De volta à “raça”: usos da história e memória do colonialismo nas redes sociais

De volta à “raça”: usos da história e memória do colonialismo nas redes sociais

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1 Julho, 2024 /
Cartaz 'Portugal não é um país pequeno: superfícies do império colonial português comparadas com as dos principais países da europa' / O cartaz teve origem na Exposição Colonial de 1934, e é um cartaz que projecta a dimensão colonial português no território europeu de modo a comparar a sua dimensão. O mapa é visivelmente antigo, os territórios estão ilustrados a amarelo e a área correspondente À dimensão colonial portuguesa está ilustrada a vermelho.
Cartaz 'Portugal não é um país pequeno: superfícies do império colonial português comparadas com as dos principais países da europa'

Índice do Artigo:

"O problema aqui não é historiográfico ou circunscrito aos discursos públicos que versam sobre a história e memória colectiva. É uma janela a partir da qual nos podemos interrogar sobre o sentido destes debates na contemporaneidade." José Pedro Monteiro, historiador, explora neste ensaio como questões do passado colonial português reverberam e se reconfiguram na atualidade.

Sabemos — e melhor o sabe quem estuda estes temas de forma consistente e rigorosa — que as redes sociais são objectos estranhos, seja como espaços de interacção, seja (ainda mais) como objectos de estudo. Nem sempre é fácil descortinar o que é espontâneo. O que por vezes julgamos serem vários utilizadores diferentes é, afinal, um só e o mesmo. Mais difícil, ainda que não se tratem de dois mundos incomunicáveis, é complicado perceber como se articulam as redes sociais e as esferas da acção social e política, pois estas não se espelham rigorosamente nem, muito menos, podem aquelas ser pensadas como representativas das segundas. 

Começo com este introito porque o exercício que aqui proponho está longe de poder revestir-se de qualquer autoridade científica. É uma impressão que resulta de um apanhado de interacções nas ditas redes, não validado por critérios igualmente científicos e carecendo de uma metodologia rigorosa. Mas beneficia de um acompanhamento mais ou menos regular a discussões nas redes sociais que versam sobre alguns destes temas, sobretudo em torno da história mais recente de Portugal e o seu passado ultramarino.

Há cerca de dois meses, num ensaio em que procurava ilustrar, parcial e episodicamente, como o Estado Novo lidou com a questão da discriminação racial de um ponto de vista administrativo e político — frequentemente não deixando sequer que na esfera pública fossem enunciados e caracterizados casos de racismo e discriminação racial que ocorriam em território nacional (então integrando diversos espaços geográficos) —, chamei a atenção para o que me parecia ser uma dinâmica relevante para o presente, mas entrelaçada em acontecimentos e processos que se situam no passado. No contexto das redes sociais e nos azimutes mais reaccionários da direita nacional, sugeri que se poderia estar a operar uma reconfiguração da relação que estes sectores estabelecem com as ideias tidas por tributárias do discurso oficial do Estado Novo. Referia-me, aqui, ao que se costuma caracterizar como “lusotropicalismo”, ou seja, o sucedâneo, em forma propagandística e de uso fácil e multifunções, da teoria cunhada por Gilberto Freyre. Esse sucedâneo traduzir-se-ia num conjunto de ideias-chave, assentes numa suposta excepcionalidade portuguesa, que faria dos portugueses particularmente avessos ao racismo, por obra e graça da deusa história, dados a uma sã convivialidade ecuménica que ignorava a diferença étnico-racial ou sócio-cultural.

