Desde que foi lançada em 2020 por Ursula von der Leyen, a Presidente da Comissão Europeia, no seu discurso do Estado da União, a Nova Bauhaus Europeia (NBE) tem despertado o interesse do sistema do design e da arquitectura a nível europeu. Este sistema, que reúne escolas e universidades, associações profissionais e empresariais, órgãos e instituições estatais tais como museus, centros e institutos, mas também publicações e entidades organizadoras de eventos associados às chamadas disciplinas do projecto, é responsável pela criação e manutenção de um discurso sobre a prática e divulgação do design. Mas desengane-se quem julga que a NBE interessa apenas a designers e arquitectos. É que este é também o nome, tema ou pretexto para várias linhas de financiamento associadas ao instrumento NextGenerationEU, o plano de recuperação verde da UE que conta com mais de 800 mil milhões de euros. Como tal, tem também reunido interesse de muitos agentes dos sectores público e privado, de governos estatais a https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistrações locais, sem esquecer as universidades e os lobbies empresariais. Acima de tudo interessa à Comissão Europeia, que sob a égide da criatividade, da sustentabilidade e da participação cidadã criou a NBE – que ninguém nas instituições da União Europeia (UE), nos governos, na academia ou na sociedade civil ainda sabe bem o que é e para onde vai – como um mecanismo de escrutínio público sobre a forma como estes fundos são discutidos, distribuídos e investidos. Só por isso é uma boa ideia.
Quanto à Bauhaus original, vale a pena lembrar que as dezenas de professores e centenas de alunos – muitos mais do que professoras e alunas – desta escola de artes aplicadas (que em português significa, literalmente, casa da construção) chegaram às suas três localizações na República de Weimar entre 1919 e 1933 vindos de um mundo redesenhado pela Primeira Guerra Mundial. Uns apátridas face à queda dos impérios que a lutaram, outros com passaportes de nações acabadas de inventar. Todos viveram à beira do abismo: da hiper-inflação à pandemia de gripe espanhola, da ascensão do comunismo e do fascismo à queda do capitalismo desregulado no crash da Bolsa de 1929. Viveram também várias revoluções – dos transportes às comunicações, da música à moda, das drogas ao sexo – e ousaram romper com famílias, convenções e identidades para projectar um futuro imprevisível numa das mais revolucionárias e controversas experiências pedagógicas do século XX. É essa experiência que a NBE pretende honrar, replicar ou adaptar para o século XXI? Também não se sabe. Ainda.
Esta primeira edição do festival teve dois locais e três dimensões distintas: na Gare Maritime, edifício do Porto de Bruxelas construído em 1902 e inaugurado em 2021 após uma extensa renovação que aliou restauro patrimonial e adaptabilidade climática, decorreram a Fair, feira de projectos e mostra de candidatos ao Prémio NBE, e o Forum, conferência composta por palestras e mesas redondas dedicada às várias dimensões de acção e impacto da NBE, com acesso por convite ou inscrição. No Mont des Arts, complexo monumental no centro de Bruxelas, decorreu o Fest, a vertente mais pública e popular do festival que incluiu conversas, apresentações, workshops e concertos, tudo com acesso livre. As afirmações e observações recolhidas neste artigo estão sobretudo focadas nas discussões mais ligadas ao design, não incluem todas as sessões do Festival, nem mencionam todos os intervenientes. O registo em vídeo da maioria destas sessões estão disponíveis online no canal do Youtube Ciência e Inovação da Comissão Europeia.
