Do brat summer ao bratwashing: o que significa ser brat quando tudo é brat?

Do brat summer ao bratwashing: o que significa ser brat quando tudo é brat?

26 Julho, 2024 /
Uma montagem ao estilo brat summer, com o fundo verde lima e o texto 'brat'. Em torno do texto vemos reflexos de luz, uma cauda de glitter, telemóveis motorola cor-de-rosa e logos da Von Dutch.
brat summer / Shifter

Índice do Artigo:

Em memes, danças e até na ida ao supermercado, brat estava em todo o lado, até nas presidenciais norte-americanas. Mas se Kamala Harris É brat, o que é, afinal ser brat?

Lembro-me da primeira vez que ouvi Charli XCX com a consciência de que era Charli XCX. Como milhares de outras pessoas, estava a atravessar a febre The Fault in Our Stars; já tinha lido o livro de John Green, emprestado por uma colega, e acabei por ir ver o filme. Não dava para sair da sala de cinema sem ficar com “Boom Clap” na cabeça e a querer saber e ouvir mais. A vibe de Charli, acabei por perceber, não era bem a do filme e do videoclipe a deambular pelas ruas e canais de Amesterdão. E foi isso que me agradou. 

A história de Charli XCX era muito mais Skins do que The Fault in Our Stars. Cresceu na zona este de Londres, começou a escrever músicas aos 14 anos e a publicá-las no MySpace, um dia foi contactada por um promotor de raves e festas clandestinas que aconteciam num armazém (o icónico Rave, dizem) para ir tocar. Para quem, ao contrário de Charli, cresce numa cidade que podia ser uma vila, o imaginário mais próximo que se consegue ter desta realidade é precisamente o cenário de um episódio da primeira temporada de Skins em que Effy decide fugir de casa para ir a uma rave num armazém. 

Foi por essa altura que Britney Spears entrou num cabeleireiro com um casaco de capuz e decidiu rapar o cabelo. Não sabemos até que ponto o breakdown de Britney teve um impacto em Charli XCX, que já disse por várias vezes ter sido influenciada pela cantora norte-americana, pelas britânicas Spice Girls e pela ideia de ser uma pop star.  O que podemos deduzir é que a honestidade de Britney e a confiança das SG marcou Charli de alguma forma. Assim como, mais tarde, a liberdade de Ke$ha. 

brat chegou-me tão inesperadamente quanto Boom Clap. Ou melhor, o fenómeno de brat chegou-me tão inesperadamente quanto a entrada de Boom Clap no filme que fui ver ao cinema na adolescência. O conceito de brat (como traduziriamos para português, fedelha?) pareceu bastante natural vindo de Charli xcx, que sempre escreveu sobre transgressão e coisas que nem sempre são bonitas. Desamor, inveja, tristeza, estados depressivos, o medo da falha. E nos fez dançar enquanto cantávamos, aos gritos, todos esses estados de espírito. No documentário que acompanha o disco que fez em quarentena, durante a pandemia de Covid-19, How I’m Feeling Now, percebemos que o que escreve está colado à sua vida e que é a forma como põe em palavras todos esses sentimentos que gera um grupo de fãs coeso onde se encontram sobretudo pessoas LGBTQI+ ou próximos deste movimento. Chama-lhes Angels (sim, Charlie’s Angels). 

Uma grande parte do material do documentário Alone Together resulta de gravações que a própria Charli fez com uma handycam. Está disponível no Filmin Portugal.

Ser brat pareceu-me ser todas essas possibilidades que XCX convoca através da música e da sua postura na indústria. A pessoa que vai dançar a uma rave e que respeita as regras do raving, mas transgride os padrões que lhe são impostos, que não tem medo de ser vulnerável e cria novas narrativas para o seu empoderamento. brat seria, portanto, o apogeu do caminho que Charli XCX tem trilhado desde o início de tudo. E que já víamos até nas músicas que escreveu para outras pessoas ao longo da sua carreira: “I got this feeling on the summer day when you were gone / I crashed my car into the bridge, I watched, I let it burn / I threw your shit into a bag and pushed it down the stairs / I crashed my car into the bridge / I don’t care, I love it”.

