A “Elonização” de Zuckerberg e o fim da inocência das redes sociais

A “Elonização” de Zuckerberg e o fim da inocência das redes sociais

20 Janeiro, 2025 /
A “Elonização” de Zuckerberg (ilustração Shifter com recurso a imagem produzida com o Grok)

Índice do Artigo:

A transformação de Mark Zuckerberg, cada vez mais alinhado com Elon Musk, marca o fim da tentativa de vender as redes sociais como espaços neutros e apolíticos. Da aproximação com Trump à crítica à regulação europeia, o fundador do Facebook abraça uma postura de confronto político que redefine o papel das plataformas digitais.

“Vivemos numa época estranha. Eventos extraordinários continuam a acontecer, abalando a estabilidade do nosso mundo. Bombas suicidas, ondas de refugiados, Donald Trump, Vladimir Putin, até mesmo o Brexit. E, no entanto, aqueles que estão no poder parecem incapazes de lidar com tudo isto. Ninguém tem uma visão de um futuro diferente ou melhor. Este filme contará a história de como chegámos a este lugar estranho. É sobre como, ao longo dos últimos 40 anos, políticos, financeiros e utopistas tecnológicos, em vez de enfrentarem as verdadeiras complexidades do mundo, recuaram.” 

Ainda Donald Trump não era presidente dos Estados Unidos da América, a guerra na Ucrânia não tinha assumido as proporções a que assistimos, e Elon Musk não tinha comprado o Twitter, quando, em 2016, o realizador britânico Adam Curtis, lançava Hypernormalization. O documentário publicado pela BBC que percorre as últimas décadas da história global, começa com o monólogo com que abrimos o artigo, sugerindo que o mundo tinha caído numa espécie de ilusão paralisante, que cristalizou a força dos poderosos e neutralizou qualquer resistência ou contra-ataque progressista. O conceito de hipernormalização descrevia na perfeição a forma perversa como mesmo o que em tempos parecera inimaginável se tornava cada vez mais normal. 

Ainda nem uma década passou, mas já é possível ver o desdobramento desta realidade político-social e testemunhar como “este recuo para um mundo de sonho permitiu que forças sombrias e destrutivas fermentassem e crescessem do lado de fora” — como Curtis sugere na parte final desse monólogo. Ainda que os actores sejam praticamente os mesmos e, na prática, a dinâmica se mantenha (conservadores cada vez mais poderosos e progressistas cada vez menos inconsequentes), as forças que cresceram do lado de fora procuram um espaço cada vez mais central e maior protagonismo.  

Elon Musk é uma dessas forças. No tempo que passou desde a primeira eleição de Trump, passou de prometer a colonização de Marte para o ano 2022, nas apresentações da SpaceX, para estar prestes a tornar-se parte da administração de Trump e ter um poder (concreto e simbólico) considerável no plano global. Adquirir o Twitter, curiosamente no ano em que prometia a aterragem em Marte, e transformá-lo por completo, foi uma parte importante da sua estratégia — a mais visível.  E o seu modelo de gestão da plataforma deixou pegadas que, apesar da rivalidade entre ambos (chegaram a acordar um combate, que nunca aconteceu), Zuckerberg parece disposto a seguir. A direção é Washington, e o sentido é convergente com a nova administração de Trump. 

De Zuckerschmuck a Elon Zuckerberg

A primeira eleição de Donald Trump ficou marcada por uma grande desconfiança dirigida às redes sociais. Quer pela proliferação de desinformação à vista de todos, quer por escândalos como o Cambridge Analytica, em que se provou que o Facebook (empresa que passaria a chamar-se Meta em 2021) terá partilhado dados de utilizadores que foram usados para campanhas de influência política. Nesse momento, a resposta do Facebook passou pela implementação de medidas de reforço da privacidade, a criação de sistemas de moderação de conteúdo complexos e a tentativa de criar a imagem de um Zuckerberg preocupado com o bem estar e as instituições. Desta vez é bem diferente. 

Ainda comparando com 2016, Zuckerberg passou de se gabar de usar roupa sempre igual para vestir grandes marcas e colaborar com designers de moda para criar peças como, alegadamente, a t-shirt que levou à conferência anual da Meta onde se lia em letras grandes “AUT ZUCK AUT NIHIL” — uma apropriação da frase “Ou César ou nada”. O dono da Meta já não parece interessado na imagem original do nerd discreto, nem em disfarçar a sua capacidade de influência das suas plataformas; pelo contrário, parece querer retomar o célebre mote fundacional do Facebook — move fast and break things — seguindo a moda de Musk. O mais recente anúncio em vídeo, com as cinco novas medidas da Meta, é a melhor prova disso. Quer na forma, quer no conteúdo. 

