“Por que eu escrevo?
Porque tenho de
Porque a minha voz
em todas as suas dialéticas
foi silenciada por muito tempo”
Jacob Sam-La Rose 1[1]
“No espaço académico, o que eu vejo muito é que nós não podemos falar, não podemos trabalhar ou fazer uma investigação acerca do tópico [questões relacionadas com o racismo e o movimento negro] porque vamos ser vistos como emocionais (…), depois vem um corpo branco que não faz ideia do que é aquela vivência, mas decide ir uns três meses para a Cova da Moura, e de repente cria um estudo acerca do que é a vivência de um corpo negro em Portugal”, diz Nael D’Almeida nos primeiros quinze minutos do episódio 1 do programa “Nossa Fonte” na Rádio Quântica. O lugar de fala e a ocupação de espaços públicos é o tema da conversa; a Fonte é uma rede de jovens africanos na diáspora. Tiro os auscultadores, ao fim das quase duas horas de conversa, e começo a juntar os apontamentos para preparar o guião da minha entrevista com a Nael, marcada para dias mais tarde. Encontramo-nos em videochamada, e os pontos ligam-se com a conversa que tinha tido com Naky Gaglo dias antes, e com o prefácio escrito por Lewis R. Gordon para “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952) [2], de Frantz Fanon, que começa da seguinte forma: “Houve uma época em que um professor universitário norte-americano que tentasse abordar a obra de Frantz Fanon num ambiente académico estaria sujeito a perder o emprego.”
Qualquer professor que citasse Frantz Fanon arriscar-se-ia a perder o emprego porque o seu nome foi repetidamente silenciado na academia. O seu e de outros tantos intelectuais negros que, ainda hoje, cinquenta anos depois, dificilmente entram na bibliografia de muitas universidades no contexto português. Começar a incluí-los é um passo para a descolonização do pensamento e do conhecimento, mas é preciso ir mais além. É preciso questionar, dar conta de quem entra, e porque entra, estar ciente de a quem é vedada a entrada, a quem é permitido falar e de quem é permitido falar.
Quando me encontrei com a Nael, foi por aí que começámos a conversa: pelo processo de branqueamento do conhecimento, que permanece vivo como um dos legados com mais peso do colonialismo. “Para mim é óbvio que esse branqueamento existe em todo o lado. Na Fonte temos muito essa busca [pelo que comumente é apagado] e é muito gratificante todo o projeto, porque podemos ver aquilo que nunca nos foi mostrado. Podemos ver que existem artistas negros, arquitetos negros, poetas negros; existe um leque de pessoas a fazerem coisas extraordinárias. E a cada duas semanas, quando vamos buscar obras diferentes, pensamos ‘como é que nunca tínhamos visto isto?’. Estamos a fazer essa busca e o reencontro com a nossa africanidade”, conta.
Tal como os jovens africanos na diáspora procuram a sua africanidade a partir de Portugal, Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana, também a procurou na Nigéria. Apesar de ter sido uma leitora e escritora muito precoce, deu por si a mimetizar as histórias que lia na ficção britânica que circulava em sua casa. As personagens tinham cabelos loiros e olhos azuis, comiam maçãs e falavam sobre o tempo. Em nada se pareciam consigo ou com o seu contexto. É com esta história que começa a sua TedTalk “O perigo da história única” [3], que apresentou em 2009 perante uma plateia composta por pessoas, sobretudo, brancas. O perigo da história única, acaba por concluir, é assimilarmos ideias pré-concebidas que podem não ser totalmente mentira, mas não abarcam as diferentes versões dos acontecimentos. Uma assimilação única e homogénea que se pode tornar perigosa.
