A lição de Vera Molnár sobre arte generativa: “posso não encontrar, mas continuo à procura”

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Fotografia de Vera Molnár, captura de ecrã do vídeo "Generative Art Exploration Chapter V: The Life and Work of Vera Molnár"
via "Generative Art Exploration Chapter V: The Life and Work of Vera Molnár"/Youtube

A lição de Vera Molnár sobre arte generativa: “posso não encontrar, mas continuo à procura”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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O seu nome pode não ser o mais sonante, mas a obra que deixa faz de Vera Molnar uma das pintoras dos nossos tempos. Uma vida dedicada à arte e à recusa do nome "artista", entre a pintura e a ciência.

Uma ilustração extremamente complexa e colorida, feita com recurso a modelos de Inteligência Artificial de última geração. É provável que seja esta a imagem que nos assalta quando ouvimos falar de arte generativa, nos últimos tempos. Quando pesquisamos nas redes sociais, a maioria dos resultados segue o mesmo padrão. Numa grande variedade de géneros e estilos, estas imagens com grande detalhe e uma reconhecível extravagância visual multiplicam-se pela internet. Todos os dias surgem novos artistas que com uma subscrição do Midjourney, do Dall-E, ou mesmo recorrendo aos créditos gratuitos do Bing, fazem o seu debut expondo as suas obras nos circuitos alternativos criados pelas redes sociais. E quase todos os dias se vê repetida algures a ideia de que os artistas se tornarão inúteis, agora que a tecnologia é capaz de produzir obras com tanta riqueza.

A evolução dos modelos de Inteligência Artificial que, a partir de um esboço, de uma pequena imagem ou de uma descrição, são capazes de gerar ilustrações, emulando uma panóplia aparentemente infinita de técnicas, e a sua popularização em planos de subscrição acessíveis ou em demos para atrair atenções, mudou aparentemente as regras da criação artística. E levou o debate sobre o papel do artista para fora dos círculos de especialidade. E se há quem possa afirmar que este debate é estéril, como tantos outros nas redes sociais, a narrativa em que se enquadra a arte, e o artista, também ilustram com grande riqueza uma forma de pensar – como uma performance da vida pós-moderna. Uma performance que num destes dias a notícia da morte da artista Vera Molnár, aos 99 anos, interrompeu.

A notícia pode não ter chegado a capa das principais publicações, nem ter sido tendência nas redes sociais, e o mais provável é que uma parte dos que constantemente criam arte generativa não se tenham dado conta do seu desaparecimento, nem tão pouco saibam do seu trabalho. Mas o trabalho da artista, e as reflexões de uma longa carreira de criação artística com recurso a computadores, ajudam-nos a olhar para a relação com esta tecnologia no passado e a perceber como ela se foi alterando até ao presente. Molnár é apelidada por muitos como a madrinha da arte generativa – apesar de a própria não reconhecer o termo. Terá sido uma das primeiras mulheres a utilizar o computador como auxiliar na criação de obras de arte; e viveu o suficiente para testemunhar uma série de saltos tecnológicos. 

Formada numa escola de Belas Artes em Budapeste, viveu na Europa durante um período de viragem e testemunhou na primeira pessoa diversas revoluções. A primeira, na escola de Belas Artes. Durante os primeiros anos, Molnár conta numa entrevista ao curador Hans Ulrich Obrist, o ambiente político vigente em Budapeste limitava os horizontes da educação. Até que em 1945, quando estava no terceiro ano do seu curso, tudo mudou — e “até o porteiro da Academia de Belas Artes, que tinha sido um grande nazi, se tornou um comunista militante”, conta. Foi nessa altura que numa livraria perto da Universidade descobriu Kandinsky, Klee e Jean Hélion. E foi a vontade de querer provar que “se um homem francês o pode fazer, eu também posso” que a encorajou definitivamente a perseguir um estilo fora do canone. Numa Europa pós-guerra, não chegou a perseguir o sonho em solo Húngaro. Partiu para Roma e depois da Paris com o companheiro, François Molnár, que tivera um papel de parceria na sua carreira.

Vera conta que conheceu François – uns anos mais novo – enquanto professora na faculdade, quando este era aluno do terceiro ano. Depois de a ver escolher entre uma série de pinturas, ele ter-lhe-á perguntado com que critério as julgara e quem era ela para decidir se eram boas ou más. Empertigada pela afronta, ficara encantada por François que se tornaria o companheiro de sonhos. Vera era obcecada por ser boa pintora, François por descobrir o que tornava uma obra realmente boa.

