COP28: A Megalomania nunca será sustentável

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Vista geral da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas COP28 na Expo City Dubai, em 12 de dezembro de 2023, no Dubai, Emirados Árabes Unidos. (Fotografia de COP28 / Christopher Pike)
Vista geral da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas COP28 na Expo City Dubai, em 12 de dezembro de 2023, no Dubai, Emirados Árabes Unidos. (Fotografia de COP28 / Christopher Pike)

COP28: A Megalomania nunca será sustentável

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Catarina Gonçalves esteve pelo 2.º ano consecutivo na COP, o maior evento dedicado ao clima a nível mundial. Desde que voltou, não pára de pensar no que viu e ouviu.

Segunda semana da COP28. Os dias arrastam-se, longos, invariavelmente quentes na sua procissão de talks e declarações. Numa das principais avenidas da Blue Zone – a zona do gigantesco recinto onde pavilhões de países, empresas e ONGs competem por atenção – um pequeno protesto atrai o público. Não é todos os dias que se presencia um protesto autorizado no Dubai. Na linha da frente reconheço um ativista que discursara nas mesmas circunstâncias durante a COP27 no Egipto. Fico para ouvir, como ficara da primeira vez. O ativista que agora sei chamar-se Farooq Tariq relata os horrores que os camponeses no Paquistão enfrentam – as constantes catástrofes ambientais, dividas e pobreza extrema que delas resultam – e que os levam muitas vezes ao suicídio. Sinto uma profunda tristeza porque um ano passou e as histórias de Farooq são as mesmas. Este ano a sua voz mais sofrida repete a súplica pelo cancelamento da dívida dos países do sul global – muitas destas dívidas são consequências diretas ou indiretas de colonialismo e impedem o financiamento de serviços básicos e, consequentemente, da transição energética – e que os países ricos paguem pelo sofrimento que têm causado à sua comunidade. 

Ainda não parei de pensar nele desde que voltei, pela brutalidade do que relata, mas ainda mais por essa brutalidade ser ignorada ao ponto de ter de a repetir ano após ano, cimeira após cimeira. No fundo, esta é a sina de ativistas, cientistas e comunidades por todo o mundo: repetir os horrores que os países ricos ainda têm o privilégio de ignorar.

O protesto dispersa pouco depois de começar, não vá alguém ganhar o gosto pela liberdade num país onde a liberdade é um bem comercial, proporcional ao net worth. A relação promíscua entre poder e capital é especialmente palpável nesta COP28, cuja presidência foi entregue a Sultan al Jaber, Ministro da Indústria e de Tecnologias Avançadas dos Emirados Árabes Unidos, que acumula ainda os cargos de CEO da Abu Dhabi National Oil Company, uma das maiores empresas petrolíferas do mundo, da Masdar empresa dedicada a energias renováveis e mais uns quantos cargos de semelhante proeminência. Não tentem competir com o Linkedin deste homem.  

A escolha de Sultan al Jaber não se revela apenas ilógica mas premonitória. Antes do início da cimeira, uma investigação do Politico revelava a intenção de utilizar a mesma como um veículo para a presidência reunir com chefes de Estado e representantes de empresas ligados à exploração de combustíveis fósseis, gás natural e indústria petroquímica, estando a ADNOC em negociações para adquirir a brasileira Braskem, a austríaca OMV ou a holandesa OCI NV, estratégia reforçada pelo CEO, que recentemente fechou um acordo de 2$ mil milhões para expandir operações de offshore drilling, e afirmou no final da cimeira pretender continuar a expandir a extração de combustíveis fósseis durante os próximos anos. Esta posição não é surpreendente tendo em conta que num evento online, a 21 de novembro, Sultan al Jaber afirmou não existirem provas científicas para a necessidade de abandonar o uso de combustíveis fósseis e que fazê-lo mandaria o mundo de volta para as cavernas. Um argumento comum a CEOs de petrolíferas e familiares negacionistas com zero conhecimento científico em qualquer jantar de Natal.