Procurar a raiz da árvore do conhecimento
Quando Naky Gaglo, natural do Togo, se mudou para Lisboa, após ter vivido uns tempos em Berlim e Sevilha, ficou surpreendido por “encontrar tantas pessoas negras”. No Togo, Portugal não é um destino óbvio para o qual se viaje, e assim que chegou foi “procurar a comunidade negra”. “Quando eu cheguei aqui e conheci a comunidade negra, fiquei muito contente por ver as pessoas, poder falar com elas, e também por poder ir a lojas comprar produtos africanos. Mas no final, nas conversas que tinha com alguns deles, dei-me conta de que não tinham muito conhecimento acerca da sua história. Muitos, por algumas razões, evitam falar sobre o colonialismo. A verdade é que primeiro fiquei um pouco decepcionado, porque esperava aprender um pouco mais da parte deles, mas foi ali que comecei a ter vontade de conhecer a História Africana de Portugal”, conta Naky. A ideia que Naky teve foi o motivo que desencadeou o nosso encontro: a African Lisbon Tour.
O ponto de partida de Naky foi “criar um roteiro sobre a história do colonialismo e da escravatura em Portugal”, mas o projeto acabou por ser mais do que isso. Começou por fazer o exercício de participar em free tours por Lisboa, para “ver como as pessoas faziam, onde passavam, o que diziam”, e logo percebeu que “não havia nada que falasse na História do colonialismo ou da escravatura” — e que, quando havia, era uma versão “romantizada, sobre a potência de um país pequeno como Portugal ter ido à descoberta”. No processo de criação da tour leu muito, foi à procura e, um dia, o contacto da historiadora Isabel Castro Henriques, um dos grandes nomes da investigação da História da Escravatura em Portugal e autora de alguns dos livros que tinha lido, bateu-lhe à porta. A partir daí, foi mais fácil desenhar o que é hoje a African Lisbon Tour. O guião começou a compor-se.
O silenciamento da História Africana auscultado por Naky foi também algo de que, à medida que foi crescendo, a antropóloga Fabiana Leonel se deu conta, no Brasil. É por isso que faz questão de reforçar que a sua “educação racial foi dada pelo movimento negro” — foi esse o ponto de ligação entre a conferência em que participou na Fundação José Saramago e o nosso encontro, cerca de um mês depois. Fabiana relembra que, talvez por resultado da própria história, “o Brasil tem um processo histórico distinto daqui [de Portugal]”, uma vez que “o movimento negro do Brasil tinha uma pressão desde a década de XX de ação afirmativa, talvez graças à Frente Negra Brasileira”. Quando estava na universidade, a bibliografia era maioritariamente branca, e os professores também; mas surgiu um desses projetos de ação afirmativa financiado pela Fundação Ford, “Negros e Carentes”, que englobava uma bolsa e uma formação de um ano sobre o contexto e o processo histórico das pessoas negras no Brasil.
“Eu sou de uma geração em que estavam pipocando os coletivos de estudantes negros, que a gente teve na década de 2000-2010 — sendo que 2003 foi um marco, porque foi o ano em que surgiu a primeira universidade com reserva de vagas, numa estadual no Rio de Janeiro. Os estudantes negros já estavam nas universidades, e muitos fizeram parte desse projeto da Fundação Ford, que foi para cerca de 20 universidades. Então, pelo menos nessas 20 universidades, havia núcleos de estudantes que tinham sido impelidos a pensar sobre isso, o que levou a que se criassem vários coletivos nesses lugares. Esses coletivos, que eram independentes e não eram tutelados por professores ou por financiamento externo, também resultaram num processo muito educativo para a gente”, partilha a antropóloga.
A partir desse projeto, Fabiana Leonel ganhou novas referências e criou relações, entre pessoas e na História. Encontrou as outras histórias dentro da História. Encontrou-se com a sua ancestralidade e fortaleceu os alicerces do seu (auto-)conhecimento. No site da African Lisbon Tour, Naky recebe-nos com uma frase de Marcus Garvey que em tudo se relaciona com essa procura: “Um povo sem o conhecimento da sua história é como uma árvore sem raiz”. E é também para nutrir essa raíz que a Fonte se reúne, agrega africanos na diáspora e celebra a africanidade.