Dia 1: das boas intenções às palavras com consequência
A sessão inaugural do Festival ocorreu entre a Gare Maritime e o MAXXI, o Museu de Arte Contemporânea de Roma; juntou Ursula von der Leyen e o arquitecto Francis Kéré (vencedor do Prémio Pritzker 2022) e também o Ministro da Cultura italiano, Dario Francheschini, e Giovanna Melandri, a directora do MAXXI. Na sua intervenção, von der Leyen falou como a NBE está imbuída do “princípio da Europa,” o qual se baseia numa economia de mercado sólida, numa transição justa entre as suas regiões e num fundo climático justo. Que por sua vez possa viabilizar investigação e implementar soluções para os desafios futuros do continente. Como, por exemplo, a era seca com que estamos confrontados, tanto na Europa como, também, em África, através de tecnologias como a nanotecnologia usada no fabrico de fertilizadores à agricultura de precisão. von der Leyen lembra o subtítulo (ou será slogan?) da NBE – beautiful, sustainable, together (bela, sustentável, em conjunto), para dizer que a alma desta iniciativa está nas pessoas. Como tal, complementa, a NBE assume-se como um movimento “bottom-up”, que vem das comunidades. Esta foi, aliás, a mensagem mais consistentemente repetida ao longo dos 3 dias do Festival. A outra foi a de que a guerra da Ucrânia veio dar uma inesperada urgência a uma iniciativa que pretende estimular a criatividade e acelerar processos que tornem a Europa mais sustentável, resiliente e independente a nível energético. Ao comentar que a economia da Rússia é fortemente baseada em combustíveis fósseis mas não na criatividade, von der Leyen disse que esta só é verdadeiramente possível naquilo que lhe falta: liberdade e democracia.
Francis Kére, arquitecto originário do Burkina Faso que estudou e reside na Alemanha, ressalva o acesso à educação de que a esmagadora maioria dos europeus usufrui, como um factor de desenvolvimento ao qual toda a população do planeta aspira, para além do acesso à comida ou ao trabalho. Celebra também a dimensão cultural que a NBE acrescenta ao Green Deal da UE mas adverte: se a Europa fizer a coisa errada, a África copia; se a Europa fizer a coisa certa, a África copia também. Apela por isso a que sejam tomados os passos certos e que sejam consideradas soluções de design inspiradas na natureza, tão belas quanto resilientes, mas que estas tenham também um carácter aspiracional. Esta sessão foi ainda complementada com uma volta à Europa, no registo votação de júris da Eurovisão, em que foram chamados ao ecrã gigante no palco da Gare Maritime responsáveis dos mais de 200 eventos paralelos associados ao Festival NBE, em curso nesses dias por todo o continente. Deu para ver a enorme variedade e ambição destes eventos e projectos associados, bem como a heterogeneidade dos seus organizadores.
Na sessão de apoio à Ucrânia discutiu-se como a NBE pode ajudar a reconstruir este país; um dos contributos mais relevantes para esta discussão veio de Sneška Quaedvlieg-Mihailović, Secretária-Geral da Europa Nostra, organização da sociedade civil dedicada à preservação do património cultural europeu. Ela comentou que a aniquilação da memória cultural, de que a destruição do património faz parte, é um acto deliberado, não um dano colateral. E relembrou as semelhanças entre o bombardeio de Varsóvia em 1939 e o de Mariupol em 2022. Sergei Orlov, vice-presidente da câmara de Mariupol, relembrou que o standard para a reconstrução da sua cidade, como de outras na Ucrânia, tem de ser a de Berlim Ocidental. Ou seja, a mais avançada possível e adequada às necessidades presentes e futuras das suas populações. Ruth Schagemann, Presidente do Conselho Europeu de Arquitectos, relembrou que enquanto iniciativa com um poderoso impacto nas populações, a NBE não pode ter um carácter “top-down” mas sim ter uma lógica “bottom-up”, em que os cidadãos são não só tidos em conta sobre essas necessidades mas assumem activamente a agenda, a discussão de prioridades e a implementação de medidas. E acrescenta: pode a sustentabilidade ser um valor cultural e social? Pode a cultura ser uma força-motriz para um país que está a ser destruído?