De cabelos mais compridos, caracóis definidos, t-shirt preta e um visível pendente dourado, Mark Zuckerberg assinalou no curto vídeo que publicou nas redes sociais o culminar do processo de Elonização. Depois de nos últimos anos ter feito check no circuito mediático online — o três em linha dos podcasts com um viés alt-right Friedman, Rogan, Huberman —,  recentemente ter passado por Mar-a-Largo para privar com Trump e ter feito uma doação para a cerimónia da tomada de posse, Zuckerberg apontou publicamente as baterias aos mainstream media e às instituições de supervisão democrática, com particular enfâse na União Europeia, acusou a equipa de moderação do Facebook na Califórnia de ser demasiado sensível politicamente, e prometeu lançar uma versão das Notas da Comunidade e despedir os trabalhadores menos produtivos da empresa. Uma cópia a papel químico da estratégia de Musk no Twitter

Se durante as sucessivas audiências no congresso que decorreram nos últimos anos, sobre o papel da Meta na proliferação de desinformação, interferência eleitoral e deterioração do bem estar digital, práticas anti-concorrenciais e discurso de ódio nas suas plataformas, Zuckerberg foi jogando à defesa, agora a estratégia é de contra-ataque e além fronteiras. Apesar de deter menos de 15% das ações da empresa, Zuckerberg é responsável por 54% dos direitos de voto, podendo decidir sozinho o caminho a seguir e com quem se aliar.  Mas desengane-se quem acha que estas mudanças são fruto de uma crise de meia idade ou de humores pessoais. Todas as pistas indicam uma adaptação ao momento político, fazendo em tudo lembrar o episódio de Succession em que se confirma a eleição de Jeryd Mencken, candidato republicano.

Tal como na série de Jesse Armstrong, onde a mudança de estratégia tem implicações nos que rodeiam os líderes, no caso da Meta o mesmo aconteceu. Sheryl Sandberg, que nos últimos anos foi uma das figuras principais a lidar com todas as controvérsias, e chegou a ser apelidada pela imprensa norte-americana como ‘a adulta na sala’ (a Gerri Kellman em Succession, portanto), deixou o board de direção em 2024, depois de 14 anos na empresa, e tornou-se no bode expiatório de Zuckerberg.  Em sentido inverso,  juntaram-se três novas caras: John Elkann, CEO da Exor, uma empresa de investimentos europeia controlada pela família Agnelli, Charlie Songhurst, antigo General Manager da Microsoft e investidor em tecnologia, e Dana White, presidente e CEO da UFC — próximo de Trump ao ponto de de ter sido convidado a discursar na noite da sua última eleição. 

Sandberg não foi a única sacrificada na mudança. Depois de 7 anos na empresa, onde passou de Vice-Presidente para os Assuntos Internacionais e Comunicação a Presidente para os Assuntos Internacionais, Nick Clegg, ex-vice-primeiro-ministro britânico do partido Liberal Democrata, que tinha sido convidado para a Meta para lidar com escândalos como o Cambridge Analytica e foi um dos responsáveis pela implementação do Oversight Board, foi substituído por Joel Kaplan, um homem que trabalhou durante 8 anos na administração de George W. Bush e também ele conhecido pela proximidade a Trump. 

Em Março de 2024 Trump dizia que banir o TikTok seria mau porque fortaleceria o Facebook, se referia a Zuckerberg como Zuckerschmuck – mesclando o nome de Mark com a expressão iídiche para pénis — e dizia que este era o grande inimigo do povo,  ameaçando-o com prisão perpétua.  Agora, com Trump no poder e a suspensão do TikTok a termo, o dono da Meta está investido em conquistar a sua simpatia e tem visto os seus esforços reconhecidos. Questionado sobre se as recentes alterações na direção da Meta seriam uma resposta às suas ameaças, Trump não confirmou nem desmentiu; disse que era provável. 