Muitas coisas já foram ditas sobre o lusotropicalismo. Uma delas foi que poderá ter servido de freio ao alastrar de sentimentos, ou pelo menos declarações, explicitamente racistas no discurso político e público no Portugal democrático. Outra foi que esse mesmo sucedâneo serviu amiúde para obscurecer manifestações de discriminação racial que persistem no presente, desta forma impedindo que o racismo seja mais eficazmente combatido. A estas poder-se-ia acrescentar outras. Por exemplo, a de que o uso instrumental do lusotropicalismo pelo Estado Novo não se limitou a uma forma repetida e, na mesma medida tosca e directa, de propaganda. Manifestou-se de diversas formas, da estruturação dos currículos escolares ao controlo do aparelho mediático durante a ditadura. Traduziu-se também em recorrentes comparações entre realidades do império com as de outras sociedades, sobretudo aqueles casos que representavam formas mais óbvias, e denunciadas, de uma organização social e política estritamente racial, como na África do Sul ou na Rodésia. Falta, ainda hoje, perceber de que forma esta comparação não contribuiu para a cristalização de uma ideia de discriminação racial que se fixa na imagem das casas de banho segregadas ou na proibição de casamentos mistos, não capturando práticas e políticas que se desenhavam em torno de um claro viés racial, ainda que de forma não tão explícita, logo mais subtil e resistente ao correr do tempo.

São muitas, e diversas, as formas através das quais podemos pensar como o processo de resistência à descolonização encabeçado pelo governo autoritário português condicionou, e talvez ainda condicione, a forma como, no debate público, reflectimos sobre racismo no Portugal contemporâneo. Sendo muitas e diversas as formas de interpretar os efeitos do lusotropicalismo nos debates contemporâneos sobre racismo, não me parece demasiado arrojada a ideia de que o lastro histórico do Estado Novo limitou, de certa forma, a possibilidade de introduzir  declarações ou tropos abertamente racistas em discursos políticos proferidos em espaços institucionalizados ou mesmo nos media, para o que contribuiu, também, a evolução normativa, tanto no quadro do Estado português como internacionalmente. Houve sempre excepções, é claro, e há infaustos acontecimentos na nossa história mais recente que se encarregam de nos lembrar disso. Formas estritamente biológicas de dar corpo a um suposto “conceito” de raça e a defesa de sociedades etnicamente homogéneas, protegidas de qualquer forma de “miscigenação” ou de entendimentos plurais da pertença, manifestaram-se nos anos finais do império, e sobreviveram à transição democrática, como pode ser atestado pela presença de grupos supremacistas em Portugal há já longas décadas. 

Arrisco-me, contudo, a sugerir que este estado de coisas está a mudar de forma mais substantiva hoje. Ainda há pouco tempo, uma deputada do Chega questionou (ainda que se tenha apressado a fazer marcha-atrás) a “identidade” da selecção francesa, evocando para isso uma foto de Kyllian Mbappé, nascido e criado em França, publicando-a e escrevendo: “França aos franceses”. Longe de ser um método infalível, quem acompanha as publicações nas redes sociais da deputada identifica um conjunto de padrões. As suas publicações procuram acompanhar o ritmo de publicações de outras figuras ou redes da direita radical no estrangeiro (facto que me foi relembrado por utilizadores do X [antigo Twitter], a quem agradeço) mas procuram também acompanhar o “pulsar” das gerações mais jovens de portugueses radicalizados ou radicalizáveis. Não é por acaso que se dá a “marcha-atrás”, acontecimento que está longe de ser inédito na postura da deputada nas redes sociais. Trata-se, creio, de um permanente e contínuo teste a ver até onde pode ir. Também se poderá dar o caso de estar a ver engenho maquiavélico onde apenas se encontra oportunismo não muito pensado. Mas, da mesma forma que normalmente argumento que é preciso levar o pensamento e acção daqueles que conduziram o Estado Novo a sério, também diria que desajudará mais do que iluminará subestimar aqueles que fizeram do projecto da direita radical um caso de sucesso, tanto de um ponto de vista estritamente eleitoral como enquanto força gravitacional de carreiristas e arrivistas de diversa estirpe, franchise que começa agora a ser disputado. 

Entendamo-nos, o cinismo não atenua o dolo, e não há razões para estar optimista. Não foram poucos os que subscreveram as suas palavras. Como não são poucos os que, nas redes sociais, e como referido no dito ensaio, questionam a “verdadeira” pertença de atletas portugueses que obtêm medalhas em nome da pátria, sempre que estes apresentem uma tez um pouco menos clara. Dá-se, aqui, um corte com o lusotropicalismo, mais genericamente, mas também, em muitos casos, com a tese defendida estrenuamente pelo Estado Novo, que postulava que os antigos territórios coloniais eram, efectivamente, Portugal. 