A primeira sessão no Mont des Arts foi uma palestra do arquitecto japonês Shigeru Ban, que se tem especializado no projecto de estruturas em tubos de cartão, com que tem dado uma resposta rápida a necessidades de abrigo e de privacidade pelas populações afectadas por catástrofes naturais, mas também pela guerra em todo o mundo. Ban juntou-se também à sessão seguinte, com o título “O Green Deal e a NBE: como transformar as nossas cidades e as nossas sociedades em tempos de crise climática global?”. Nesta conversa, o arquitecto Markus Bader do Colectivo Raumlabor apresentou a Floating University, uma estrutura temporária construída em 2018 sobre o lago artificial criado para armazenar a água da chuva recolhida no antigo aeroporto de Tempelhof em Berlim – que ele chamou de paraíso contaminado. Bader lembrou esta excepcional experiência pedagógica para reafirmar que a arte é, ainda, um sector onde se podem assumir riscos. Na mesma sessão, Hilda Flavia Nakabuye, Activista do Clima, Género e Direitos Ambientais residente no Uganda, mencionou que a iniciativa Fridays For Future pretende também dar voz a quem não a tem, sobretudo as pessoas longe do Europa, e que a NBE tem de incluir essas vozes. Hans Joachim Schellnhuber, fundador e director do Potsdam Institute for Climate Impact Research, afirmou que parte da missão da NBE passa por convencer a Comissão Europeia a mudar a legislação europeia de forma a dar resposta às ideias e propostas que forem geradas. Esta foi, também, uma afirmação muitas vezes repetida ao longo do Festival. Só que para isso, acrescenta, “precisamos de uma boa história.” Pode a NBE ser essa história?
Na sua inspiradora palestra “A Selva Urbana,” o biólogo e professor na Universidade de Florença Stefano Mancuso afirmou que a massa antropogénica, ou seja, aquilo que a humanidade pensou, projectou, extraiu, concebeu e em muitos casos descartou, excedeu em 2020 a biomassa existente no planeta. Mancuso explicou também que ao contrário das espécies especialistas, que vivem apenas num único ambiente ou ecossistema, enquanto espécie generalista os humanos podem viver em qualquer lugar, adaptando as condições às nossas necessidades. Afirmando que, no entanto, estamo-nos a tornar cada vez mais numa espécie especialista: a cidade é o nosso nicho ecológico, tal como o deserto é para os cactos. É nas cidades, que ocupam apenas 1.7% do planeta, onde são consumidos 70% da energia, 75% dos recursos naturais, 75% do CO2 e 70% dos resíduos criados pelos humanos. É então nas cidades, disse ele, que temos de procurar a resposta para a nossa crise ambiental. Parte dessa resposta passa por plantar árvores. Muitas árvores. Mancuso reclama que para baixar os níveis de CO2 na atmosfera, reduzir a temperatura no planeta e melhorar a nossa qualidade de vida temos de plantar muito mais árvores nas nossas cidades. Em todos os lugares onde o possamos fazer. Nas ruas, todas as ruas. Nas varandas. Até nas salas de aulas. Adverte contudo que para que este processo de plantação radical de árvores urbanas tenha consequências temos de ter a consciência de que toda a monocultura é instável, fraca e vulnerável. E que a organização da vida na Terra se define pela colaboração e pela simbiose, não pela competição: advertências que servem também de orientação para a NBE, tanto a nível de projecto como de cidadania.