A viragem das redes sociais em aproximação a um governo de direita como o de Trump não significa que, por oposição, a sua tendência fosse até aqui de esquerda. O enquadramento político é mais complexo – não fosse Trump um político peculiar. A viragem é, sobretudo, citando Zuckerberg, contra instituições que ameaçam as empresas americanas com regulação, quer na União Europeia, quer na América Latina. E na direção de Trump, para que viabilize os seus planos, com muito do que isso implica em termos estilísticos. Se dúvidas restassem, na passagem recente pelo podcast de Joe Rogan, Zuckerberg voltou a reforçar o seu compromisso com a saúde das empresas norte-americanas, a afirmar que está entusiasmado com Trump porque este “só quer que a América vença”, e a queixar-se da União Europeia a propósito das multas por práticas anti-concorrenciais. E segundo a CNBC, fontes próximas da Meta afirmam que Zuckerberg reconhece a importância do governo norte-americano nos seus projectos de expansão. 

A conjugação dessas informações torna evidente que nada foi dito por acaso, e que a revolta do CEO da Meta para com os citados vai para além de uma disputa em torno do que deve ou não ser dito numa rede social. Ser o paladino da liberdade de expressão é útil do ponto de vista político, uma espécie de cavalo de tróia,uma vez que em causa está, mais amplamente, a defesa de uma posição dominante no modelo de negócio do capitalismo de vigilância. É nesse sentido que a batalha se estende por outras frentes, como a corrida à Inteligência Artificial, onde é fundamental o apoio de Trump para a construção de datacenters, e os reguladores podem pôr em causa partes importantes da estratégia. Como, por exemplo, o uso de todo o conteúdo das redes sociais para treinar modelos, algo que atualmente só os europeus podem rejeitar. Mas já lá vamos. 

A X-ficação da Meta

Entre os cinco pontos anunciados por Mark Zuckerberg, a maioria das notícias sobre a mudança destaca a possibilidade de ser possível insultar online. Mas é preciso ir além disso quando falamos de sistemas de moderação em escala e dos seus resultados práticos. Até porque, em abono da verdade, insultos, por muito descarados que sejam, não serão novidade nas redes sociais — já todos vimos mil e uma formas de contornar o algoritmo, e testemunhámos a falência do sistema que está em vigência.

Como mostra a análise do site Techdirt, que distingue o que Zuckerberg disse em “bom”, “mau” e “estúpido”, a complexidade dos sistemas de moderação é tal que é inútil catalogar as mudanças de forma dicotómica. Dado que se trata de um sistema composto por várias camadas de processos, pessoas e programas (ou Inteligência Artificial na versão fancy), que se aplica de forma global mas não equitativa, é errado achar que as consequências serão iguais para todos, e resumir tudo a polos opostos e verdades absolutas. Na verdade, Zuckerberg diagnosticou alguns problemas certos; só que apontou para as causas erradas. 

Um dos problemas bem identificados por Zuckerberg tem que ver com a complexidade dos sistemas de moderação automática implementados pela Meta nos últimos anos, e a forma abusiva com que deitavam contas abaixo ou suspendiam o alcance de publicação. Esse é, de facto, um problema claro da Meta, que está em crescendo nos últimos anos, e que todos podemos testemunhar fazendo um simples post no Instagram com a palavra “Palestina” ou outra que fira a sensibilidade norte-americana. O que não está claro é que a solução proposta venha a resolvê-lo. 

Zuckerberg afirma que a política de moderação da Meta se inspirará na proteção da liberdade de expressão consagrada na constituição americana, mas dada a opacidade dos algoritmos é impossível termos a certeza como o faz. E os indícios iniciais não são favoráveis: logo nas primeiras horas, a revista 404Media denunciou que a Meta estaria a apagar posts com links para o Pixelfed dos feeds, e, dada a proximidade ao governo e a vontade de agradar Trump, não espantaria se víssemos as mesmas táticas aplicadas a conteúdo de índole política. 

Na mesma linha de raciocínio, outro dos anúncios de Zuckerberg revela de uma forma particularmente clarividente a capacidade de influenciar o discurso destas plataformas. Depois de anos a minimizar o discurso político (quem estabelece o que é discurso político?), o líder da Meta promete agora fazê-lo retomar, numa clara assunção do seu poder sobre aquilo que dizemos e, pior, pensamos. E se hoje dizer isto nos parece normal, é porque os longos anos de presenças nas redes sociais nos fomos habituando a esta forma de supressão do discurso e de manipulação das emoções ao ponto de já nem reivindicamos qualquer direito ou supervisão democrática sobre um espaço que é global e se apresenta como público mas é controlado a partir de um escritório privado em Silicon Valley. 