Machine Imaginaire

A carreira de Vera Molnár, contada nas suas próprias palavras, é marcada por premonições e revelações; ecos que esperam anos até se revelar na sua totalidade. Relembrando como foi parar à pintura e desenvolveu o seu estilo minimalista, a artista conta a Obrist que nem se apercebeu de ter percorrido um caminho. Recorda que na primeira vez que lhe deram uma caixa de pastéis de óleo, decidiu pintar um pôr do sol e que, sem perceber muito bem porquê, o desenho se resumia a uma série de linhas simples e formas geométricas, que nunca soube se fez por gosto ou por não saber fazer melhor. Certo é que esse seria o primeiro exemplar, apenas resistente na sua memória, de um mindset singular. 

A relação de Molnár com os computadores começa ainda antes de estes existirem. A artista conta na entrevista com icónico curador que pintar pores do sol se tornou um ritual, e que foi a constatação de que estaria sempre a usar as mesmas cores que a fez descobrir o conceito de séries e desenvolver um pensamento algorítmico para orientar o seu trabalho e criar variabilidade. Para evitar que apenas alguns dos lápis se gastassem, Molnár ordenava-os numa fila e utilizava-os sempre na mesma direção – algo que diz ter continuado a fazer durante toda a sua vida, e que terá sido a primeira função do seu computador pessoal

Ainda antes de existirem computadores pessoais no verdadeiro sentido da palavra, Molnár criava aquilo que viria a ser apelidada de ‘maquinaria imaginária’. De forma a criar a arte que lhe interessava, programava para si própria – por vezes apenas na sua cabeça – pequenos programas que conduziam a prática e lhe permitiam explorar o maior número de possibilidades e combinações de uma determinada ideia. É a própria que diz, com todas as letras, que o seu objectivo nunca foi utilizar computadores, que nem sequer gostava particularmente deles, mas que estes surgiram no seu processo “como um escravo que podia tornar os seus sonhos reais, algo que podia ajudar a dar expressão à sua imaginação. 

O computador – ainda não como o conhecemos hoje – começou a fazer parte do processo da artista em 1968, quando atravessava outra das revoluções da sua vida. Em plena Paris de 68, imersa na atmosfera revolucionária que pairava sobre a cidade, tudo parecia possível, e foi “armada com essa certeza” que Molnár se dirigiu ao centro de computação da Universidade de Paris Orsay para pedir directamente ao director para que a deixasse fazer arte com o computador. Um pedido completamente incompreensível naquela altura, em que a computação tinha custos elevadíssimos e a capacidade de processamento era alugada ao minuto por cientistas e investigadores. Mas que foi prontamente aceite pelo responsável que, apesar do primeiro olhar de desconfiança, lhe confidenciou anos mais tarde só ter aceite por se ter lembrado da citação de Voltaire: “Discordo completamente com tudo o que está a dizer, mas defenderei até à minha morte o seu direito de fazer, dizer ou escrever o que o que tem em mente.”

Numa altura em que surgiam os primeiros computadores, ora para fins militares, ora para fins científicos (muitas vezes com objectivos militares), utilizar este objeto para fazer arte parecia uma extravagância inalcançável. E, por outro lado, para os artistas, um crime contraa a própria prática. Molnár conta que várias vezes lhe disseram que estaria a desumanizar a arte ao aproximá-la das máquinas e que só não lhe cuspiram para cima porque isso não se fazia, e porque tinha um marido cientista que obrigava os outros a uma posição de respeito. Por esta altura, a relação com os computadores não era nada do que imaginamos hoje. Em vez de mediada por periféricos, a interação com os computadores era mediada com cartões perfurados, num processo chamado computação cega. Sem rato, teclado ou ecrã, apenas com uma série de cartões perfuráveis em diferentes configurações que representavam programas, que se traduziam posteriormente em impressões feitas por uma plotter, que podiam demorar horas ou dias. 