Dia 2: construir uma nova casa europeia: dos materiais aos dados, do trauma à utopia
No primeiro painel do 2º dia do Festival, dedicado ao design regenerativo para o ambiente construído, Matti Kuittinen, especialista sénior do Ministério do Ambiente da Finlândia, relembrou que a metáfora do planeta como uma casa implica que não existe um exterior onde podemos deitar fora o que não queremos ou precisamos mais. Isso implica reimaginar a forma como lidamos com resíduos mas também com a energia. O arquitecto austríaco Martin Rauch, fundador da atelier Lehm Ton Erde e especialista na construção em taipa (terra prensada), apelou a que este tipo de técnica pré-industrial, usada na construção de edifícios onde vive hoje um terço da população mundial, possa ser não só replicada no presente mas também escalada no futuro. Contudo, reconheceu que não existe ainda um lobby da taipa, tal como existe do betão, que possa sensibilizar a Comissão Europeia para investir tanto na pesquisa como na educação. Rauch salientou também a necessidade de introduzir nos cursos das áreas de projecto materiais outrora comuns e que se tornaram alternativos ou até exóticos. E disse também que não existem actualmente suficientes trabalhadores qualificados neste tipo de construção e que o material, o qual muitas vezes pode ser extraído do próprio lugar da construção, necessita de certificação para ser usado legalmente. Como em muitas outras áreas e leis, nem todos os estados-membros estão no mesmo patamar ou até no mesmo tipo de velocidade no que diz respeito a isso – Kuittinen partilhou o exemplo da Finlândia, onde começaram a pesquisar este tipo de aplicações com fundos de recuperação da UE. A moderadora do debate, Orla Murphy, professora na Escola de Planeamento em Arquitectura e Política Ambiental da University College Dublin, corroborou a necessidade de repensar os programas dos cursos das áreas de projecto para introduzir e repensar os materiais usados, mas também reconsiderar o seu valor.
Kadri Simson, Comissária para a Energia, Comissão Europeia, disse que temos de das prioridade à renovação do edificado, criando empregos na construção e produção de materiais. A guerra (e não só) veio acelerar a corrida contra o tempo para a renovação de edifícios de forma a aumentar a sua eficiência energética e que o ambiente construído tem de ser parte de um novo enquadramento de segurança energética. Em 2030, acrescenta, estima-se que 45% do mix energético seja composto por energias renováveis (comparando com os 32% actuais), pelo que os legisladores a nível local e nacional precisam de apoiar este esforço. E relembrando as palavras de von der Leyen, afirmou que este tipo de metas devem ser atingidas não devido a desastres ou diktats mas sim através do design.
Alessio Rimoldi, secretário-geral da The Concrete Initiative, ou seja, representante do lobby do betão, falou sobre nem todos os materiais alternativos serem hoje competitivos em termos de custo e termos de nos focar no valor dos resíduos da construção como material secundário. Temos ainda, disse, que promover uma mudança cultural que reduza o consumismo em termos do edificado. Murphy acrescentou: temos de cuidar, em vez de adicionar ao edificado já existente; numa das várias referências no festival à obra Doughnut Economics (2017) da economista Kate Raworth, Murphy apelou não a uma redução da qualidade de vida que ameaças como as alterações climáticas podem causa nas populações mas a repensar o que significa viver bem.
Na mesma toada, o arquitecto britânico Geoffrey James Eberle, fundador do atelier Entropic sediado em Barcelona, mencionou que o próprio termo sustentabilidade não é mais sustentável. Perguntou: o que é mais importante, suster ou mudar a nossa situação actual? Apela a que tornemos a fúria que sentimos pela perda em energia que necessitamos para a recuperação. Disse também que pensemos nos custos dos edifícios: a construção é uma enorme indústria mas que para desenvolver e aplicar materiais alternativos e tecnologias inovadoras, os designers precisam tanto de ter acesso como de estimular a criação de novos mercados. Para isso a UE tem, ou mesmo deve, usar os seus recursos para subsidiar esses mercados.