De repente, brat estava em todo o lado — e isso tinha piada. Até se tornar demasiado e começarmos a assistir em tempo real à desintegração do um conceito. 

De baddie a brat, uma evolução natural 

De cada vez que abria as redes sociais, brat estava lá. Num meme, numa dança de TikTok ao som de “Apple”, numa fotografia de perfil criada no brat generator. Até numa ida ao supermercado em que avistei uma vizinha com uma t-shirt da Von Dutch, brat parecia estar lá. Tal como nas limas que sobravam nos frescos, nesse final de tardeou no pano verde que caiu no meu quintal acidentalmente. O exercício começou por ser engraçado; eu não andava à procura de brat, brat chegava até mim. E acho que foi aí que percebi porque é que estava toda a gente a dizer que este seria um brat summer. Além dessa sensação de algo que estava em todo o lado ao mesmo tempo, o conceito de brat também caía bem numa série de acontecimentos, resumindo um certo estado de espírito vigente da cultura pop: o último disco de Billie Eilish e a entrevista à Rolling Stone que se tornou viral depois de ter dito “I realised I wanted my face in a vagina”, o coming out de Julia Fox e o momento em que disse publicamente que estava em celibato há pelo menos dois anos, as posições públicas das irmãs Hadid em defesa da Palestina contra todas as retaliações que pudessem sofrer na indústria da moda e na vida. Porque brat também é sair da zona de conforto.  

Não é, por isso, estranho, que se tenha começado a falar no fim do barbiecore e no começo da bratification. Se no caso da febre cor-de-rosa se tinha de fazer algum esforço para ter uma leitura disruptiva do conceito, na verde lima era bem mais fácil. Mesmo com a lente de Greta Gerwig, Barbie continua a representar algumas ideias e padrões de feminilidade que lutámos tantos anos para descolar; brat representa uma ruptura com esses padrões e a naturalidade de se fazer o que apetece sem pensar em pedir desculpa — mesmo correndo o risco de parecer louca aos olhos de outras pessoas. Não é suposto brat ser tão gostada e aceite quanto Barbie. E é claro que é inevitável pensarmos que brat é mais Bratz do que Barbie — embora Charli XCX também tenha feito parte da banda sonora do filme de Gerwig. 

As bonecas Bratz surgiram no princípio dos anos 2000 como uma versão mais moderna e empoderada de Barbie. / Fotografia do episódio “Brats VS Bratz”, o 9.º da 2.ª temporada a série Bratz.

A estética em torno de brat vai buscar uma certa nostalgia do começo dos anos 2000 que já estava no zeitgeist antes de Charli XCX lhe ter dado um nome. Vemo-la na forma como a Gen Z se veste, no resgate de algumas referências dessa altura como o filme Mean Girls (que teve direito a uma revisitação em 2024), nas trends de maquilhagem Y2K, nos fatos de treino de veludo da Juicy Couture, nas músicas que se tornam virais no TikTok mesmo que já tenham mais de 20 anos — “Unwritten” de Natasha Bedingfield, “Dilemma” de Nelly com Kelly Rowland, “Murder on the Dancefloor” de Sophie Ellis-Bextor, “Suddenly I See” de KT Tunstall, por aí vai. A ideia de ser baddie é muito 2000s. E ser baddie é ser brat. Esta nostalgia do último disco de Charli XCX também a vemos na capa que parece ter sido feita no paint, na referência à Von Dutch, no gerador brat que lembra as ferramentas que usávamos no tempo do MSN. 