Não ter monitor não fazia abrandar Molnár, até porque não conhecia outra realidade, e ter acesso a um computador já era mais do que em toda a sua vida — a artista recorda com uma enorme surpresa o dia em que no laboratório surgiu a possibilidade de ver o que se fazia. Mais uma revolução. Agora não era preciso esperar horas ou dias para ver o resultado dos algoritmos, e o diálogo com as máquinas passava a ser mediado visualmente, criando uma camada de inteligibilidade, permitindo mais rapidamente perceber qual o resultado dos programas que ia fazendo. Molnár confessa que não era especialmente habilidosa na programação, até porque o seu objectivo não era criar nada extraordinariamente complexo, mas antes sistematizar o seu método, criar um processo que lhe permitisse explorar todas as possibilidades que emergiam na sua imaginação. Percebia de cartões perfurados, Fotran, Basic, e para tudo o resto dependia de colaborações humanas, ora do seu marido, ora de outros ajudantes circunstanciais.

Numa carta escrita em 1975, a artista explica que o uso do computador no seu trabalho não era uma escolha mas um imperativo. Não uma forma de desumanizar a arte, mas uma forma de expressar a complexidade da sua expressão artística, e de dar continuidade à sua investigação expandindo o leque de hipóteses. Frank Popper, seu contemporâneo e também parceiro artístico, sintetizava no seu texto Visualization, Cultural Mediation and Dual Creativity, publicado na revista Leonardo, os 4 âmbitos em que Molnár enquadrava o computador. Primeiro, como uma promessa técnica que permitia alargar o campo do possível em termos de formas, cores e combinações. Segundo, como um promotor de inovação, aliviando o peso de tradições culturais formais. Terceiro, como um indutor de novas formas de pensar, graças a capacidade de armazenamento de dados que inaugurava. E, por último, como forma de ajudar o artista a medir as reações da audiência. Tudo razões em que subjaz a questão fundamental da sua vida e do seu trabalho: quais os elementos de uma composição que fazem com que dê satisfação estética ao seu criador e aos espectadores?

“Je ne trouve peut-être pas, mais je cherche” 

Na conversa com Hans Ulrich Obrist, Molnár exemplifica com graça como seria impossível conceber alguma das suas obras sem o recurso ao computador. A precisão do posicionamento de cada elemento, a sua repetição em padrões exactos e a súbita quebra de todas as regras. E a repetição da mesma fórmula por um número indeterminado de vezes apenas com subtis mudanças, que caracteriza o trabalho da pintora, explora de forma muito directa as funcionalidades primárias de um computador: executar um algoritmo para que é programado. E a formulação desse programa numa linguagem digital, com variáveis controláveis mas algum espaço para a surpresa, tornaram-se ferramentas incontornáveis na sua definição como artista – palavra que evitava para se auto-intitular. 

Molnár acreditava que o exercício da sua intuição podia ser mediado – ou substituído – pela aleatoriedade que conseguia induzir através da programação. E o facto de o computador lhe permitir sistematizar esse processo alargava os horizontes das possibilidades, acelerava todo o processo e aumentava a possibilidade de controlo. Para Molnár, “a aleatoridade tem muita importância, mas não como em Dada.” Não acreditava que tudo pudesse ser arte, mas que maximizar o número de tentativas lhe permitia perceber aquilo de que gostava. Esta relação com a arte, mais como uma procura do que como uma revelação é mais uma das arestas que marcam a sua carreira. 

Mais recentemente, Molnár recorda em entrevista que desde jovem rejeitava a ideia de que a arte era produto de uma genialidade singular – ou que pelo menos rejeitava que esta fórmular se aplicasse a si. Subvertendo a frase de Picasso “eu não procuro, eu encontro”, Molnár dizia de si própria que podia não encontrar, mas continuaria à procura

“Há uma ideia romântica que se chama “intuição”. Um artista tem talento, um génio, senta-se, toma uma bebida e cria. E a intuição faz o que faz. Por vezes cria algo de bom, outras vezes não. Agora, quando trabalhamos com computadores, há uma coisa que pode substituir a intuição, a aleatoriedade. Porque a máquina mostra-nos biliões de possibilidades, que, com a nossa imaginação limitada, não poderíamos ter pensado. Por isso, enriquece os sentidos”, dizia Vera Molnár.