(Re)escrever os nomes que foram branqueados
A mesma história, vivida por mais do que uma pessoa, nunca será contada da mesma forma. “O nosso entendimento histórico é diverso” e “depende sempre do lugar em que nos encontramos”, diz Fabiana evocando Donna Haraway; mas porque é que a História que nos apresentam nos manuais escolares portugueses nos conta apenas uma versão? Porque é que a narrativa dominante continua, ainda hoje, a ser a do colonizador que afirma que “os Portugueses traziam de África ouro, escravos, marfim e malaguetas – produtos de grande valor”[4]? Persiste a narrativa que desumaniza e que legitima a desumanização, que se segue por um silenciamento das versões da História marginalizadas. Num país em que uma das percursoras do movimento feminista foi uma mulher jornalista negra, Virgínia Quaresma, são os ecos das vozes brancas que se fazem ouvir com o passar do tempo. É o mesmo país em que Grada Kilomba, artista e escritora portuguesa afro-descendente, esperou 10 anos até publicar “Memórias da Plantação”, o livro que já se tornou uma referência um pouco por todo o Mundo.
De Sojourner Truth a bell hooks, de Lélia Gonzalez a Angela Davis, de W. E. B. Du Bois a Frantz Fanon ou Audre Lord, há pensadores negros que só recentemente começam a entrar na academia, a ser vistos com legitimidade, e, alguns deles, a ser editados em português [5]. O silenciamento arrasta-se a tantas outras áreas além das ciências sociais, como a engenharia, a arquitetura e a medicina, inundando toda a vida. “Felizmente hoje existe internet”, diz Nael, “e já conseguimos chegar a essa informação, que não tem de nos ser ocultada”. “É triste, eu só começo a perceber aos meus 19 anos que existe História Negra e que existem coisas que nunca me foram contadas e que estavam lá. Mas acho que o avanço para as próximas gerações será esse: eu provavelmente já vou poder contar aos meus filhos essa (outra) História desde cedo, e isso vai ajudá-los muito naquilo que será a identidade deles e na forma como eles se vêem na sociedade em que estão”, partilha como que numa reflexão em voz alta.
Aos poucos, o conhecimento da História que durante séculos não foi posto em causa começa a ser remexido e questionado. Surge a urgência de exigir que se reescrevam todos os nomes que foram apagados, um a um. Que se revelem camadas cobertas por véus durante séculos, e que se rejeite a “história única” [3]. Porque, como lembra Chimamanda, “a consequência da história única” é o “roubo de dignidade às pessoas”. “[A história única] torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade partilhada. Realça aquilo em que somos diferentes em vez daquilo em que somos semelhantes” [ibidem].
Na tour que faz por Lisboa, Naky repõe a(s) outra(s) verdade(s). “Ponho-me na pele de afro-descendentes aqui e penso que o branqueamento teve um impacto muito grande na vida deles, o que faz com que a opinião que têm sobre a História portuguesa não seja crítica, mas normal; não há uma visão crítica desta História. Para alguns que fazem a tour, é ali que o impacto muda. Ao saber que na cidade de Lisboa há uma história completamente diferente da que tinham na escola, ficam mesmo surpreendidos, mas contentes por poderem ter acesso a esse conhecimento”, diz Naky. E dali em diante, sabem de onde vem “tudo o que lhes acontece hoje, todo o racismo que sentem”, e que contar as outras histórias faz mais do que apenas uma reposição de factos. Nas palavras de Chimamanda, “as histórias têm sido usadas para desapropriar e tornar maligno. mas as histórias também podem ser usadas para dar poder e para humanizar”; “as histórias podem quebrar a dignidade de um povo, mas as histórias também podem reparar essa dignidade quebrada.”
A relação do legado colonial com o racismo sentido hoje é óbvia e causal, e é também por isso que Naky faz questão de não criar balizas temporais para a African Lisbon Tour — como conta, faz sempre “uma mistura entre o passado e o presente”. Da partilha de uma memória da História, como os corpos negros atirados pelo Miradouro de Santa Catarina, ao proferir em voz alta nomes de resistência no período da Guerra Colonial como Amílcar Cabral ou Deolinda Rodrigues, garante que não existem borrachas brancas para apagar a memória.
