Quão má é a Linha do Oeste?

Quão má é a Linha do Oeste?

15 Março, 2019 /

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Que benefícios uma ligação ferroviária mais rápida à capital traria para uma cidade tão efervescente como Leiria e para todas as outras localidades servidas pela Linha do Oeste?

A separar Lisboa e Leiria estão apenas 150 km. Ou seja, 1h30 de carro, 2 horas de autocarro da Rede Expressos, mas 3, 4 ou mais horas de comboio. Para comparação: Lisboa e Porto distam em 300 km; de comboio são menos de três horas. Que benefícios uma ligação ferroviária mais rápida à capital traria para uma cidade como Leiria e para todas as outras localidades servidas pela Linha do Oeste?

12h01, estação de Entrecampos, Lisboa. O painel indicava que o comboio regional para as Caldas da Rainha ia partir a essa hora e o aviso sonoro confirmou-o. No cais parou uma composição amarela, apresentável e de tracção eléctrica. Algo não fazia muito sentido ali, uma vez que na Linha do Oeste – que há anos que vive com a promessa de electrificação – circulam locomotoras a diesel, velhas e muitas vezes grafitadas.

Entro no comboio, que devagar avança para parar segundos depois. Ainda não tínhamos deixado a estação de Entrecampos, mas estávamos na zona poente. De repente, um funcionário da CP num tom amargo aparece, e avisa-me e às outras duas pessoas que estavam naquela carruagem que temos de sair e mudar de comboio. O homem segue para as outras carruagens, os vários passageiros vão saindo aos poucos. Alguns dispersam. Outros dois ou três e eu ficamos ali sem ver outro comboio e sem perceber muito bem se ali devíamos ficar. O mesmo funcionário lá sai para o exterior também, terminada a vistoria das carruagens; meto conversa com ele.

“O outro comboio vai parar aqui, já devia aqui estar, deve estar atrasado. Se quiser, pode esperar lá dentro”, diz-me. A máscara árida do senhor começava a cair à medida que surgia o registo simpático mas rígido de quem trabalha nas linhas regionais da CP – afastado da normalidade dos centros urbanos – costuma apresentar. Esperamos uns cinco minutos – eu, o revisor e as duas ou três pessoas –; mas nenhum sinal de comboio. “Sempre que vir uma locomotiva eléctrica como aquela, já sabe que não é. A linha não é electrificada. Agora temos de mudar para uma a diesel. A eléctrica só faz o trajecto entre Entrecampos e Santa Apolónia, e depois aqui em Entrecampos muda-se para a outra. Fazem isso porque há falta de material. Estas eléctricas há mais, mas das diesel temos poucas. São já muito antigas, vieram lá da Linha do Alentejo. Da ligação a Beja.”

CP vs Rede Expressos

Para aquele funcionário da CP, cujo nome acabei por não saber, a culpa é das empresas de autocarros, que pressionam o Governo para não investir na Linha do Oeste. “Há muita gente que vive na zona do Bombarral, Torres Vedras… e que vem trabalhar para Lisboa. Mas não escolhem o comboio, claro. Vão de autocarro ou de carro, que é muito mais rápido. Se a linha fosse electrificada, era uma horinha até às Caldas. Mas você vai para onde? Leiria? Isso seria uma hora e meia. Está a perceber?”

Sim, Caldas. A Linha do Oeste está, no fundo, dividida em dois: entre Lisboa e as Caldas da Rainha há uma ligação regional, entre as Caldas e a Alfarelos outra. Mas para chegar a Leiria da capital, existem outras combinações que se podem fazer, como apanhar um comboio urbano da Linha de Sintra até à estação Mira Sintra-Meleças, ou ir num Intercidades até Alfarelos (passando pelo Entroncamento) e entrar a norte na Linha do Oeste. Independentemente da escolha, o resultado é o mesmo: trocar de comboio pelo menos duas vezes e mais de 3 ou 4 horas de viagem.