Os temas e a vibe de brat misturam-se com as estratégias de comunicação e venda do disco. Não identificamos onde é que acaba a produção musical e começa o produto comercial. Esse parecer ter sido um dos segredos para que se tornasse viral: é que além de encapsular uma era que já se estava a viver, parece genuíno. Não nos chega de forma forçada. Não é que de repente Charli XCX estivesse a vestir uma personagem que não lhe servia; ela sempre foi brat. Agora só tinha um nome. Reparem como até a referência ao filme Charlie’s Angels é Y2K (foquemo-nos na versão de Drew Barrymore, Lucy Liu e Cameron Diaz com “Independent Women” das Destiny’s Child na banda sonora). 

A ascensão até ao viral e à sensação de brat estar em todo o lado ao mesmo tempo (afinal, é um brat summer) parece ter sido resultado de vários fatores. Por um lado esse match entre o que é natural em Charli XCX e a febre da nostalgia Y2K, por outro uma procura por dar resposta aos códigos obrigatórios da comunicação em 2024. E se é certo que para uma estrela pop se manter no topo nos tempos em que vivemos lhe é exigido que responda a essas exigências, também podemos questionar em que momento é que se perde a intensidade simbólica em torno de brat de Charli XCX. Inclusive, ou sobretudo, quando se alia a uma figura da política internacional: Kamala Harris.

Bratwashing

O que é que Ana Moura, o Grupo Folclórico Barcelinhos, um grupo de três raparigas amish, uma jovem mulher nepalesa e um gatinho bebé têm em comum? Todos apareceram no TikTok a dançar “Apple”, a música que teve direito a uma coreografia viral na rede social chinesa. Podemos pensar que é apenas um sintoma da dimensão que XCX já atingiu — essa interpretação não está errada. Mas onde é que fica brat, enquanto conceito, com a credencial de autenticidade que a sua criadora lhe dava quando se torna um mecanismo de homogeneização? 

Estamos de acordo que Ana Moura até pode ser brat, mas podemos considerar um grupo de jovens mulheres amish, uma religião ultra conservadora, brat? A partir do momento em que se atinge o viral, é impossível ter controlo de quem se associa ao movimento (não existe uma brigada brat, nem faria sentido existir porque brat é precisamente sobre não controlar). Mas mais do que isso: o viral esvazia o conteúdo do seu real significado. Uma dancinha no TikTok é apenas uma dancinha no TikTok, que milhares de pessoas farão para fazer parte de uma tendência e ou tentarem atingir um grande número de visualizações ou sentirem que fazem parte de uma comunidade que dura tanto tempo quanto o viral durar. Só que nesta comunidade as pessoas nem precisam de se identificar umas com as outras ou com os temas abordados, só têm em comum o sentimento de pertencer ao viral. Não a brat e ao que significa, mas ao viral. 

Este tipo de relação representa o total oposto da comunidade que Charli foi criando ao longo dos anos com os seus Angels. Mais uma vez, o documentário Alone Together é um bom referencial: a ideia de estar sozinha em conjunto com os fãs, que dá o nome ao filme, a produção partilhada do disco (os fãs enviavam ideias de beats, ouviam as músicas antecipadamente, como aliás continua a acontecer, davam opinião), o encontro dessa comunidade em festas em que Charli marca presença — no caso da pandemia festas virtuais, mas também acontece presencialmente. São uma forma de contrariar a solidão, mas também de combater o individualismo, e não é por acaso que são frequentadas sobretudo por pessoas LGBTQI+. 

O jogo Minecraft é um dos espaços virtuais em que os Angels se encontravam para ouvir Charli XCX durante a pandemia.

A presença de brat nas redes sociais não ficou pelas danças de TikTok, pelos memes e criações de brat generator a nível pessoal. De repente estava a ser usada por marcas e profissionais do Linkedin que não queriam ficar fora da trend. Imaginem a TAP fazer um TikTok a dizer “we’re also ‘brat green’. Those who get it, get it.” A TVI publicar uma imagem com fundo verde e letras pretas a dizer “bates forte cá dentro” (sim, a frase que Fanny gritou a João Mota na Casa dos Segredos) com a descrição “Também estamos a sentir o movimento #brat”. A Lipton publicar uma imagem de chá verde frio e dizer “ice tea green and it’s the same but it’s brat coded so it’s not”. Spoiler alert: não é preciso imaginar, aconteceu. 

