A denúncia de um caso de plágio suscitou recentemente uma catadupa de reações que sugere uma contenda profunda sobre a questão da autoria e a circulação de textos e ideias. Uma contenda com vasto lastro histórico e que, à semelhança de outras matérias, já não é traduzível pela habitual polarização entre esquerda e direita. Dado o enrodilhado de argumentos, que escapam ao esquema dicotómico tradicional, dir-se-ia que o plágio não se limita a redefinir o vector de uma polarização histórica, ele desfaz qualquer tentativa de estabelecer sentido a partir de essa polarização, ainda que não deixe de produzir novos polos de conflito. Convém, por isso, afastar os esquemas antigos e evitar as divisões obsoletas, o que não pressupõe amaciar os desentendimentos, nem afastar as dissensões.
Não se pretende reconstituir a história de mais um episódio de plágio, ou refazê-la tal como foi, contando por exemplo como ela ecoou nas redes sociais, onde todas as histórias se sujeitam a ser consumidas da mesma maneira, isto é, suscitam opiniões fortes e, invariavelmente, inultrapassáveis, sem nunca contemplar meios-termos. Também não se deseja julgar os seus protagonistas, nem salvá-los dos papéis já atribuídos, até porque dificilmente se resgata um “plagiador” do rótulo da infâmia, nem se redime a constituição de uma nova forma de delinquência, carregada de vícios e iniquidades, mesmo que se procure elencar os fragmentos mais célebres do campo literário onde se elogiam os falsários e se caustica a ideia de originalidade.
Pretende-se, em contrapartida, problematizar o tema da autoria, em particular, questionar a sua natureza intemporal e definitiva, uma intenção porventura pretensiosa, mas que não é mais do que uma tentativa de dissecar uma questão sem encará-la como um obstáculo a superar. Em vez de procurar soluções rápidas que respondam à urgência de um posicionamento inequívoco, ou instituir um processo penal para determinar a culpa e o respetivo grau de punição, optar-se-á por encetar uma breve digressão sobre os diferentes modos de encarar a questão da autoria. A digressão talvez contribua para frustrar o sentido, o estatuto e o valor que se confere geralmente ao autor.
Atribuir um nome a um texto estabelece um princípio de certificação, permite afirmar que alguém o escreveu, que ele é verdadeiro, o que significa que o texto tem um estatuto especial e deve ser recebido de uma determinada maneira. A presença do autor oferece ainda a garantia de pertença a uma determinada comunidade intelectual ou escola de pensamento, basta citar o autor x ou y (como faz quem assina este texto), seguir as normas para a elaboração de referências bibliográficas, para que a autoridade autoral possa ser invocada e, portanto, legitimada. Nesse sentido, a questão da autoria parece ser praticamente inescapável, ela ativa paixões, presta-se a fetiches e produz desejos de filiação, reconhecimento e distinção. Porém, interiorizar a questão da autoria, reproduzi-la ou mesmo incensá-la quotidianamente, não significa que ela seja natural e imutável. É precisamente porque o autor faz parte de um sistema que o fabricou ao longo do tempo segundo regras específicas que convém interrogar a sua incontestabilidade.
A tirania da intenção
No final da década 1960, as correntes pós-estruturalistas enunciaram um corpo fecundo de ideias, fora do vocabulário e das estruturas tradicionais, que interrogavam as oposições binárias, os limites da razão e da consciência, as relações entre conhecimento e poder, as verdades intemporais, as políticas progressistas, o papel do sujeito enquanto agente auto-determinado, dotado de consciência e operador universal de todas as transformações, etc. A conjuntura abriu espaço para questionar os métodos e os limites das ciências, desatar as sujeições antropológicas e as boas vontades do humanismo, decretar a obsolescência das transcendências fundadoras e arruinar por completo um sistema de produção de verdades. Nada parecia escapar ao gesto destruidor, nem mesmo categorias consideradas evidentes como o autor.
Dois autores associados ao pós-estruturalismo, embora nunca se tenham reconhecido na etiqueta, encetaram uma crítica à noção de autor enquanto instrumento de classificação dos textos e constituição de sujeitos individuais. Tanto “A morte do autor” de Roland Barthes (1968), como “O que é um autor” de Michel Foucault (1969), frustram a ligação entre autor e texto e desalojam o autor do lugar de soberano do texto. Ambos subvertem a crença na autenticidade autoral, sugerem uma indiferença relativa sobre quem escreve, favorecendo a errância em vez de um fundamento originário, e expõem um modo particular de produzir indivíduos, gerados precisamente a partir da noção de autoria onde se entrecruzam vida e obra.
Enquanto Michel Foucault descreve como cada época inventa a sua própria função autoral, ao mesmo tempo que constata como a emergência do sujeito escritor aprisiona a livre circulação de discursos, reenviando-os para a interioridade de um indivíduo, Roland Barthes decreta sem hesitações “A morte do autor”, um gesto emblemático que visa abolir a tirania da intenção, que encontra no autor o proprietário do texto e o garante definitivo do sentido. O propósito é fixar o texto com um significado definitivo, garantir uma interpretação fidedigna, não dando margem para a indeterminação ou impessoalidade.
