Os dias passam e, com o passar das horas em que táxis e taxistas condicionam gravemente as principais vias de circulação de Lisboa e Porto, mais difícil se torna descortinar os seus argumentos e pesá-los de um modo racional. Ao fim de 7 dias, é mais provável encontrar pelas vias da internet – que, claro, não é um bom sítio para procurar – alguém que peça uma intervenção policial que impeça a sua permanências nas principais artérias do que quem se esforce por perceber o que levou tantos homens, de todo o país, a dirigir-se a Lisboa para se fazer ouvir.
Os argumentos do progresso prometido e a simplificação do processos de requisição, viagem e pagamento aportados pelas novas plataformas de transporte desequilibram a balança para o lado do consumidor/utilizador; e, tratando-se de um serviço de uso comum, desequilibram também a discussão; ainda que este tipo de viés possa ser claramente populista.
Independentemente dos taxistas terem ou não razão no seu protesto, e sobretudo da sua persistência nesta história, não deixa de ser sentida uma certa “uberização” da sociedade, isto é, uma nova conjuntura de forças a dar força de lei a um desejo – mais do que uma necessidade – dos cidadãos. Embora não o contemplemos enquanto piões, jogam-se os trunfos do capitalismo e, se sobre o conteúdo já se pronunciou – e bem (simplesmente porque o fez) – o Parlamento e o Presidente da República criando a lei, o escrutínio da forma deve ser uma tarefa de todos nós.
Não se trata de chorar sobre leite derramado, fazer apelos arrependidos ou exigir culpas e desculpas; trata-se, sim, de reflectir de modo a enquadrar as novas dinâmicas de mercado e como estas exercem pressões sobre os sistemas de governação dos estados.
Se hoje é certo que os Uber são legais, não podemos esquecer que durante a maioria do tempo da sua operação no território nacional não o era, nem se preocupava em ser. Neste sentido, foi a força que a marca ganhou junto dos consumidores – enquanto ainda era ilegal e com a força das promoções de boas-vindas, em que ofereciam viagens (viagens, essas, que globalmente resultavam em prejuízos) — que deu escala ao caso e agudizou o fosso entre taxistas e ubers, com uma série de outras marcas a aproveitar a pista deixada por estes.
Ainda que já existissem apps para chamar táxis antes, ainda que já existissem táxis com formas de pagamento simplificado, ainda que já existissem taxistas modernos e adequados aos novos tempos, o peso dos preconceitos sobre uma classe antiquada mais a promessa de novidade de um serviço renovado condicionaram altamente o ambiente social em que se tomam as decisões. Ou vendo por outro prisma, e aqui assimilando as críticas feitas ao sector dos táxis: mostra que a regulação e a optimização em prol da eficiência só se fazem à custa da pressão social.
O resultado disso é uma lei feita à medida das plataformas que, mais do que regular o serviço ou proteger os utilizadores, enquadra no sistema jurídico português meia dúzia de empresas que já cá operavam.
Veja-se: a lei não foi feita por pressão social ou por uma necessidade premente de resposta do Estado a uma necessidade do povo; foi feita para criar base legal para uma multinacional operar no país — multinacional essa que conseguira todo o seu ascendente pela sua capacidade de operar a perder dinheiro ou, como se diz na gíria, a “queimar dinheiro”. Basta pensarmos que os primeiros anos da Uber foram de prejuízos avultados, com custos de operação em que se incluem o marketing e os custos judiciais a ultrapassar as receitas da mesma, algo que só é possível com grandes investidores como esta empresa tem na sua carteira.
Certo é que podemos dizer que com o Uber, Cabify e whatever podemos ir mais rápido de A para B, não tão certo será dizermos que esta mudança seja saudável do ponto de vista democrático, ou por outro, que o custo desta mudança seja saudável do ponto de vista democrático. Independentemente das lutas do sector e do que significa. É que esta lei abre — ou pelo menos escançara — um precedente que não era corrente ou tão visível até aqui em que a capacidade de comunicação e marketing de uma empresa ganha força de lobby.