Lisboa e Leiria já foram ligados por Intercidades entre 1991 e 1998, e entre 2002 e 2005 quando o serviço foi restituído só aos fins-de-semana com, segundo a imprensa local, uma procura elevada. Os últimos anos têm sido marcados por contestações da sociedade civil e também de alguns partidos políticos à degradação da Linha do Oeste. Pelo meio, ouviram-se promessas de modernização e até se falou numa nova estação em Leiria para servir a ligação de alta velocidade entre Lisboa e Porto que nunca existiu. Promessas e mais promessas nas quais o revisor com quem fiquei a conversar já nem acredita. “Já se fala na electrificação há anos. Não sei se vai ser desta.” O tópico era agora a Ferrovia2020, o massivo programa de investimento na ferrovia preparado pelo actual Governo com a ajuda de fundos comunitários. A renovação da Linha do Oeste aguarda ainda concurso público, mas prevista está, além da electrificação de todo o troço, a criação de vias duplas para permitir a passagem de dois comboios ao mesmo tempo ou a renovação de estações e apeadeiros.

Com vinte minutos de atraso, o comboio lá aparece. É azul e velhote. “Este aqui tem outro cheiro, não é? Cheira menos a hora de ponta.” Por cima das portas, o mapa que aparece não é o da Linha do Oeste, mas da do Algarve, o que acaba por confundir dois turistas que entraram mais adiante e que não sabiam quantas estações eram até ao seu destino. Entramos, o senhor pica-me o bilhete, vai cada um à sua vida. O comboio segue até às Caldas, duas horas de viagem, para depois seguir para a Figueira da Foz. Apesar de serem duas ligações separadas por meia hora de descanso na estação das Caldas (que acabou por ser só 10 minutos dado o atraso inicial), não foi preciso trocar para outra composição. Mais uma hora de viagem depois, chego a Leiria – estação a meia hora a pé do centro da cidade.

A Linha do Oeste poderia servir uma população de mais de 470 mil pessoas, segundo os censos de 2011 (Distrito de Leiria). Além de ser uma região com potencial turístico – Óbidos, Nazaré, Alcobaça, Peniche… –, é um território que poderia beneficiar de uma ligação rápida a Lisboa por outros motivos. Leiria e Caldas da Rainha são, por exemplo, duas cidades com uma boa vibe cultural e artística. Em Leiria, onde Eça de Queiroz se estabeleceu, nasceram alguns dos artistas e bandas portuguesas que mais gostamos de ouvir e de curtir em gigs; nas Caldas, terra de Bordalo Pinheiro, os alunos da Escola Superior de Artes e Design mexem a cidade com cenas como o Caldas Late Night ou o Impulso. Do ponto de vista do commute diário, isto é, da rotina casa-escola/trabalho, a proximidade ferroviária tornar-se-ia num bom motivo para deixar o carro em casa e uma alternativa confortável às operadoras privadas de autocarro. Serviria não só quem trabalha na capital mas vive no Oeste, por exemplo, como também colocaria os estudantes da ESAD ou do Politécnico de Leiria a 1h-1h30 da capital.

Mas também Lisboa poderia beneficiar de uma aproximação ferroviária a Leiria. Diariamente entram na capital cerca de 370 mil carros, 67 mil chegam pela A8 – o principal eixo rodoviário do distrito de Leiria. Menos carros na capital, mais pessoas a circular de transporte público são boas notícias para o trânsito da cidade e para a poluição atmosférica. Podem também ser boa resposta à pressão imobiliária em Lisboa, com a malha urbana a espalhar-se geograficamente, assim como o emprego, o comércio, a cultura… Afinal, a ferrovia, pela comodidade, rapidez e simplicidade que consegue oferecer, não é só uma questão de mobilidade e proximidade, é uma política de descentralização.

A viagem de Lisboa a Leiria para ir ver os First Breath After Coma foi dolorosa; já a viagem por NU teve a sensação oposta. E o regresso foi menos doloroso: Rede Expressos, autocarro moderno, estação no centro da cidade, chegada a Sete Rios em menos de duas horas.

Autor:
15 Março, 2019

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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