Este posicionamento no mundo da arte, muito marcado pela relação com o marido e a tensão entre a prática e a teoria, fez com que durante anos o trabalho de Vera Molnár se fosse desenvolvendo de forma bastante discreta, e sem grandes reclamações de estrelato. Molnár dizia que a sua grande audiência era o seu marido, e que cada vez que lhe mostrava uma nova obra, ele dizia qualquer coisa como: “Está melhor do que na semana passada”. Era este triângulo de diálogos, entre Vera-Máquina, Vera-François, e François-Máquina, que melhor definia a sua prática. 

Durante os primeiros anos da década de 1960, ainda antes de aceder ao computador, Molnár colaborara com François no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), e embora o seu trabalho já fosse conhecido em circuitos de especialidade, entre os grupos de artistas exilados em Paris ou em universidades, nunca houve uma procura por um reconhecimento público, um hábito expositivo; nada. O trabalho Vera parecia completar-se no diálogo constante com François, na procura por novas hipóteses para a sua grande questão de vida. E se por um lado há quem diga que não teve a atenção devida, há quem também defenda que foi essa descrição que lhe permitiu criar uma obra tão vasta.

François Morellet, um dos primeiros grandes amigos do casal na capital francesa, chegava mesmo a dizer que Vera e François eram um “pintor com duas cabeças”. Pese embora a sua colaboração se tenha tornado cada vez menos directa ao longo dos anos – especialmente depois de François abandonar a pintura –, a sua importância nunca diminuiu. Como interlocutores primordiais um do outro, mantiveram acesa a chama quer da criação artística quer da investigação. 

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Esta sociedade entre Vera e François foi determinante na forma como o mundo ficou a conhecer o seu trabalho. Embora anos mais tarde a pintora fosse consagrada como parte de um movimento do minimalismo francês, o seu carácter altamente experimental, tão experimental como um diálogo especulativo constante em torno de uma só questão, e a sua distância dos circuitos comerciais, permitiu-lhe criar um corpo de trabalho bastante sólido. 

Foi com o marido que fundou o Centre de Recherche de l’Art Visuel (CRAV), que durou apenas 4 meses, e o Art et Informatique, dois grupos de artistas interessados em novas tecnologias onde encontravam pares para alargar o seu círculo de conversação, e um circuito para partilhar os seus trabalhos. O grupo Art et Informatique fora criado no Instituto da Estética e das Ciências da Arte na Universidade de Sorbonne, onde François era investigador. Apesar de ocasionalmente fazer parte de exposições colectivas, era nestes espaços entre a ciência e a arte que o trabalho de Molnár encontrava o seu posicionamento mais natural. Como recorda, o grupo era composto por artistas diversos (compositores, escritores) que tinham como ponto comum o uso da informática e de processos combinatórios no seu trabalho, e as suas conversas semanais eram mais sobre questões técnicas e de computação do que sobre arte propriamente dita. 

Esta aproximação à ciência fez o nome de Vera viajar o mundo. Durante os anos 1970, sobretudo, o trabalho da artista era frequentemente citado em revistas que se debruçassem sobre a computação, surgindo habitualmente acompanhado de notas técnicas sobre o software e o hardware utilizado. Assim, as suas criações valiam não só pelo prazer estético que podiam espoletar na audiência, ou por permitirem a sistematização da sua grande experiência de vida, mas também por ilustrarem a relação entre humanos e máquinas fora de um ambiente militar ou corporativo, num ambiente de especulação e intuição. Molnár não olhava para a tecnologia com especial fascínio, mas antes com um sentido utilitário tremendo. Não é por acaso que usa e abusa da referência ao computador “como um escravo” pronto a obedecer a qualquer instante.

Foi através destas relações que forjou um dos objectos mais simbólicos da sua carreira. Os livrimagens, como lhe chamaria em francês, foram um dos formatos mais singulares do trabalho de Vera Molnár, e reforçavam o carácter dialogante da sua arte. Com um aspecto semelhante a um livro, mas rejeitando esta designação para não criar expectativas sobre o carácter narrativo do objecto, Molnár concebia os seus livrimagens como forma de partilhar com a audiência as suas expressões. Umas vezes contendo só imagens, em série, permitindo ao leitor acompanhar por instantes as suas explorações. Noutras, contendo também textos, que como a própria explica não procuravam conferir um sentido ou atribuir uma legenda, mas antes servir de contraponto. 

