Solimán López gere um museu que é um disco externo: “Em breve teremos uma versão ADN do Harddiskmuseum”

Solimán López gere um museu que é um disco externo: “Em breve teremos uma versão ADN do Harddiskmuseum”

11 Agosto, 2020 /

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"Nunca estuvimos tan cerca del cosmos, de lo inalcanzable y de lo intangible como a través de lo digital, ofrezcamos el valor que se merece a este acto de humanidad."

Todos conhecemos museus. Seja o museu da nossa terra natal, dedicado ao poeta local, os grandes museus nacionais ou as respeitáveis instituições de promoção de arte de determinados géneros ou épocas. Contudo quase sempre no exercício de imaginação de um museu começamos por algo que, neste de que hoje te falamos, não existe: pelas quatro paredes. O HardDiskMuseum é um museu que, tal como o nome indica, não existe fisicamente mas num disco externo de 2TB. Fundado pelo artista espanhol, Soliman Lopez, também director do Departamento de Inovação da Escuela Superior de Arte y Tecnología, de Valência, o projecto que tem levado a exposição centenas de artistas, incluíndo dos portugueses Paulo Arraiano e Inês Norton, entre outros, destaca-se pelo seu carácter inovador.

Acessível em harddiskmuseum.com e visitável em space.harddiskmuseum.com, ou usando uns óculos de realidade aumentada num dos seus eventos ao vivo, o museu que expõe actualmente uma instalação sonora, explora constantemente os limites e os objectivos da sua própria existência, procurando sempre inovar nas formas de usar a tecnologia. Foi sobre isso que falámos com o seu fundador durante o período em que ainda vigorava o alerta pandémico. Numa entrevista por e-mail quisermos perceber mais e melhor o que distingue este espaço, online, e qual o papel que o seu fundador lhe reconhece enquanto ferramenta pedagógica sobre o próprio espaço em que se encontra — uma entrevista sobre arte e tecnologia, e todas as dimensões em que estas se cruzam. Esta é de resto a reflexão em que se baseia o projecto, expressa em 2015 num manifesto redigido por Soliman, onde o autor reflecte sobre o intangível do digital como uma proximidade cósmica que a humanidade devera valorizar.

“Nunca estuvimos tan cerca del cosmos, de lo inalcanzable y de lo intangible como a través de lo digital, ofrezcamos el valor que se merece a este acto de humanidad.”

Assumindo o conceito de museu e tornando-o virtual, este acaba por perder parte do seu peso simbólico e institucional. Ao mesmo tempo a narrativa de cada exposição ganha mais importância. Como vês essa relação?

Em geral a criação digital que é, por sua vez, intangível consegue estar muito próxima do que se relaciona com o puro mundo mundo das ideias. Na criação digital e no mundo virtual as barreiras são diferentes. Os limites são difusos. As circunstâncias dizem que quando um museu intangível é considero, ele é parte do jogo. Os museus como instituições têm várias linhas de trabalho, que são diferentes de acordo com o tipo de museu.

Tudo o que tem a ver com criação contemporânea tem a ideia de inovação implícita e por isso as suas barreiras diluídas.

O peso específico da arquitectura perde-se com a virtualidade, mas outros pesos igualmente identificáveis pelo utilizador se levantam. Sucintamente, eu acredito que a particularidade de um museu que se tornou virtual não assenta na sua carga simbólica enquanto instituição mas em quem gere a instituição. Neste caso dos museus virtuais, eu acredito que a instituição é mais uma comunidade e, como tal, também tem as suas restrições conceptuais.

Mas não nos esqueçamos, para além disso, que as próprias definições de museu, restringem o seu conteúdo em determinados enquadramentos teóricos e conceptuais, com objectivos definidos pela natureza do seu repositório.

No mundo digital cada vez mais dominado por grandes corporações, em que o uso das pessoas da tecnologia está resumido essencialmente aos social media, pode este tipo de iniciativa ser vista como um resgate da tecnologia para explorar o potencial emancipatório da arte, criando um espaço para a arte num espaço público digital?

Cada manifestação que emerge da periferia é digna de análise, especialmente hoje em dia em que os sistemas são tão alienados por estas três grandes corporações.