Se em tempos tiraram o discurso político porque aumentava o stress das pessoas, como a moda agora é o ragebait, legitimada pelo próprio presidente eleito e pelo seu fiel companheiro Musk, essa questão deixou de ser um problema. Problema passou a ser o contrário: qualquer demonstração de sensibilidade social ou de estabelecimento de regras de sã convivência global e proteção de grupos vulneráveis ou estigmatizados (como a sanção de discurso racista, capacitista, homofóbico ou transfóbico) rotuladas mais uma vez como uma demonstração do vírus woke

Na convergência da moderação de conteúdos e do discurso político, Zuckerberg anunciou também o fim do apoio do Facebook aos fact-checkers nos Estados Unidos da América. Ainda que não se saiba ao certo o que significará esta medida, foi vista por muitos com uma importante mudança no circuito informativo. Mas será assim tão impactante, e será o impacto todo mau? Como nos lembra Eduardo Santos, advogado afecto às questões dos direitos digitais, é preciso ponderar esta afirmação. Se o programa de fact-check fez fluir alguns milhões das big tech para o sector do jornalismo, e permitiu alguns desmentidos importantes, não resolveu o problema a que se propôs e até poderá ter contribuído para comprar uma simpatia que manteve as big tech fora de um escrutínio mais crítico nos últimos anos. Finda essa relação, teremos agora um confronto com uma realidade que sempre existiu mas fomos ignorando?

Tal como Musk, Zuckerberg cola o fact-checking a uma ideia de censura que promete combater devolvendo o controlo aos utilizadores das redes sociais com a implementação das notas da comunidade.  Um discurso, para além de perigoso e extremamente egocêntrico, é também errado. Como explica a análise do Techdirt, o fact-check nunca foi uma forma de censura de discurso, sendo apenas mais uma camada de discurso, que se pode articular perfeitamente com as Notas da Comunidade. Apesar da popularidade deste modelo no X, os estudos que vão sendo publicados dão conta de que também não é uma forma totalmente eficaz de combater a desinformação numa plataforma global. Recomendando-se abordagens mistas onde os meios de comunicação social e os fact-checkers podem ter um papel importante.

Onde estamos 10 anos depois? 

Nos anos que passaram desde 2016 muita coisa aconteceu, mas a cadência de eventos extraordinários não diminuiu. O Brexit consumou-se, o primeiro mandato de Trump e o espectáculo mediático extremou relações (entre civis e entre potências mundiais), e a pandemia de COVID-19 revelou as brechas do sistema global. Desde então, e numa cronologia muito incompleta, Putin afirmou o seu poder numa invasão territorial da Ucrânia, Israel tem dizimado Gaza, a China ameaça a liderança económica e tecnológica a que os Estados Unidos se habituaram, e a União Europeia continua à procura do seu papel no meio de tudo isto, encontrando na regulação da tecnologia um desígnio importante. 

É neste puzzle geopolítico que Trump vai voltar a encaixar a caminho do seu segundo mandato, e as primeiras declarações mostram que pretende não só manter como acentuar o seu estilo, imprevisível e indiferente — começou logo por reclamar a Gronelândia, país que administrativamente está ligado à Dinamarca, membro da NATO tal como os EUA. E é com a administração de Trump que as tecnológicas pretendem continuar ou retomar o seu ritmo de crescimento e expansão. Mark Zuckerberg pode não ter a alavancagem diretamente junto do poder de Musk, que para além do X detém empresas importantes neste domínio como a SpaceX. Mas depois de uma aposta sem grande sucesso no metaverso (ainda se lembram que foi por isso que o Facebook se passou a chamar Meta?), é natural que se queira preparar melhor para a próxima volta da corrida, e a sua posição de partida não é negligenciável. 

Apesar de a Meta não ser propriamente popular, e de o Facebook, marca-mãe, ter a sua reputação pelas ruas da amargura, na soma das várias plataformas a Meta — Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads — ainda é a empresa responsável por mais utilizadores mensalmente activos a nível global, mantendo-se no restrito pódio do capitalismo de vigilância. Só o Facebook tem cerca de 3 mil milhões de utilizadores, comparado com os mil milhões do TikTok, e a mais pequena das plataformas, Threads, terá cerca de 300 milhões, 10x mais que o concorrente Bluesky. O historial da empresa mostra aptidão para explorar novas oportunidades. E se em Março Trump preferia que o Facebook fosse banido em vez do TikTok, as notícias agora dão conta de uma alta probabilidade de a rede social de origem chinesa ser banida, tal como outras apps da ByteDance (empresa mãe, com sede na China, que tem no seu portfólio outras apps como o CapCut) não venda a sua operação nos EUA, o que pode aumentar ainda mais estes números.  