Numa das conversas de 15 minutos entre debates, Kerstin Jorna, Directora-Geral do Departamento para o Crescimento da Comissão Europeia, disse que a construção é parte do problema mas também da solução. E que temos, precisamos de construir melhor, dando o exemplo dos edifícios de habitação social construídos nos anos 1960 nos subúrbios de Paris e de outras cidades francesas que desde 2010 foram renovados pelos arquitectos Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal (Prémio Pritzker 2021), através de um conjunto de intervenções destinadas a dar mais luz, arejamento e conforto aos seus habitantes. Acrescentou que afinal o seu trabalho está imbuído do espírito da NBE, mostrando que é possível não apenas construir mas reimaginar o que já está construído. E que quando levantamos o horizonte podemos ver coisas diferentes. Em termos mais concretos, afirmou que a UE precisa de 800 mil trabalhadores qualificados para trabalhar na indústria de automóveis elétricos e mencionou o anúncio em Fevereiro de 2022 da criação de uma Academia Europeia de Baterias, o que corresponde a um ecossistema de educação pan-europeu financiado por um subsídio de 10 milhões de euros da iniciativa REACT-EU (Assistência de Recuperação para a Coesão e os Territórios da Europa), associada ao instrumento de financiamento NextGenerationEU. O financiamento europeu deve, disse ela, apoiar uma transição verde e isso implica que produzamos e consumamos de forma diferente, alterando a própria relação entre oferta e procura. Um exemplo disso é a recém-aprovada directiva europeia que visa acabar com o “esparguete de cabos” e implementar um carregador único para telemóveis e outros equipamentos electrónicos. Assim se vê o poder da UE para não só mudar a agenda mas também implementar mudanças através da legislação.
A sessão dedicada à educação, moderada por Sneška Quaedvlieg-Mihailović, juntou a artista plástica Danica Dakić, professora na Escola de Arte e Design de Weimar – a primeira Bauhaus, fundada em 1919 – e Petri Suomala, vice-presidente da Universidade Aalto na Finlândia. Dakić mencionou que a história da Bauhaus, e também da Europa, foi condicionada pelo êxodo e pela migração. Que muita da sua (e da nossa) realidade é definida pela crise. E que tanto a experiência do trauma como o sonho da utopia são parte da formação da Bauhaus. Quando imaginamos criamos espaços para a acção, disse ela. A imaginação é também um investimento e para tal precisamos de recursos para a experimentação. Como ex-cidadãs da Jugoslávia, tanto Quaedvlieg-Mihailović (sérvia) como Dakić (bósnia) sabem bem o que é ter vivido com a guerra mas sobretudo com o recrudescimento do nacionalismo, com o erguer de fronteiras e com o risco de violência e mesmo de eliminação daqueles que nos são próximos. Na conversa entre elas, uma das mais memoráveis de todo o festival, falaram sobre a importância da diversidade, da fluidez das fronteiras e da procura da beleza como ideias fundamentais da NBE. “O que pode ser mais belo” disse Dakić, “do que outras pessoas aprenderem contigo?” A beleza é, para ela, uma palavra profunda que nos traz para a dimensão poética da existência, tanto humana como não humana). A experiência traumática, acrescentou, é sempre parte da beleza. Dakić salientou também, criticamente, que no âmbito da NBE devemos criar algo contra o que ela chama de musealização da Bauhaus, criar não uma nova colecção de objectos mas de atitudes. E que uma escola ou universidade devem ser agentes de mudança e não de conservação.
O painel “Rumo a uma Europa diversificada: como podem a arte, a arquitectura e a tecnologia contribuir para uma nova visão da Europa?” juntou o arquitecto Rem Koolhaas, o curador Hans Ulrich Obrist e a economista Francesca Bria, que entre muitos outros cargos é actualmente Presidente do Fundo Nacional de Inovação Italiano. Bria, que a shifter já deu a conhecer nesta entrevista, é também uma das 18 personalidades ligadas ao design, arquitectura, tecnologia e activismo de todo o mundo convidadas pela Presidente von der Leyen para a Mesa Redonda de Alto Nível para a NBE. Quase todas estas personalidades, incluindo o arquitecto português José Pedro Sousa, participaram do Festival. Bria falou do convite que recebeu da Presidente de Câmara de Barcelona, Ada Colau, para ser comissária de tecnologia e inovação digital da cidade, de forma que ela pudesse explicar a smart city à sua mãe. Contou esse episódio para relembrar que a agenda tecnológica não tem nada a ver com tecnologia mas com pessoas, salientando o valor público dos dados e a presença de hackers cívicos que criaram em Barcelona a plataforma Decidim, usada pela própria Comissão Europeia na discussão sobre o futuro da UE.