A humanidade que já cá estava
“Nas sociedades pré-coloniais, ao longo de África, da Ásia e das Américas, por exemplo, género e sexualidade eram [vistos como] fluídos. Gostar de alguém do mesmo sexo ou género não era criminalizado, nem visto como um tabu ou algo errado. Com o decorrer do colonialismo, com a conquista europeia, vieram os missionários coloniais que impuseram ideais religiosos restritos e erradicaram essas crenças de fluidez de género e sexualidade. Muitas vezes as pessoas, hoje em dia, não sabem estes factos, e estão a tentar reconceptualizar um novo mundo, que na verdade já existiu” [6], disse JJ Bola, escritor e educador congolês, numa entrevista ao Shifter, tendo como ponto de partida o seu livro “Mask Off – Masculinity Redefined”. visão normativa do género, bem como dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, foi levada para alguns povos com o processo de colonização e evangelização – e estabelece-se como um excelente exemplo de homogeneização da história. Fabiana Leonel, cujo trabalho se foca sobretudo em questões de género, conta que “existem algumas etnografias em certas sociedades africanas que mostram que o comércio, por exemplo, era articulado por mulheres, e existia uma organização coletiva ali que não colocava a mulher num lugar de subalternidade”. De grande parte das sociedades matriarcais, pouco rasto existe nos dias de hoje, e “muito do que a gente faz são inferências e reformulações para essa discussão”, mas a antropóloga lembra que existem “sociedades indígenas no Brasil em que as crianças é da responsabilidade do grupo e não de quem pariu, então isso vai logo organizar a ideia de sexo dentro do grupo de outra maneira”.
Renata Machado Tupinambá, co-fundadora da Rádio Yandê, a primeira rádio online indígena do Brasil, reflete numa lógica diária a força da ancestralidade, mas também a percepção externa que existe sobre os povos indígenas. Sente que “a óptica colonial, na qual povos originários são vistos como primitivos ou atrasados, prevalece em imaginários pelo Mundo” — é por isso que “quando as pessoas se deparam com a realidade, existe espanto; pela visão generalizada que possuem sobre o que é ser indígena”. “Por muito tempo fomos vistos como objetos do novo Mundo, até de facto conhecerem as histórias pelas narrativas indígenas”, sublinha em conversa.
Uma das vozes que veio demarcar o lugar de fala indígena foi Eliane Potiguara, escritora e ativista, cujo livro “Metade cara, metade máscara” (2018) relata, em prosa e em rimas, como foi viver entre o mundo indígena e uma educação num contexto branco, que punha em causa a sua raíz. Em cada página do seu livro, lê-se a sua alma: “Eu não tenho minha aldeia/ Minha aldeia é minha casa espiritual/ Deixada pelos meus pais e avós/ A maior herança indígena./ Essa casa espiritual/ É onde vivo desde tenra idade/ Ela me ensinou os verdadeiros valores (…)” [7].
E se hoje, nas sociedades ocidentais, se vê com surpresa uma geração a sair à rua para se manifestar pelas alterações climáticas, no contexto indígena esse cuidado é parte inalienável da essência da vida. É por isso que quando pergunto a Renata “que ensinamentos indígenas achas que seriam importantes para não-indígenas aprenderem e não viverem tão desconectados?“, naturalmente responde “compreender que a natureza é quem somos, ela não está separada, e que todos os humanos vieram de povos originários de diferentes locais do mundo, conhecer a História pela perspectiva de todos, colonizados e colonizadores, mas principalmente compreender de onde todos viemos para respeitar a terra e ar que compartilhamos, como influenciamos a vida de todos”.