De forma orgânica todo o trabalho de Vera Molnár aportava consigo uma dimensão conversacional, como se procurasse partilhar com os seus interlocutores todo o processo, mais do que o seu resultado final. Numa dinâmica que constantemente nos confronta com a imensidão de possibilidades no mundo. “Uma imagem é uma porção limitada de superfície, contendo acontecimentos plásticos – linhas, formas, cores – que respondem a uma certa ordem que varia entre a desordem total e a ordem perfeita. Ao longo de vários anos de investigação assistida por computador, pude constatar que, para o meu gosto, quanto menor for a desordem, mais aumenta a beleza plástica da imagem. No entanto, é necessário um pouco de desordem. 1%, por exemplo. Como neste livro. Aqui estão 20 imagens, sem numeração. Decidirá a sua própria sucessão. Cabe-lhe também a si virá-las e mudar o significado de cada uma delas de quatro maneiras diferentes. Com estas 20 imagens, pode criar 2675004047229796708138353640000 sequências de imagens, todas diferentes. Experimenta. Então verá a riqueza inimaginável de qualquer criação plástica que se pretenda sistemática”, lê-se num dos seus livrimagem, o ‘1% desordem’. A mensagem simples revela o carácter simultaneamente lúdico e exploratório de Molnár, e convida o interlocutor a participar activamente na descoberta.

A aparente simplicidade do trabalho de Molnár, composto por linhas, quadrados e triângulos, esconde, como vimos, um trabalho de uma enorme dedicação e complexidade. À semelhança da prática científica, de áreas como a matemática ou a teoria dos jogos, o processo parecia recair essencialmente sobre estes elementos essenciais fruto de um exercício de depuração. O recurso a formas simples permitia-lhe minimizar a dimensão subjectiva, criando espaço para a experimentação sistemática. “Eu uso formas simples porque me permitem que passo a passo eu consiga controlar a organização da imagem. Assim, eu consigo identificar o momento exacto em que a evidência da arte se torna visível. E de modo a garantir a natureza sistemática desta pesquisa, eu uso o computador” – sintetizava sobre si mesma. 

O resultado era não só exposto de forma mais tradicional, como veiculado em artigos científicos, escritos por si, pelo seu marido, ou por ambos, em revistas como a Leonardo, editada por F. Malina e dedicada à investigação sobre a arte com computadores. Usando os trabalhos de Molnár como objecto de análise, ao longo das décadas foram-se repetindo as questões e aprofundando as respostas, sem que nunca se chegasse propriamente a uma conclusão. 

Como escrevem os curadores de uma das suas exposições mais recentes, o trabalho de Molnár permitia ao espectador ver em simultâneo, o rigoroso processo e o trabalho em si mesmo, a dimensão conceptual e a dimensão processual de um objecto artístico. E foi tê-lo feito ao longo de anos, sempre com a mesma atitude, que tornou a tornou tão relevante no seio da arte no último século. Por um lado, Molnár representava a sistematização introduzida pelos computadores nas sociedades contemporâneas, por outro resistia às tendências criadas por este, mantendo o seu trabalho de inspiração profundamente humanista, assente no diálogo que tanto distingue a espécie. 

Vera Molnár era uma grande admiradora do quadrado, como escreve Vincent Baby e Preysing Verlag no site da artista, num longo texto sobre os livrimagens. Mas uma admiradora que se recusava a ficar presa numa estrutura demasiado neurótica ou opressiva. Pelo contrário, sentia necessidade de o incomodar, de assustar a sua estrutura, de o pôr em questão, e de o fazer de uma forma partilhada, repetitiva. Num exercício que visto à distância parece ecoar a mesma cadência de Sísifo carregando a pedra ladeira acima, uma rendição tal ao absurdo que faz dele um prazer – em que conseguimos imaginá-la feliz na sua missão.

Até perto da sua morte, Molnár manteve-se activa e a produzir as suas pinturas e séries. Não virando a cara a desafios ou a novidades tecnológicas, recentemente até tinha lançado uma coleção de NFTs, um sintoma da sua vontade de se manter a par da conversa do mundo. Com uma série de ideias por concretizar, uma caixa cheia de livrimagens por publicar, papéis com rascunhos inacabados, Vera Molnár confessava ao curador Hans Ulrich Obrist que trabalhar era aquilo que lhe dava prazer. A imensidão do seu trabalho, as questões que dele emergem, e a forma como sistemática como abordou a dúvida, ensinam-nos que a procura constante por respostas ao nosso tempo é um dos grandes valores da arte. 

Índice

  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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