Em “A morte do autor”, Roland Barthes procura romper com a noção de autor enquanto fonte de coerência, unidade e chave de leitura dos textos. Barthes pretende libertar os textos das suas amarras prescritivas, em particular, da tirania da intenção, que entrega a interpretação do texto ao seu criador, como se o que o autor sente, imagina e conhece permanecesse fixo, estivesse gravado no texto e condicionasse em absoluto a leitura. Como sublinha Roland Barthes: “Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura”1. Contraditando a intenção de fechamento, o texto transpõe o que o autor pensa e decreta, não é explicado por quem o antecede ou produziu, nem está tutelado por intérpretes autorizados. Ou seja, o texto é um resultado de intertextualidades e conexões várias, produz ambiguidades e gera uma multiplicidade de sentidos.
A contenda contra o afunilamento do sentido visa igualmente a figura do crítico, habitualmente situado no trono do leitor profissional, detentor da última palavra, que patrulha as generalizações abusivas e as “extrapolações aberrantes”. A recusa em atribuir um texto a intérpretes eleitos abre espaço para reordenar e, sobretudo, desierarquizar a relação com o texto. Rejeitar a omnipresença do autor, passar da leitura à crítica, fazer de cada leitor um crítico amador, aquele que reconduz o prazer da leitura sem intenções de mestria, pedagogia ou competição, institui um novo modo de conceber a autoria, a circulação de textos e as práticas de leitura.
Desalojada de um autor, a “escritura” constitui-se como um espaço de dimensões múltiplas, composta por várias escritas onde nenhuma é original, mais autentica ou verdadeira. Abrigo de várias vozes, apropriações e citações, rupturas e desvios, todo o exercício de escrita é inevitavelmente uma reescrita. Para exemplificar como um texto é um espaço aberto de dimensões múltiplas, Barthes evoca as personagens Bouvard e Pécuchet, do romance de Gustave Flaubert, dois copistas “cujo profundo ridículo designa precisamente a verdade da escritura, o escritor pode apenas imitar um gesto sempre anterior, jamais original”2.
A construção da originalidade fixa o autor como a origem dos textos, ofuscando o facto de que o autor escreve numa teia de escritas prévias, inevitavelmente depois de muitos outros, e pretende garantir que cada texto que se lê é único e original. Além de inventar sujeitos escritores, recriando a mitologia romântica do génio criador, a busca pela originalidade é também um meio de produzir identidades unas, estáveis e permanentes. Imaginar a possibilidade de um texto falar por si, desapossar a autoridade de “um”, que passa por quebrar a ligação entre autoria e autoridade, foi a via bartheseana para dissolver, ou pelo menos atenuar o poder autoral. Em vez de cristalizar o mito do autor, enquanto depositário de valores superiores e eternos, Roland Barthes propôs-se inverter os mitos: matar o autor para que em seu lugar pudesse florescer o leitor, uma figura sem história, biografia, nem psicologia.
A “função-autor”
No texto “O que é um autor”, Michel Foucault historiciza a emergência da “função-autor”, detalhando como se investiu, isolou e organizou um campo de objetos unitário, autentificado pela lei e pela moral, que permitiu criar o autor e atribuir-lhe um horizonte de verdade. Segundo Foucault, a emergência do autor constitui um momento singular da individualização na história das ideias e é uma forma de caracterizar a circulação de discursos numa dada sociedade e questionar os mecanismos pelos quais o nome próprio é atribuído a uns e não a outros textos. A “função-autor” não se exerce de forma constante e universal, ela está ligada a um sistema jurídico responsável por instaurar a figura do autor moderno, que “permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-los, opô-los a outros textos”3.
O reconhecimento da “função-autor” está historicamente associado à interdição de textos considerados heréticos pelas autoridades religiosas. A apropriação legal da “função-autor” traduziu-se inicialmente num exercício de censura e perseguição dos autores julgados hereges, transgressivos ou heterodoxos. A passagem do manuscrito para a forma impressa e a presença de um nome próprio numa determinada obra, que a reenvia para um indivíduo singular, agilizou os processos de censura e perseguição. O facto de existir um suporte “percetível” e a possibilidade de identificar as obras veio facilitar a integração do autor no sistema de propriedade intelectual. A proteção legal dos direitos de autor passa a ser entregue à racionalidade imanente dos tribunais, que vão generalizar um conjunto de categorias penais como o roubo, a burla, a fraude, o plágio, além de categorias morais como honesto e desonesto, íntegro e imoral, decente e iníquo, sério e fraudulento, etc.