Há cerca de dez anos, nas redes sociais, comentários deste tipo mereceriam uma outra censura social. Afinal, os portugueses não distinguiriam ou discriminariam em função da cor da pele, e a vitória de atletas portugueses com origens nos países hoje independentes, mas que antes foram colónias, seria uma vitória póstuma da ideia de império, cuja desintegração, segundo a mesma narrativa, teria redundado na afirmação do racismo, ao mais claramente organizar territórios e populações em função da cor da pele (o que não deixa de conter um pitada de verdade, ainda que muito parcial). De resto, para muitos, os laços que se mantêm após as independências entre Portugal e as antigas populações colonizadas seriam a prova da validade da tese do Estado Novo e da robustez de uma ligação “espiritual” que sobrevive às diversas independências. 

Entre outros aspectos, a enxurrada de comentários que assola qualquer publicação que anuncie os sucessos desportivos de portugueses como Pedro Pichardo ou Auriol Dongmo parece apontar para uma mudança, em certos sectores da sociedade portuguesa e, sobretudo, nas faixas etárias mais novas, na forma como “raça” e discriminação racial são entendidas,  e também na relativa unanimidade que existia em torno do opróbrio social que tais manifestações deviam merecer. 

Com esta ideia na cabeça, fiz um pequeno exercício no X , publicando um tweet em que afirmava que, no momento em que Salazar deixou de ser presidente do conselho de ministros, havia mais muçulmanos a viver em território português do que ao dia de hoje, o que é factualmente correcto. Já levo alguns anos desta conversa, e não há nada de extraordinário na recusa de muitos interlocutores em aceitar que a sociedade portuguesa de hoje ainda conserva uma certa dose de responsabilidade perante o mandato que o império declarou seu. Isto é, não é particularmente surpreendente que muitos portugueses, mais ou menos ou até nada sensíveis à doutrina estado-novista, entendam que, com a descolonização, Portugal, enquanto Estado e sociedade, ficou liberto de qualquer responsabilidade perante as antigas populações colonizadas. Mesmo que sejam as mesmas populações a quem, desde pelo menos finais do século XIX, ninguém perguntou se se sentiam mesmo portuguesas. Pelo contrário, combateram-se três guerras em territórios diferentes para garantir que elas continuavam portuguesas, pressuposto assente num suposto plebiscito diário e silencioso, como ensinava Renan, mas que recusava qualquer possibilidade de essas populações serem consultadas num plebiscito de facto. 

Trata-se de um sentimento que trai uma ideia peculiar de convívio multicultural. Enquanto estas populações vivessem lá longe, numa posição social, económica e política diminuída, teríamos todo o gosto em acolhê-las à distância. Coisa diferente seria, com a descolonização e com Portugal privado dos territórios ultramarinos, fazer jus à ideia de que o nosso compromisso com uma Portugalidade global se iria manter, nomeadamente com as populações que, no longo tempo histórico, foram as que mais sofreram: no tempo do império, durante a descolonização e nos futuros pós-coloniais e pós-imperiais que se lhe sucederam. 

Porém, a centena e tal de comentários com que fui presenteado não afinaram exactamente por este argumento. Alguns houve, como é normal, que me recomendaram sortidas formas de sexo não-reprodutivo. Outras que instaram a universidade a que pertenço a que tomasse “medidas” porque eu teria incorrido em argumentos “falaciosos”. Mas a maior parte apontou para um facto claro: Moçambique e Guiné-Bissau não eram territórios portugueses, nem essas populações eram portuguesas — um corte não apenas com o articulado constitucional da altura, mas com a própria retórica repetidamente enunciada pelos dirigentes, ideólogos e propagandistas do Estado Novo.

Muito provavelmente, se colocados perante a questão de se eram estes territórios parte de Portugal, noutro contexto, muitos destes utilizadores, que denotam particular afinidade por nomes falsos, escudos com cruzes de Cristo e copos de vinho tinto (uma combinação perigosa…) diriam que, sim, Guiné e Moçambique eram Portugal. Como dizia um conhecido no X, o problema da maioria era o de haver muçulmanos em Portugal continental, não lá nos confins do império, e não lhe disputarei a razão.