Koolhaas mostrou imagens emblemáticas dos signatários do Tratado de Roma de 1957, dos fundadores do movimento artístico pan-europeu CoBrA (Copenhaga, Bruxelas, Amsterdão) em 1959 e também de François Mitterrand e Helmut Kohl que, ao contrário de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, foram (como ele) europeus incuráveis. Mostrou também fotomontagens provocadoras, típicas do seu atelier OMA/AMO, para propostas para um banco de dados europeu, a ser instalado em templos romanos e outros lugares emblemáticos da Europa— elevando a monumentos cívicos as infra-estruturas onde residem e circulam os dados das populações europeias. Falou ainda de um data space partilhado entre Europa e por África, com um discurso ambiguamente especulativo que, como é seu hábito, tem tanto de utopia como de cinismo.
Obrist, no seu registo habitual de name-dropping artístico que não deixa de ser intelectualmente estimulante, falou da sua obsessão por jogos de vídeo e por Édouard Glissant. Evocando o pensamento arquipelágico de Glissant, falou de como a NBE deve inspirar-se no turbilhão de mondialité que ele defendeu, desafiando a utopia atemorizada do Velho Mundo e rejeição da mistura e da creolização dos continentes. A parte mais estimulante da conversa foi quando os três oradores, em conjunto com o moderador Niklas Maak, editor de Cultura e Artes do jornal alemão Frankfurter Allgemeine – falaram dos desafios da Europa num mundo multipolar. Bria falou de laboratórios distribuídos de experimentação, evocando a reterritorialização da tecnologia defendida enquanto projecto político pelo recém-falecido teórico Bernard Stiegler. Defendeu também que o European Chips Act, apresentado por von der Leyen no seu discurso do Estado da União de 2021, tem a capacidade de redesenhar a globalização. A UE, disse Bria, encontra-se hoje a meio caminho entre os dois principais pólos mundiais: os EUA, dominados pelo Big Tech, e a China, dominada pelo Big State. Necessita como tal de afirmar e aprofundar a Big Democracy enquanto modelo de sociedade, sendo que é a partir deste modelo assente em mais e não menos democracia que temos de redesenhar o capitalismo e a globalização. Para tal apontou aos movimentos comunitários que estão na base da NBE como exemplo a seguir.
Na sessão seguinte, intitulada “Olhando para o hardware da Europa: o que é que precisamos no terreno para alcançar os objectivos do NBE, e da soberania tecnológica da Europa?”, Francesca Bria passou de participante a moderadora. Renata Ávila, advogada e activista digital de origem guatemalteca e CEO da Open Knowledge Foundation, fez a seguinte analogia de como a Big Tech está a deixar o mundo: estamos num edifício a cair aos bocados, construído a partir de princípios que já se provou que não funcionam, mas não há saídas e todas as janelas estão fechadas. É preciso por isso reclamar a soberania cidadã da tecnologia e dos dados, encarando a abertura como um princípio de design. Ávila disse também que as soluções para além da tecnologia podem ser encontradas nas comunidades, as quais têm sido muitas vezes negligenciadas. É por isso urgente uma constante vigilância de forma a garantir que as necessidades das comunidades são tidas em conta e essa abertura é consolidada: foi precisamente a falta dessa abertura, afirmou Ávila, que levou à nossa actual crise de desinformação. Só podemos pensar sobre a NBE com pessoas que estejam dispostas a construí-la, através de processos radicalmente abertos. Bria afirmou que só através de uma maior abertura é que as cidades e os estados, que passaram a ser vistas como terminais de multibanco enquanto meros clientes de serviços tecnológicos, podem desafiar essa posição de subserviência às grandes empresas tecnológicas. E apelou à criação de uma constituição para a era digital.