O registo da Rádio Yandê, mais do que de uma procura pela raíz, trata da sua preservação. Sendo grande parte do conhecimento indígena transmitido através da oralidade, a rádio procura, pelos mesmos meios gerar um arquivo resistente ao tempo e ao espaço, pela voz dos próprios, colmatando o conhecimento académico produzido por antropólogos sobretudo brancos e europeus, à semelhança do que acontece também com projetos como o Vídeo nas Aldeias, incentivado por Vincent Carelli. “Documentar a memória oral por meio destas ferramentas audiovisuais”, diz Renata, jornalista e guionista, do outro lado do Atlântico, “fortalece o protagonismo indígena em sua própria ótica, diferente do personagem ‘índio’ criado por uma visão romântica eurocêntrica de Mundo”.
Olhando à produção de conhecimento dito científico, onde (para alguns) não existe espaço para falar na primeira pessoa, o processo de tornar quem não entra no perfil branco e normativo n’“o outro” [8] é constante. A persistência dessa fórmula deve-se à eficiência do processo de colonização: “A alienação que é possível produzir a partir do processo colonial racista, é muito eficiente nos subalternizados; faz as pessoas acreditarem em coisas que não têm que ver com a materialidade da vida delas. E a hegemonia funciona assim: ela só se sustenta porque tem vários cúmplices que não estão lucrando nada com isso, mas continuam ali”, explica Fabiana. É disso que Chimamanda fala quando conta que escrevia sobre narrativas que não eram suas, e que a sua vida se alterou quando descobriu a literatura africana.
Sobre os valores sociais que existiam nas sociedades pré-coloniais, Fabiana Leonel diz que não é “romântica ao ponto de achar que tudo era perfeito antes”, e que “inclusive em sociedades africanas, existiam, sim, muitas hierarquias e violências, mas tem um quê de valores civilizatórios que eu acho que estão sendo resgatados, retomados, como invenção da roda, mas essa roda já está aí há muito tempo”. “Ela só não está na visibilidade”, completa Fabiana Leonel.
Tirar da invisibilidade, desarrumar estruturas dominantes, lembrar que há História pré-colonial e reenquadrar a perspetiva que durante séculos não foi questionada — e, quando foi, entrou num ciclo de deslegitimação — não pode ser um processo do amanhã.
“A revolução é um processo, não um evento único”
“A determinada altura, o que acontece connosco que somos africanos na diáspora, é que vivemos dentro da caixa deste sistema e negamos tudo isso, que é nosso: desfrisamos os nossos cabelos, passamos a falar de outra maneira, dizemos que não gostamos de kizomba, dizemos que não comemos essa comida. Mas, no fundo, só estamos a afastar-nos daquilo que é a nossa cultura, daquilo que é a nossa linguagem e as formas de expressar africanas porque só nos queremos enquadrar aqui”, conta Nael, co-fundadora da Fonte e estudante de psicologia.
O processo de restaurar esse encontro com a raíz nem sempre é igual para todxs. Para o explicar, Fabiana faz-se acompanhar de James Baldwin, dizendo que “não existem revolucionários de barriga vazia”, e contextualiza partilhando o contexto em que cresceu: “Eu acho que o ideal era que a gente tivesse essa estrutura afetiva para não adoecer [motivados pelo racismo de que somos alvo], mas a possibilidade de ter isso é muito recente. Na minha história de vida, eu não tenho nem uma amiga, nem nenhuma pessoa próxima da minha geração, em que isso tenha sido re-significado de forma direta, como ‘olha, se te disserem isso na escola, não é verdade’ ”. Mas não esquece que o caminho que faz hoje se deve aos que viveram e lutaram antes de si, porque, como lembra a poeta Audre Lord, “a revolução não é um evento único”, mas um processo. Com Nael, acontece o mesmo: “Da mesma maneira que a minha avó, a minha mãe, a minha tia, fizeram esse processo, eu também estou a fazer, só que em condições diferentes. E tudo o que nós temos hoje, sinto que nos foi deixado por elas, foi-nos deixado pela luta delas”.