Talvez por esta escolha de casting, a COP deste ano tenha sido a edição com mais lobistas de empresas fósseis – mais de 2000, mais que o número de representantes de todos os países e 7x mais que todos os representantes indígenas, dando à cimeira uma vibe de team building onde CEOs vão ensaiar small talk e partilhar modelos de jatos privados. Não fossem os climate clocks espalhados pelo recinto contarem menos de 6 anos para limitar o aumento da temperatura mundial a 1.5º, até me questionaria se há mesmo urgência em estarmos ali. A maioria dos presentes parecem mais preocupados com protocolo corporativo e em serem fotografados do que em realmente contribuir para a solução efetiva de problemas. 

Todo o contexto em que ocorre a cimeira parece propício à distração. O recinto, como tudo no Dubai, assemelha-se a um render; de uma artificialidade monumental que decerto impressiona quem gosta de árvores bem aparadas. Milhares de pessoas percorrem a sua rede labiríntica de pavilhões como se estes fossem pit stops – 30 segundos para um aperto de mão aqui, antes de ir discursar durante 5 minutos ali e mais uma declaração de 2 minutos acolá – as talks enchem e esvaziam como se as comitivas fossem um fluxo sanguíneo dentro desta quimera corporativa. Tudo isto é suportado pela exploração – não lhe vou chamar trabalho – de trabalhadores migrantes, que constituem 90% da força de trabalho privada do país e que segundo um relatório da organização FairSquare foram submetidos a abusos laborais ainda durante a preparação da cimeira. Não que esperasse diferente de uma nação onde a ditadura permite ao mercado livre fazer aquilo que ele melhor faz – explorar capital humano para lucro. 

Mas talvez o erro esteja na minha própria formulação. O objetivo da COP não é contribuir para a transição energética; é assegurar que esta só acontece na medida em que é financeiramente vantajosa. O termo “climate finance” paira omnipresente em todas as talks e discursos, justifica a discrepância de investimento na transição energética do Sul Global e particularmente de nações insulares, que dependentes de quantias extremamente reduzidas para atingirem neutralidade carbónica e independência energética, são rotuladas como investimentos de risco. Não interessa que segundo o relatório de 2023 do IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change criado pelas Nações Unidas – a legislação atual nos coloque no caminho de um aumento de temperatura mundial de 3.2º, que anualmente 7$ biliões de dinheiro público sejam injetados em petrolíferas, que a cada ano que adiamos a neutralidade carbónica esta se torne mais cara, sendo necessários uns módicos quase 300$ biliões até 2050 para evitar perdas na ordem dos 2$ mil biliões em danos num cenário de Business As Usual. Segundo o mesmo relatório do IPCC existe capital mundial suficiente para financiar a transição, que é impedida por barreiras à redireção do investimento. Entramos no campo dos números que não fazem sentido e dos eufemismos para dizer uma coisa: estamos a arriscar o nosso futuro, o das gerações vindouras e de todos os seres vivos no planeta para proteger os investimentos e o lucro de uma minoria, enquanto dizemos aos países mais afetados para serem resilientes.

Resiliência, a palavra que mais escutei nesta cimeira ou talvez aquela que mais me marcou pela hipocrisia que lhe encontro. O termo, promiscuamente aplicado a qualquer das nações mais afetadas pelas alterações climáticas ou em maior dificuldade em financiar a sua transição energética, torna-se cruelmente irónico tendo em conta que a maioria destes países quase todos do Sul Global nunca foram senão resilientes. Resilientes perante séculos de colonialismo, genocídio, exploração extrativista dos seus recursos e consequente ecocídio. Resiliência que lhes é agora pedida pelos países responsáveis não só pelas alterações climáticas, que os afetam desproporcionalmente, mas também responsáveis pelas dificuldades económicas e pelo gatekeeping de financiamento necessário. 

Já que falamos de gatekeeping podemos abordar uma das “conquistas” desta cimeira no que diz respeito ao fundo de Loss & Damage, aquele aprovado na COP27. Segundo a Loss and Damage Collaboration são necessários pelo menos 400$ biliões em financiamento anual para a mitigação do impacto das alterações climáticas nos territórios mais vulneráveis às mesmas. No final da COP28 estavam reunidos 700$ milhões, uns impressionantes 0.2% do financiamento necessário, pouco mais que os salários anuais de 3 famosos jogadores de futebol. Parabéns aos envolvidos.