A informação hoje em dia, mais do que nunca, é uma moeda válida e legítima, que gera especulação com o seu conteúdo. Os sistemas que se tornam auto-suficientes são parte de uma micro-comunidade que conseguem dispensar alguns dos pilares básicos do comportamento global. Dessa forma, eles funcionam como um registo de novos resultados de eventos nunca antes visto, identificando oportunidades para o futuro e modelos, neste caso, culturais e artísticos.  O Harddiskmuseum é um espaço inventado, sem estrutura prévia, que emergiu de lado nenhum e é, por isso, alien para a maior parte dos problemas e ecossistemas de hoje em dia. Sem dúvida, é um exemplo de como um novo modelo é possível.


Assumindo o digital como um espaço de possibilidades e o disco externo como uma potencial arquitectural, aportamos uma visão mais analítica da tecnologia. Pode isto contribuir para uma maior consciencialização da internet e da tecnologia em si, lembrando as pessoas da contra-parte física do espaço digital?

A questão, como em muitas outras coisas na vida, é de escala. De uma visão micro ou de uma visão macro. Se nós analisarmos a construção de informação, nós finalmente observamos como tem uma componente indissociável de matéria. A internet é tudo a que chamamos cloud tem a sua matéria nos servidores, cabos e discos rígidos. Essa é uma das referências do Harddiskmuseum, mostrar a importância da impressão dos ficheiros na superfície do disco rígido, da sua escritura e da sua micro-impressão.

O museu em si é um objecto de arqueologia digital. Não pela sua tecnologia mas pelo que significa como objecto independente da ideia de cloud ou de informação flutuante. Quando o agarramos nas nossas mãos, o vemos num expositor ou o observamos como uma imagem, nós tornamo-nos cientes da construção arquitectónica do objecto.

Se o harddiskmuseum fosse do tamanho do MOMA, estaríamos a falar de um museu totalmente compreensível pela comunidade cultural, mas como um objecto que poderíamos agarrar nas nossas mãos, a sua própria escala leva a incompreensão. Na realidade, são o mesmo, um repositório de ideias sobre o mesmo conceito.

Enquanto museu digital, como encaram a ideia de coleção? O museu terá o limite de 2TB do disco ou estão a pensar em estabelecer um outro limite para a coleção?

O projecto está mais aberto que nunca. Ao longo do tempo percebemos que o Harddiskmuseum é mais do que um simples disco. É um objecto de pensamento que gera a sua própria comunidade. Esta comunidade, como tal, não tem limites nem barreiras. É global e indefinida. Os limites do próprio armazenamento digital são cada vez mais ilimitados também graças a avanços tecnológicos e por isso o museu nunca deve ter esse problema. Nesse sentido estou a trabalhar numa novo conceito de armazenamento de informação no disco, neste caso em código genético. Em breve teremos uma versão ADN do Hard Disk Museum. No princípio a ideia era os 2TB para a coleção completa mas se conseguirmos levar isto avante vamos adoptar o conceito de “franchising” e vamos ter um segundo disco com novas peças. Estamos a trabalhar para que aconteça. No final de 2020, esperamos ter 300 artistas a participar neste projecto.

Estando online, há duas questões que se levantam: a possibilidade de descarregar os ficheiros e manter a sua propriedade. Como vês estas contingências? O mercado da arte e os seus compradores são uma parte importante na definição estratégica?

Uma das primeiras coisas que eu percebi quando comecei a criar arte digital, foi que a arte não nos pertence. Mão devíamos associar os mesmos conceitos do material naquilo que não o é. O mercado da arte é precisamente baseado nisso, a propriedade e a exclusividade dos objectos. Quando esta questão é interiorizada tudo muda. Sentes uma espécie de liberdade e um descomprometimento que tem muitas relações com a cultura oriental em alguns pontos.

Mas quanto à salvaguarda dos arquivos, temos trabalhado nisso desde o princípio porque o trabalho não é todo meu e os outros artistas não têm de pensar como eu penso.

Os trabalhos no Harddiskmuseum são inestimáveis e merecem ser cuidados e preservados. Nesse âmbito, estou a trabalhar com curadores como o Abraham San Pedro no sentido de proteger os conteúdos originais que são expostos no museu, não como um objecto de mercado mas de respeito e compromisso para com o que é mais importante no museu, os ficheiros.