O sistema jurídico vai criar condições para que um indivíduo possa cumprir a função de autor e instaurar regras estritas sobre os direitos de autor, incluindo as relações entre autores e editores, regimes de propriedade, direitos de reprodução e cópia e, em paralelo, instituir uma legislação penal para sancionar as infrações. É um sistema que cria o sujeito escritor através de uma separação artificial entre o nome do autor, assinalando o seu estatuto e singularidade, e o indivíduo concreto. Nesse sentido, a “função autor” cria uma ficção que, segundo Roger Chartier, se assemelha às “ficções que dominam o direito quando ele constrói sujeitos jurídicos que estão distantes das existências individuais do sujeitos empíricos”4.
É um sistema jurídico fundamentado na teoria do direito natural que vai criar a ideia de um autor enquanto proprietário da sua obra e, paralelamente, vai garantir que ele possa usufruir dos benefícios morais e patrimoniais da sua “criação”. Assim como o homem é proprietário do seu corpo, ele detém igualmente o produto do seu trabalho, logo os textos que “criou” também lhe pertencem, ficam sob a alçada de um conjunto de normas que garantem benefícios, vantagens e prerrogativas a quem criou determinada obra. Qualquer tentativa de a violar, infringir, ofender, ou transgredir é julgada e punida.
Não é só o direito que oferece condições para que um indivíduo possa cumprir a função de autor e autenticá-la colocando a sua assinatura numa obra, há também uma fundamentação moral, por vezes confundida com justificação de ordem estética. Na verdade, a autoria só é reconhecida se obedecer aos preceitos da originalidade, se as marcas distintivas do autor, seja a sintaxe ou o estilo, forem claramente identificadas e permitam comprovar a reputação de quem escreveu. Pressupõe-se que o autor é um indivíduo que detém um poder criador singular e um projecto original e distintivo de escrita.
O direito e a moral funcionaram, portanto, como critérios de estabilização da “função-autor”, atribuindo ao autor uma identidade única, dotada de coerência e unidade. Em vez de serem “recebidos sem que a função autor jamais aparecesse”5, como sugeria Michel Foucault, os discursos foram entregues aos autores, designados os seus proprietários legítimos.
Conjeturar a possibilidade de uma circulação de textos destituídos de toda origem, sem identificação nem assinatura, reutilizados e duplicados indefinidamente, continua a esbarrar num edifício de normas que protegem a propriedade intelectual. Nem a circulação de textos sem identificação é compaginável com um sistema jurídico que protege os direitos patrimoniais e morais do autor, considerados por lei “pessoais e inalienáveis”, nem a intenção de abolir a individualidade autoral, mitigar um estatuto, operar um descentramento, uma despersonalização ou desprendimento de si, é imaginável num terreno povoado por egos e narcisismos.
Desdobrar as palavras
Em nenhum dos textos aqui mencionados aparece a palavra plágio, a prática não é advogada, nem apontada como a solução para abolir, dissolver, ou atenuar poder autoral. A ausência de uma palavra não impede que se reconsidere a forma como se encerraram os textos na autoridade de “um” autor, encarado como a origem de todo o sentido, se efabulou sobre a originalidade, se instaurou a “função-autor”, atribuindo ao indivíduo um poder criador singular, se procedeu à blindagem jurídica de uma categoria, conferindo ao autor prerrogativas, garantias, estatuto e valor, enquanto se instituíam em paralelo sanções normalizadoras. A construção social do autor, a variabilidade histórica como a categoria foi entendida, seria suficiente para enfraquecer o seu teor de verdade, ou suspeitar da sua naturalidade.
Se o afunilamento da “função-autor” na justiça penal encarrega-se de punir quem não cumpre os direitos de autor e tenta disciplinar os gestos e atitudes de quem os ousa questionar, a obsessão pela singularidade, que generaliza a crença de que o autor possui uma voz única e inconfundível, abre pouco espaço para olhar para os textos como feitos de escritas múltiplas. A convicção de que se possui ideias e palavras e que a autoria é uma condição definitiva, geradora de uma identidade singular e intransmissível, hoje ameaçada pelo “plagiador” que a pretende usurpar, dista da tentativa de imaginar uma cultura onde os textos e ideias pudessem circular sem que a “função-autor” se impusesse. Nela “pouco mais se ouviria do que o rumor de uma indiferença: Que importa quem fala”6.
1- Roland Barthes, “A morte do autor”, p. 62. 2- Roland Barthes, “A morte do autor”, p. 63. 3- Michel Foucault, O que é um autor?, p. 45. 4- Roger Chartier, O que é um autor? Revisão de uma genealogia, pp. 29-30. 5- Michel Foucault, O que é um autor?, p.70. 6- Michel Foucault, O que é um autor?, p.71. Michel Foucault (2002), O que é um autor?, Lisboa: Vega. Roger Chartier (2012), O que é um autor? Revisão de uma genealogia, São Paulo: Edufscar. Roland Barthes (2004), “A morte do autor” In O rumor da língua, São Paulo: Martins Fontes, pp. 57-64.