E se isto pode parecer um assunto menor, por um lado, ou uma crítica à chamada “lei Uber”, por outro, engana-se quem o acha até porque este não é um caso único e sobretudo, não funciona sempre no mesmo sentido, nem só no parlamento português.
O ponto que aqui pretendo elucidar é bem maior, mais amplo e tem-se revelado nos últimos tempos: há um excesso de atenção por parte dos legisladores às práticas das multinacionais, com uma inoperância na exigência do cumprimento da lei e regulação feita “pelo telhado”, numa tentativa apressada – e por isso atabalhoada – de adaptar as leis aos tempos. Em benefício ficam sempre as grandes empresas com capacidade financeira para fazer frente até à lei e a pesadas multas – se empresas como a Apple conseguem acordos com Autoridades Tributárias que lhes permitem esquivar-se dos impostos, aqui o caso não é diferente porque o poder das empresas lhes permite operar à margem da lei.
“Mas o sector dos táxis era antiquado”, “mas os táxis são um monopólio”… estes argumentos – aprofundados de qualquer forma – são a matéria de interesse neste artigo. São os dois errados, não fazem um certo e só reforçam a premissa principal sobre a qual aqui tento reflectir: porque não se agiu no sector da mobilidade individual atempadamente, porque nunca se modernizou o sector e porque teve de ser a prática ilegal reiterada a iluminar esta necessidade? É preciso perceber e questionar todas estas condicionantes. É preciso ter em conta que mesmo que possam ter sido instrumentalizados, estas pessoas que protestam merecem a sua defesa intelectual e que tentemos perceber porque tudo culminou nesta convulsão, mais do que alimentá-la.
Quanto ao factor preço, há que ter em conta que as aplicações de transporte ao operar em Portugal à margem da lei conseguiram fugir à tabela de preços estipulada para o sector, conseguindo uma clara vantagem competitiva face aos restantes, e dispondo agora de um regime livre. Neste capítulo, e compensando os preços baixos, importa não esquecer as tarifas dinâmicas (que nos alteram a percepção do preço) e a capacidade da empresa para operar em perdas financeiras constantes.
Se em causa estiver a monopolização do sector ou a personalização das corporações, é preciso perceber se esta foi feita por trâmites legais; sendo este um sector agora regulado pelo Estado, porque não houve nenhuma intervenção deste no sentido de o controlar realmente?
Feitas estas importantes questões, para concluir, é preciso antes de se criticar homens pelo transtorno que a sua manifestação causa perceber o que estes reivindicam. Neste caso, e fazendo jus às declarações de Carlos Ramos, Presidente da Federação Portuguesa de Táxi, que sejam as autarquias a determinar o número de táxis disponíveis no seu município ao invés do Governo — plataformas como a Uber, Cabify e outras podem colocar à disposição, em qualquer cidade, o número de veículos que bem entenderem (por exemplo, descobri que a Uber já disponibiliza alguns veículos em Setúbal apesar de não ter encontrado qualquer anúncio sobre tal).
Por outro lado, é preciso fazer uma comparação e tentar perceber a viabilidade dos processos se os actores fossem outros. Será que uma empresa – uma cooperativa que fosse – que se dedicasse a fazer transporte de passageiros mas com menos capacidade financeira para crescer sem estar legalizada poderia algum dia ter provocado esta mudança? Será que, sem os avultados investimentos — à espera claro de um retorno no longo prazo — de fundos (da Arábia Saudita, por exemplo), alguma empresa teria capacidade de provocar esta mudança? Serão os consumidores os grandes beneficiários de todas as mudanças? São os trabalhadores da Uber mais protegidos de esquemas de instrumentalização e exploração do que os do táxi?
E quando a Uber lançar o seu serviço de carros autónomos, teremos os motoristas de Uber nas ruas?
Fotos de Bruno Domingues via Flickr
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