se na educação é difícil de mostrar, aqui haverá sempre critérios para justificar várias posições. Para mim, o que conta é a universalidade do sistema, e aí temos poucos que nos batam. Ninguém fica à porta de uma urgência por não a poder pagar. Doentes crónicos têm taxas moderadoras eliminadas ou bastante reduzidas. Somos líderes no tratamento de várias doenças infecciosas. Temos profissionais de enorme qualidade. Indicadores como mortalidade infantil, esperança média de vida ou cobertura da vacinação são muito positivos. Aqui vamos fazer uma outra brincadeira, estilo Manuel Serrão, sim? Digam-me um sistema melhor que o nosso, e quais os critérios. Vamos concluir que há muito poucos em todo o mundo.

Permitam-me ser cruel, mas estas publicações não trazem nada. Percebo que se publiquem por alguma insatisfação com o estado das coisas, mas, se realmente o queremos mudar, não será assim certamente. É uma análise simplista, sem rigor, que instiga ódios e apresenta zero soluções. É claro que ler uma análise deste tamanho chateia. Mas é um requisito para termos políticas melhores, lamento. Não há milagres. Povo desinformado leva com governantes piores visto que os governantes vêm do povo e não de um outro planeta — muito importante não esquecer isso. Se queremos que as coisas melhorem, há que fazer alguma coisa. Começar por olhar melhor para a realidade é um mínimo a que não temos direito de nos escusar.

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  • Jorge Félix Cardoso

    Estudante perpétuo, atualmente a completar o curso de Medicina na U.Porto e o mestrado em Filosofia Política na U.Minho. Apaixonado por perguntas e desconfiado das respostas. Ávido leitor, criador das newsletters "Qu'ouves de Bruxelas" e "Ementa do Jorge". Investigador do AI4Health, CINTESIS. Co-fundador do FÓRUM Diplomacia da Saúde. No Twitter em @jfelixcardoso.

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