Finalmente, uma das coisas que voluntariamente percebemos é que os ficheiros dos pertencem a nós e à máquina ao mesmo tempo, outra coisa é o trabalho intelectual. Os artistas vivem precisamente disso, das ideias, e respeitá-las é parte da nossa herança.

Concordo que os ficheiros não nos pertencem porque é difícil encontrá-los (embora agora, com a blockchain seja mais fácil), mas as ideias devem permanecer intactas e respeitadas.

Os espaços culturais sempre tiveram um papel social. Com a socialização online dominada pelos social media, como pode um museu digital promover esta relação? Como tentam promover diálogos entre os vários actores, como visitantes, artistas, curadores, jornalistas, etc?

Uma das minhas obsessões sempre foi criar micro-comunidades. Analisar o que acontece entre elas e dentro delas. É um exercício quase científico que oferece um valor incrível. O Harddiskmuseum permitiu a outros encontrar aquilo de que estava à procura, permitiu colaborações entre artistas, a vida de trabalho e uma longa lista de efeitos colaterais.

Com a imposição das redes sociais como mecanismo social e gestor das comunidades, nós procuramos agora estender essas ligações para estes ambientes. Ao mesmo tempo estamos a olhar para como podemos usar formas de comunicação disponíveis como a realidade aumentada que continua a conquistar esses micro-espaços. Em suma, é tudo sobre criar ligações, virtuais e reais, unir os agentes. A forma de continuar a estabelecer conexões nesta rede é precisamente, continuando a criar comunidades. Por essa razão este ano estamos a lançar a exposição Social Motion, quem tem esse propósito concreto. E vamos participar na CADAF com a exposição New Habitat, construída em conjunto com Carlos Sanchez.

Acreditas que tecnologias como a Realidade Virtual / Aumentada podem ser a plataforma para uma aceitação massiva de outras formas de presença online, ou que o que temos hoje em dia seria suficiente para repensar a experiência do mundo digital?

A internet of things vai continuar a evoluir para ser uma das chaves para o futuro. Os ecrãs ainda têm algum tempo em que se manterão como o espaço da informação por excelência, mas a indústria e eu próprio estamos a trabalhar para reduzir esta dependência. O ecrã gera uma desconexão do ambiente que nos faz esquecer a realidade e propor termos como realidade aumentada, virtual ou outros. O futuro é baseado em virreality, um espaço que não é nem um nem outro, um espaço que é uma construção de ambos.

Essas tecnologias, como as entendemos hoje, desaparecerão, pois nossa geração ainda tem as referências do passado. Quando as próximas gerações viverem e co-existirem neste espaço, de virreality onde tudo está misturado, isso será chamado da nova normalidade.

Resumidamente, eu acho que nós ainda não atingimos esse espaço idílico, da completa virreality, portanto a arte ainda não se surge de uma forma 100% em nenhuns desses espaços. O que é claro é que a tecnologia não vai parar de evoluir e novos formatos continuam a emergir.

O design expositivo tem ganho uma importância significativa e obrigado os museus a prepararem-se constantemente para mudar. Planeiam explorar este potencial evolutivo de um museu digital, uma vez que não depende realmente do espaço e pode mudar ainda mais?

Essa é uma das minhas grandes preocupações ao dar palco aos conteúdos de artistas. Por exemplo na última exposição, Trans Noise, que é baseada em arte sonora, propusemos uma interface com som especializado para que a visita web fizesse total sentido. É uma estratégia de som que faz com que sintas que estás no espaço com condições naturais reais e isso ajuda a entrar na ideia da exposição. Mas nem tudo vai acontecer dentro do ecrã. Há muitas oportunidades para explorar fora dele, mesmo que o museu seja um disco rígido. Nós continuamos a achar que as galerias virtuais deviam parecer-se com espaços reais e isso é um dos maiores erros que fazemos na concepção desses espaços. O digital, o virtual, o que acontece no ecrã tem as suas próprias regras, gravidade e lógica. A liberdade é absoluta, portanto as opções e soluções são infinitas. Este é sem dúvida um muito por ser explorado nesse sentido, e a indústria tem-no activado mais do que nunca por causa da Covid-19. Não há dúvida que um futuro excitante nos espera depois disto.

Autor:
11 Agosto, 2020

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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