Eddy Hartog, director da Unidade Technologies for Smart Communities da Direcção-Geral da Comissão Europeia para as redes de comunicação, conteúdos e tecnologia (CNECT), questionou se os presidentes de câmara e outros governantes europeus sabem ou se importam com a “saúde de dados” das suas populações. Disse que para tal é fundamental criar, expandir e manter uma infra-estrutura pública digital robusta, mas também revestir os governantes de poder de negociação junto de diferentes agentes de mercado e prestadores de serviços, em várias escalas https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistrativas: das aldeias às cidades, das regiões aos estados. Acrescenta que a criação de Super Apps – sugerindo mesmo uma Super Apps NEB – pode fazer parte desse processo. Michela Magas, Presidente da Industry Commons Foundation (e membro da Mesa Redonda de Alto Nível da NBE), disse que os cidadãos assumem controlo dos seus dados quando lhes são dadas ferramentas para tal. Precisam para isso de ter acesso a essas ferramentas mas também projectar e prototipar, nas várias regiões da UE, mecanismos de regulação, sistemas e acordos que lhes permitam descobrir o poder e agência que já possuem. Usa o piano como metáfora: antes de este existir não havia pianistas e muito menos virtuosos. Temos por isso de descobrir novas virtuosidades para as ferramentas da era em que vivemos. Citando também o conceito de doughnut economics de Kate Raworth, afirmou que ser neutro a nível climático não chega, há que ser clima-positivo. Precisamos de sistemas que façam track & trace dos diferentes ciclos dos materiais mas também de repensar a nível da ontologia e do ecossistema. Mencionou ainda a noção de Dados FAIR – em que FAIR é um acrónimo para dados que obedeçam aos princípios de findability (encontrabilidade), accessibility (acessibilidade), interoperability (interoperabilidade) e reusability (reusabilidade). Acrescentando que não existem data sets sem viés, mencionou o trabalho da activista digital norte-americana Joy Buolamwini, fundadora da Algorithmic Justice League. Disse que temos de ter a coragem de abordar esta questão de forma sistémica, dentro e para além da Europa e do ser humano.
Ávila falou ainda de colonização digital, mencionando que as regras de governança embatem nos muros da “fortaleza Europa”, não permitindo a cidadãos fora da UE copiar, adaptar e acelerar. Disse que temos de mudar radicalmente a forma como as normas globais são feitas, em que os países grandes se comportam como bullies junto de países pequenos – tal como acontece com a mineração, em particular do lítio. Gerfried Stocker, um dos três austríacos – um jornalista, um cientista e um artista – que em 1979 fundaram o Ars Electronica Center em Linz, afirmou que temos de criar novas alianças e de “nos comprometer com um novo compromisso”: trabalhar a nossa capacidade de participação e defender que não podemos ficar reféns da nossa própria bolha. Também não podemos apenas replicar modelos dos EUA e da China, precisamos de reinventar a indústria digital. Para isso precisamos de ouvir o que está a ser feito para além da Europa e defender que o desenvolvimento de um mundo digital não está só nas mãos de engenheiros ou designers: as comunidades desempenham um papel essencial na sua construção e escrutínio. Falou ainda da Festival University da Ars Electronica que pretende ser uma resposta a essa exigência, ao juntar em Linz, durante o Verão, cerca de 200 estudantes de todo o mundo e de todas as áreas com peritos e cientistas para imaginar a transformação digital.