Mas creio que não será inusitado perceber como se reconfigura, neste meio, a relação com a história e memória do antigo império, pois creio que é bastante evidente, e sintomático, que algo está a borbulhar. Por exemplo, numa conta do X que se dedica a glorificar os feitos do Estado Novo podemos ver uma imagem de propaganda em que três soldados africanos seguram uma bandeira portuguesa, procurando demonstrar o apoio multirracial de que aquele beneficiava na sua gesta para manter o império incólume. Um dos comentários que se segue é o seguinte: “3 não portugueses. Deixei de seguir esta página”. Outro: “muito gostam os boomers de catinga”. Segue-se outro que refere que “esta página é gerida pelo brasileiro mestiço YYYYY”, desta forma questionando a pureza biológica da página (há coisas do diabo). Trata-se, pelo que se percebe da leitura da sua página, de alguém que intervem frequentemente em tudo o que tenha que ver com a história imperial do Estado Novo, defendendo os seus supostos princípios de “assimilação cultural” em vez de critérios estritamente fenotípicos de definição de pertença. Entre as coisas que se pode ler na sua página, está a ideia de que o Chega está “internamente” a estudar a possibilidade de recriar um novo “estatuto do indígena”. Ou seja, um estatuto que diferencia racialmente, mas abre a possibilidade de teórica de “assimilação”, para lidar com a crescente diversidade étnica e racial de “Portugal” e, em particular, com os fluxos migratórios. Afirma, contudo, que “o próprio Chega está fracturado entre os que, como eu, são lusotropicalistas e acreditam que os imigrantes podem vir se cumprirem os requisitos para assimilação do antigo Estatuto do Indígena e da União Nacional e de outro lado os racistas que querem implantar uma one drop rule cá”.

O estatuto do indígena, ou indigenato, é uma via interessante para se perceber como estão a evoluir estas discussões em certos sectores da sociedade portuguesa. Importa aqui um parêntesis, para quem não teve vagar de ler o ensaio supra. O estatuto do indígena, ou como é mais frequentemente conhecido, o regime do indigenato, trata-se da estrutura jurídica, política e administrativa “especial” onde se enquadrava a maioria das populações negras das três colónias mais populosas (Angola, Moçambique e Guiné), um regime distinto do que se aplicava aos “cidadãos portugueses”, e que, desde a década de 20 do século passado até o início da década de 1960, lhes negava direitos políticos e civis e lhes impunha deveres particulares, como o dever moral de trabalhar, base conceptual do regime de trabalho forçado que acompanhou a reputação do império durante décadas.

Muitos destes utilizadores das redes sociais, frequentemente, face a discursos como este, que procuram negar a natureza discriminatória do indigenato, chamam a atenção para o facto de o indigenato referir explicitamente a “raça negra” como critério inexorável na atribuição desta condição jurídica diminuída. Acreditam que Salazar não acalentava ilusões sobre as  diferenças inultrapassáveis entre “raças”. Mais, acreditam que a abolição do estatuto, como diz um utilizador, só aconteceu por pressão de factores externos, nomeadamente a interferência da ONU, quando o império se encontrava em perigo, com o início da guerra em Angola e a crescente projecção internacional, negativa neste caso, da “questão colonial portuguesa”. Como afirma uma conta também anónima mas com considerável alcance, “Em Portugal, os não-brancos do império só tiveram cidadania plena nos anos 1960s”. É muito curioso, porque estes argumentos, partilhados por vários historiadores (incluindo eu próprio) foram tradicionalmente usados para demonstrar que, não obstante toda a retórica, o regime estado-novista nunca abandonou completamente critérios raciais, mais ou menos explícitos, para governar o seu vasto império, e que resistiu denodadamente a reformar-se por livre recriação, sendo amiúde levado a fazê-lo como forma de responder a acusações, denúncias e crescente pressão política. Em comum, temos a rejeição de uma narrativa que apresenta o império português como essencialmente não-racista, seguindo as pisadas de Franco Nogueira quando afirmava o pioneirismo português na construção de sociedades multirraciais. Mas nestas contas próximas da direita radical essa constatação aponta num sentido ético e político distinto: procura-se demonstrar o racismo sempre presente no Estado Novo, e o carácter instrumental das reformas normalmente atribuídas a Adriano Moreira, para resgatar orgulhosamente o legado racista da direita radical portuguesa. 

