No domingo, 30 de outubro, Carolina Valentim saiu de casa de câmara fotográfica ao ombro. Já tinha traçado um roteiro das paragens obrigatórias para aquele que viria a ser “um dos dias mais felizes” da sua vida. Quando bateu a porta, não conseguia prever o desfecho, mas já tinha uma certeza: seria um momento histórico. O resultado das eleições no Brasil ia ditar o rumo daquela noite, mas também do futuro do país. Carolina é fotógrafa, natural de Lisboa, e vive há 8 anos em São Paulo. Não é brasileira, mas já sente as dores e as alegrias do Brasil como suas. E os últimos quatro anos foram particulares.
Era hora de almoço quando se dirigiu ao centro da cidade. Nos bares e restaurantes por que ia passando, começava a ver pessoas ao telemóvel enquanto almoçavam. Estavam todas a ver o mesmo. No nordeste do Brasil, começava a haver relatos de operações STOP que paravam autocarros cheios de eleitores. As operações aconteciam um pouco por todo o país, mas 49,5% (272, no total) estavam a ser feitas precisamente na região em que Lula é, historicamente, maioria. No primeiro turno, tinha ultrapassado Bolsonaro em todos os estados do nordeste. E só nessa zona, no dia da votação do segundo turno, foram feitas 50% das operações STOP que decorreram ao longo do dia — e que haviam sido proibidas pelo ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), no dia anterior.
“O passeio começou com essa notícia e estava toda a gente super apreensiva a ver se iam prolongar o horário de voto para que as pessoas conseguissem ir votar”, recorda Carolina Valentim. Naquele momento, todas as pessoas tentavam perceber até que ponto iria interferir no resultado final. Nos grupos de pessoas que Carolina ia encontrando, estava todo o tipo de pessoas. Tinham todas em comum a ânsia de um novo capítulo para o Brasil. Algumas, nunca tinha visto nas ruas de São Paulo. Outras, eram rostos familiares. Num desses restaurantes, estava Matuzza Sankofa, fundadora da ONG Casa Chama , que tem promovido a dignidade e autonomia de pessoas Trans, e coordenadora no centro de convivência É de Lei.
Para Carolina Valentim, ia sendo bastante claro que quase todas as pessoas que se juntavam por ali estavam a torcer pelo mesmo resultado e partilhavam alguns dos mesmos valores. Isso de certa forma unia-as, mesmo que fossem perfeitos estranhos. À medida que as urnas fechavam e a contagem de votos começava a ser feita, havia uma “aglomeração de pessoas nos bares e restaurantes”. Parou no Jhony’s, um bar no bairro de Santa Cecília, e, a dado momento, deu por si a pensar: “Acho que estou a ver mais pessoas sentadas à frente à televisão, e no boteco, do que no mundial de futebol.” Seguiu para a Ocupação 9 de Julho, “um grande símbolo do movimento pela moradia em São Paulo”, onde há uma horta comunitária, exposições, e crianças a correr livremente. O ambiente, por lá, ainda era de nervosismo. Até que Lula passou à frente de Bolsonaro. Aí veio a euforia.
Quando percebeu que o veredito final estava próximo, e que Lula seria mesmo o vencedor, Carolina seguiu para o destino final em noite de vitória: a Avenida Paulista. Caminhou pela rua Augusta, com lágrimas incontroláveis a cairem atrás da câmara. É que à frente da câmara, toda a gente chorava também, enquanto dançava e festejava. “Eu senti que as pessoas não estavam com medo. As pessoas saíram e sentiram que a rua era delas naquela noite, e que iam celebrar; não podiamos ter medo de quem nos meteu medo.”
À chegada à Paulista, “um clima tranquilo”. Havia famílias, grupos de amigos, gente de todas as idades. Pessoas que tocavam instrumentos, outras que dançavam, outras que se beijavam. Enquanto Lula discursava, por fim, na Paulista, Carolina Valentim registava as expressões de quem o ouvia. Viu “ esperança no olhar das pessoas”. Ao longe, Lula dizia: “Essa vitória não é a minha vitória, é a vitória do povo brasileiro e da democracia”. “A democracia está de volta no Brasil, a liberdade está de volta no Brasil. O povo vai poder sorrir outra vez”. Quem o ouvia de perto, já sorria.
Entre a multidão, circulava uma bandeira do Brasil gigante. Carolina Valentim viu-a a descer a Paulista, de mão para mão, e reconheceu ali o simbolismo da nova era que acabara de começar. A bandeira do Brasil, símbolo apropriado pela campanha de Bolsonaro, voltava a pertencer a todos os brasileiros e brasileiras. Sempre pertenceu. “Não existem dois países, existe um, e a partir de agora é esse país que vamos cuidar”, diz Carolina ecoando uma importante passagem do discurso de Lula da Silva: “Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”. E quando a bandeira percorreu as mãos de todos os que faziam a celebração ao ar livre, pela noite dentro, chegou por fim ao chão. E houve quem lá se sentasse a conversar com amigos, quem se deitasse e quem continuasse a festejar. E ali, na Avenida Paulista, sentiam que o Brasil era novamente seu.