A causar atrito no plano de Zuckerberg, e de outros gigantes tecnológicos, estão desafios além do seu controlo e para o qual o apoio do governo dos Estados Unidos é fundamental, mas também a simpatia dos utilizadores. Nomeadamente a regulação. A União Europeia, importante mercado para o carácter global das redes sociais, tem-se destacado no desenho de políticas de regulação para as grandes plataformas digitais e a implementação de Inteligência Artificial, que podem pôr em causa os modelos de desenvolvimento vigentes. É neste ponto que a defesa retórica da liberdade de expressão pode ser vista como uma preparação do terreno para quando a tensão aumentar e a UE impuser regras que a Meta não queira obedecer (veja-se o caso do X no Brasil). 

Ainda que nem sempre seja óbvio, a relação entre uma story e a geopolítica é mais próxima do que os factos soltos e os headlines sensacionalistas que nos invadem os feeds e as stories nos permitem vislumbrar. Como de resto mostra a gestão em torno da suspensão do Tiktok, encarada nos EUA como um problema de segurança nacional, as redes sociais são hoje uma plataforma de disputa geopolítica assumida, de amos os lados. Se a China bloqueia as apps americanas, os americanos fazem o mesmo em resposta, numa disputa simultaneamente política e económica. E usam o estatuto dos seus fundadores para influenciar o discurso político nos países onde a regulação ameaça os seus planos. Com isso os créditos da promessa de um espaço público global caem a pique, mas os líderes vão marcando pontos individualmente, como fez Trump ao adiar a suspensão do Tiktok conquistando a simpatia dos desesperados.  

O posicionamento de Zuckerberg a favor de Trump é parte de uma espécie de arregimentar das tropas onde os oligarcas das tech são líderes de pelotão a postos para executar a estratégia do comandante. Mas como contrariar esta viragem mais ou menos súbita? Será este momento de mudança o suficiente para que passemos a encarar as redes sociais como peças importantes no xadrez geopolítico, deixando de comprar as suas promessas simplistas e replicar os seus comunicados de imprensa? A verdade é que as instituições que conhecemos não se têm mostrado suficientes. É importante dizer que a posição política da União Europeia (para não falar da Nacional) – em muitas coisas mitigadora de efeitos nocivos e de más práticas das big tech – não está de todo isenta de críticas. 

A nossa posição enquanto utilizadores torna-se ingrata. Tal como sugeria, em 2016, Curtis, no meio do tal monólogo de abertura do documentário, “à medida que este mundo falso crescia, todos nós o acompanhávamos, porque a simplicidade era tranquilizadora. Mesmo aqueles que pensavam estar a atacar o sistema, os radicais, os artistas, os músicos e toda a nossa contracultura, tornaram-se, na verdade, parte do truque. Porque também eles se tinham retirado para o mundo do faz-de-conta”.  A agência não é fácil de resgatar sem um movimento colectivo. E o movimento colectivo não se cria sem literacia e cultura que nos permita compreender e debater os fenómenos para além da sua superfície.  

O que nos resta no meio de toda esta complexa teia de relações é manter e fomentar o espírito crítico e tratar o tema com a importância que as plataformas globais têm, e não com a leviandade que caracterizou o tema nas últimas décadas, em que se deu mais importância ao viral do que ao social e político. Por muito clichê que seja, retomemos a ideia de que o meio é uma parte importante da mensagem. Se tivéssemos exercitado esta noção tão simples desde o princípio talvez não chegássemos a este ponto do dilema onde a presença numa rede social se reveste de uma sensação de cumplicidade com agendas políticas infinitamente maiores que nós, e de sequestro e dependência vital.  E talvez nos tivéssemos mobilizado em torno de alternativas coletivas e independentes, inventando novas formas de estar na internet que não fossem dependentes da oligarquia. Ainda vamos a tempo, só temos de abandonar esta inocência, por muito que seja viciante ou confortável.

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Autor:
20 Janeiro, 2025

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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