Enquanto no caso da dança viral de “Apple” não precisa necessariamente de haver uma apropriação do conceito, neste tipo de utilização essa apropriação é tudo. Podemos afirmar que estamos perante casos de bratwashing. A verdade é que Charli XCX tropeçou na armadilha que ela própria montou porque o marketing tornou brat maior do que a sua própria criadora.

Quando uma criação, ou um produto, se torna maior do que a pessoa que o cria, as interpretações e as utilizações que fazem do que cria não dependem de si. Estão fora do seu controlo. Essa ausência de controlo pode encaminhar a utilizações totalmente opostas da mesma fórmula são a premissa do livro When We Cease to Understand the World, do escritor Benjamin Labatut (Um Terrível Verdor, em português). Servem-lhe de exemplo várias histórias que têm um lado A e um lado B, como a invenção do cianeto, um dos venenos mais perigosos — que deriva do primeiro sintético moderno, o azul da Prússia, usado em algumas das pinturas mais famosas da História da Arte. O paralelo que podemos traçar com o verde brat é bem simples e menos trágico, mas não por isso pouco importante: brat serviu o empoderamento e a máquina do capitalismo ao mesmo tempo. A contra-cultura e o mainstream.

O pico deste brat summer, que se pautou mais numa lógica comercial do que no campo das ideias e das vibes, foi o momento em que a própria Charli XCX tweetou “Kamala Harris IS brat”, depois de Biden ter anunciado a sua desistência na corrida às presidenciais norte-americanas. Se até Kamala Harris É brat, o que é, afinal ser brat? É certo que Harris concorre contra Trump, podendo vir a ser primeira mulher na presidência dos Estados Unidos da América, com ascendência jamaicana e sul-asiática, tem bom gosto musical… mas será isso o suficiente para ser brat? Não é o facto de Harris ser uma política norte-americana, e não uma estrela de Hollywood que infringe a lei e consome substâncias ilíticas, que a torna menos brat. Se dissessem que Alexandria Ocasio-Cortez é brat, ninguém questionaria. Mas isso leva-nos a pensar o que seria ser brat em termos políticos. 

Se compararmos Harris com Trump, ou mesmo com Biden, podemos dizer que é escandalosamente brat. Ao mesmo tempo que as comparações reforçam Kamala Harris, enfraquecem o significado de brat. É certo que algumas das suas posições políticas parecem estar alinhadas com as demandas de qualquer brat, mas submeter este conceito ao bipartidarismo das eleições americanas é forçar a adaptação de novos significados a velhos costumes. Como se a novidade e o apelo estético de brat, que soam originais, se traduzissem em políticas que têm o seu peso no contexto em que se inserem mas não passam de uma certa moderação. 

Como se a novidade estética de brat se traduzisse na mais comum tradição política, e se revelasse insuficiente para gerar novos imaginários políticos. Fazendo jus ao ditame de outra britânica, Harris É brat porque não há alternativa. Se o verde lima nos podia fazer lembrar o comunismo ácido de Mark Fisher, a força do símbolo dilui-se no realismo capitalista. Apesar de partir de um lugar contra-cultural, e de se inspirar num certo trauma geracional, quando Charli sentiu que tinha poder de influência e quis dar o seu contributo esbarrou na falta de opções. Depois disso, houve quem anunciasse o fim do brat summer que ainda agora começou. Parece-me precipitado, até porque não há dúvidas de que estamos perante um momento que marca e é reflexo dos tempos que vivemos. Mas mesmo para quem acabou, este será sempre recordado como um dos primeiros fenómenos da internet a entrar na corrida às eleições dos EUA, correndo o risco de se tornar decisivo. E Charli continuará a ter sempre os seus Angels — com ou sem virais, com ou sem Kamala Harris na presidência. 

Autor:
26 Julho, 2024

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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