Perante este claro desequilíbrio de esforços, parece-me inevitável afirmar que uma transição energética justa, em que ninguém é deixado para trás, implica o fim do egocentrismo dos países ricos em volta do seu próprio desenvolvimento infinito, em prol de igualar a balança com o resto do mundo. Implica a mudança de uma transição energética inserida no mesmo modelo económico capitalista que causou as alterações climáticas para um modelo económico em que esse lucro histórico é compulsivamente e obrigatoriamente utilizado para compensar o impacto das alterações climáticas nas zonas do planeta que até agora suportaram a crescente riqueza de territórios que não os seus. Investir não porque trará mais valias económicas aos investidores, mas porque é o correto a fazer. Investir sem retorno. 

A outra grande “conquista” desta COP foi a Global Renewables and Energy Efficiency Pledge que promete triplicar a produção de energia renovável e duplicar a eficiência energética até 2030 de modo a cumprir com as metas necessárias para manter o aumento mundial de temperatura abaixo dos 1.5º. Uma promessa aparentemente positiva se não refletirmos nas razões pelas quais é necessária – primeiro, porque continuamos a investir em novas explorações de combustíveis fósseis, aumentando as emissões de CO2 de ano para ano e portanto tornando as metas cada vez mais difíceis de cumprir; segundo, porque recusamos considerar uma mudança de paradigma de consumo, que decresça substancialmente a nossa necessidade de produção de energia e gasto de recursos. Se calhar até precisamos de falar sobre aquele termo tabu que arrepia até os mais progressistas – decrescimento *pausa para choque* – porque não existe transição energética capaz de sustentar uma economia de crescimento infinito (e portanto em transição infinita), onde a obsolescência planeada obriga à criação e compra de sucessivos modelos tecnológicos, onde a obsessão por novidade obriga à produção de várias coleções de fast fashion por ano e onde o modelo individualista de consumo nos tenta convencer que é possível alimentar uma frota mundial de carros e SUVs elétricos privados, em vez de privilegiar o investimento em redes de transporte público e mobilidade suave. Mesmo que todo o Sul Global venda os seus territórios à exploração de lítio e outros minerais preciosos – um pitch constantemente escutado nesta COP28 – estes continuarão a ser um recurso não renovável, tal como os combustíveis fósseis. O nosso sistema económico megalómano é a verdadeira fonte de insustentabilidade.

O texto final desta COP traduz essa falta de consciência. Ainda que, pela primeira vez, afirme a importância de abandonar o uso de combustíveis fósseis (só foram precisas 28 cimeiras) a linguagem ambígua não determina um deadline ou legislação. Nada vinculativo. O foco é divergido para as tecnologias de captura e créditos de carbono, sendo a primeira uma tecnologia emergente e ainda altamente ineficaz, sem garantia de que alguma vez o será, e a segunda mais semelhante a um esquema de fraude do que a uma alternativa. Dispensam-se as estratégias cientificamente provadas em prol de wishful thinking.

E ainda que tudo indicasse que este seria o desfecho desta COP é impossível ignorar a revolta de cientistas e ativistas por todo o mundo perante a recusa de resolver a maior crise da nossa história com soluções concretas e comprovadas.

Não precisamos de mais promessas, precisamos de justiça e legislação tão definitiva e drástica quanto os impactos das alterações climáticas nos territórios e vidas humanas que não têm poder sobre o seu próprio futuro. Se, segundo o IPCC, o capital necessário existe, precisamos de legislação que derrube as barreiras ao investimento e obrigue a sua aplicação, agora, não quando o lucro dos combustíveis fósseis cair na conta de Sultan al Jaber e companhia e for demasiado tarde. Demasiado tarde para as nações insulares que lentamente se afundam em promessas vagas. Demasiado tarde para as comunidades que neste preciso momento são alvo de genocídios devido à nossa incapacidade de alterar os sistemas opressores que as privam de humanidade. Demasiado tarde para as crianças, como a ativista Licypriya Kangujam que com 12 anos invadiu a UN High Level Plenary Session para protestar pelo seu futuro, acabando detida e expulsa da COP28. Demasiado tarde para Farooq Tariq e para os camponeses da sua comunidade , sobre os quais gostaria de ouvir histórias felizes.

Como estamos, no próximo ano ouvirei as mesmas. 

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