Na luta de um geração que “já não pode aceitar” algumas das condições impostas aos seus ancestrais, exige-se o espaço para ser quem se é, sem ter de negar a sua identidade nem aceitar um apagamento como consequência da sua raíz. É o tempo certo para exigir mais, diz Fabiana: “dentro desse processo da produção do conhecimento, eu acredito que só é possível fazer isso diversificando. Hoje, nessa sociedade em que a gente vive, a produção de conhecimento está encastelada nas universidades e os outros lugares são muito pouco validados. Se a gente não quiser desconstruir a Universidade como um todo, isso pode acontecer também lá dentro, e só é possível diversificando os acessos, diversificando os autores. E já existe material suficiente para fazer isso”. O primeiro passo para a mudança é “assumir o problema”, acredita Nael — o que nem sempre tem acontecido no contexto português, onde o “luso-tropicalismo se foi mantendo até aos dias de hoje”.
Fabiana, que apesar de ser brasileira vive e trabalha em Portugal, enquanto investigadora do CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, acredita que “as ações afirmativas são necessárias em todos os lugares”, por uma questão de reposição histórica. Em Portugal, a sua análise centra-se nas novas gerações de afro-descendentes, em quem deposita a esperança: “é claro que nem todo o mundo que vai entrar para uma reserva de vaga, que é nascido em Portugal e descendente dos países escravizados (Angola, Guiné Bissau e Moçambique), se ia interessar com temáticas ligadas a esse universo delas. Outras pessoas se iriam interessar por outro tipo de conhecimento, e essa diversificação no conhecimento e na pesquisa, na próxima geração ia gerar uma gama de pesquisadores suficiente para entrarem na Universidade nos próximos tempos”.
Renata Machado, que a partir do Brasil também nos dá a conhecer, a nós portugueses, o contexto do seu povo, relembra que “existe um silenciamento histórico que grita por toda parte no século XXI, nas vozes de pessoas que antes nunca tiveram oportunidade ou espaço para mostrar sua verdadeira História e de seus antepassados”. Foi com esta frase e o poema de Sam-La Rose em mente que reencontrei Nael numa roda de conversa organizada pela Fonte, cujo tema era “Heranças Culturais e Identidade Branca em Portugal”, semanas após o nosso primeiro contacto. “O que é ser branco?”, perguntou, a certa altura, Nael, em voz alta. Essa consciência do que é a branquitude é, também, um passo fundamental para a decolonização efetiva do conhecimento. Olhar para dentro e rejeitar a história única é o primeiro passo. Porque “quando rejeitamos a história única, quando nos apercebemos de que nunca há uma história única sobre nenhum lugar, reconquistamos uma espécie de paraíso” [3].
Referências
[1] Jacob Sam-La Rose, Poetry Sable: the Literature Magazine for Writers, Winter 2002, p.60 citado por Grada Kilomba, “Memórias da Plantação”, 2019, Orfeu Negro
[2] Fanon, Frantz , “Pele Negra, Máscaras Brancas”, 1952, tradução de Renato da Silveira – Salvador : EDUFBA, editado em 2008
[3] Adichie, Chimamanda, “O perigo da história única”, 2019, TED Global [vídeo consultado a 1 de dezembro de 2020]
[4] Câncio, Fernanda, 2017, “Persiste nos manuais a narrativa de que fomos bons colonizadores”, Diário de Notícias [artigo consultado a 23 de novembro de 2020]
[5] Roldão, Cristina, “40 anos à espera de bell hooks”, 2019, Público [artigo consultado a 24 de novembro de 2020]
[6] Franco, Carolina, “JJ Bola: É mais difícil redefinir as masculinidades no futuro, mas não é impossível”, 2020, Shifter [artigo consultado a 23 de novembro de 2020]
[7] Potiguara, Eliane citada por Gehlen, Rejane, 2011, “Identidade de Eliane: a face Potiguara, a máscara indígena, o eco de vozes silenciadas”, Boitatá – Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL [artigo consultado a 30 de novembro de 2020]
[8] Abu-Lughob, Lila, 1991, “Writing Against Culture”, Fox, R. (ed.), Recapturing
Anthropology. Working in the Present, Santa Fe, School of American Research Press