A direita radical portuguesa, hoje, portanto, deve afirmar sem pejo esse legado, afirmando-se racista, não cedendo ao lusotropicalismo que subverteu e emasculou o salazarismo. Como diz mais um utilizador, com a bandeira portuguesa no nome, sobre este assunto: “Salazar, por muito que goste dele, deixou um cancro gravíssimo na nossa direita”. Como refere um outro, que também justifica a revogação do indigenato com a pressão da ONU, “E, sim, se somos brancos temos que preservar essa natureza racial”. A mesmo conta citada em cima, com vários seguidores, não podia ser mais explícita: “Salazar era racista e há vários exemplos disso”. Um outro, saturado, não deixa margens para dúvidas: “Pode vir com a mesma cassete habitual lusotropicaleira que aqui não cola: negros são africanos e não pertencem a Portugal, pertencem a África e foi por isso que lhes demos a independência”. Repare-se como há aqui o recurso sistemático ao que tem vindo a ser produzido nos estudos sobre o colonialismo nas últimas décadas emprestando-lhe um sentido totalmente diverso, que em alguns casos questiona tibiamente a “cedência” de Salazar, noutros procura desvelar os seus verdadeiros sentimentos, e noutros, ainda, rejeita por completo a herança do lusotropicalismo com um vigor que não empresta contra aqueles que, defendendo que se tenha em conta os legados do Estado Novo na sociedade actual, apontam para o seu carácter incontornavelmente racista.

Isto é apenas um apanhado rápido de tweets, facilitado por alguma experiência em acompanhar estes temas. Não é difícil expandir o universo a que corresponde este discurso, com algum trabalho. Já não é tão fácil perceber, como dizia no início, quantas pessoas perfilham este tipo de ideias e de que forma isto reverbera e reverberará política e socialmente. As redes sociais geram, com facilidade, ilusões de óptica ou efeitos de paralaxe. Um estudo mais robusto, creio, ajudar-nos-ia a perceber a dimensão da questão, coadjuvado por outros métodos, de entrevistas a inquéritos. O que aqui quis, de certa forma, foi chamar a atenção para um fenómeno, talvez marginal, mas que se torna cada vez mais visível para quem acompanha estes temas. O problema aqui não é historiográfico ou circunscrito aos discursos públicos que versam sobre a história e memória colectiva. É uma janela a partir da qual nos podemos interrogar sobre o sentido destes debates na contemporaneidade, numa altura em que se multiplicam contas nas redes sociais que se dedicam a criar pânico social, a maior parte das vezes mentindo ou insinuando, imputando pulsões violentas e irracionais supostamente intrínsecas a grupos étnico-raciais que não se coadunam ao que têm pela norma “portuguesa”. De volta à “raça”, estamos perante um conjunto de portugueses, creio, cada vez maior que se entretém a alimentar fantasias de uma guerra racial que trai um enorme medo de tudo e todos. E, depois de décadas a acreditar em múltiplos excepcionalismos, desde o Portugal harmonioso e ultramarino até ao mais recente sobre a imunidade do país à direita radical, faríamos melhor em não ignorar o que corre o risco de alastrar de caves bolorentas até ao salão nobre da assembleia da república, agora que a oferta de partidos dispostos a acolitar estas ideias se vem multiplicando; revelador da aliciante oportunidade de negócio que muitos aqui antevêem, deitados borda fora os escrúpulos. Sem que nos tenhamos apercebido, a forma como se estruturam as posições mais ou menos fixas que nos habituámos a ter por garantidas nos debates sobre o passado recente está a mudar e a fragmentar-se. 

Autor:
1 Julho, 2024

José Pedro Monteiro é investigador auxiliar no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. Doutorado em história (2017), tem-se dedicado ao estudo da história do colonialismo tardio, com um particular foco nas suas dimensões internacionais e transnacionais. Entre outras publicações, é autor do livro Portugal e a Questão do Trabalho Forçado: Um Império Sob Escrutínio (1944-1962) (Edições 70).

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