Dia 3: Lições, críticas e prémios
O painel “Podem o design e a co-criação salvar o mundo?” juntou Leyla Acaroglu, designer australiana residente em Portugal, onde fundou a UnSchool of Disruptive Design, com Jamer Hunt, designer e fundador do mestrado em design transdisciplinar da Parsons The New School for Design em Nova Iorque e Ruben Pater, designer e professor no departamento de design gráfico da Real Academia de Artes dos Países Baixos. A conversa, moderada por Luther Quenum, director do Laboratório de Políticas Públicas na Métropole Européenne de Lille, foi uma das mais animadas do festival. Na sua apresentação “7 lições que ainda estou a aprender sobre design e participação” Hunt abordou algumas ideias-chave mas também ameaças aos processos participativos de design, que ele considera essenciais para o que chama de “revolução bottom-up” que está a ocorrer na prática do design. Estas ideias incluem um compromisso com o processo de design, mas sobretudo com a(s) comunidade(s) nele envolvidas, por um mínimo de 3 anos. Menos do que isso será para Hunt irresponsável, arrogante, paternalista e perigoso. Esta chamada de atenção é particularmente relevante para a NBE, sobretudo para os projectos e processos de design que concorrem e são distinguidos com os seus prémios. Afinal, a curta história de design participativo está cheia de projectos bem intencionados e falhados, sendo que é muitas vezes difícil de aferir o seu impacto e consequências. Hunt mencionou que a própria participação enquanto processo tem de ser projectada. E que apesar de toda a gente poder projectar nem toda a gente é designer, ou seja, há um conhecimento específico e uma aprendizagem incorporada nestes profissionais que lhes dão uma autoridade disciplinar distinta. E esta deve ser salvaguardada, independentemente do carácter participativo e aberto do processo de design. Ele dá o exemplo da dança: toda a gente, até ele, sabe dançar, mas nem toda é bailarino profissional.
As três últimas lições são talvez mais críticas e por isso fulcrais: uma diz respeito ao que ele chama de criação de condições para a possibilidade, ou seja, a abertura para a observação, escuta e análise necessárias para entender o processo de design como aberto ao contexto e suas condições. E não, como ele ilustra, seguir o caminho de tantos processos onde o design é visto “como um martelo à procura de um prego.” Hunt chama também a atenção para a participação como apenas a ponta do icebergue para um questionamento sobre as suposições e assunções básicas do que o design é e como tem sido praticado. E, por último, apela que deixemos de contribuir para o “White savior industrial complex”, uma expressão do escritor norte-americano Teju Cole que descreve o conjunto de iniciativas que desde o início do século têm levado designers a trabalhar com comunidades desfavorecidas em locais periféricos e remotos, muitas vezes no mundo em desenvolvimento, com o apoio tanto estatal como corporativo. Apesar de bem-intencionadas, estas iniciativas estão frequentemente imbuídas de um espírito imperialista e assentes em relações de poder profundamente desequilibradas. Para Hunt é fundamental lembrar que a profissão dos designers é trabalhar e co-criar com e não para a comunidade. Só assim os cidadãos que a ela pertencem podem conduzir os seus processos e escrutinar os seus resultados, pelos seus próprios termos e meios.
Ruben Pater falou de uma crise da imaginação que tem feito com que a prática do design seja apenas definida por soluções orientadas pelo mercado. E sobre como tantas vezes essas ditas soluções revelam que o mercado é em si o problema. Mencionou ideias como decrescimento controlado para questionar o consumo e o design centrado numa cultura de abundância e não de escassez. Afirmando que a felicidade pode ser encontrada não no consumo individual mas na vida social e partilhada, disse que o PIB é uma métrica que ignora muito do trabalho desempenhado na sociedade que não cria receita ou procura o lucro, como aquele implicado em cuidar ou educar no seio familiar (independentemente do que consideramos uma família). Disse também que temos de deixar de ter medo da Europa, de que a Europa não é só rica em capital mas também em ideias. No entanto, temos de ter a consciência de que os muros da “Fortaleza Europa” não só deixam as populações de fora como também protegem as patentes europeias – tal como aconteceu com as vacinas durante a pandemia de COVID-19. Para tal precisamos de um governo transnacional que faça frente às multinacionais (pode a UE ser esse governo?). Destaca ainda que um desafio importante da NBE passa por financiar processos de design assentes na participação e co-criação; por serem de longo prazo, estes processos são dispendiosos e necessitam de investimento que não procure o lucro rápido ou se paute por uma agenda de resultados nem de uma métrica de sucesso.
Na sua apresentação, Pater mencionou alguns dos colectivos de design que inclui no seu último livro, CAPS LOCK (Valiz, 2021), no qual explora as ligações entre o design de comunicação e o capitalismo. Como os Brave New Alps, cujo trabalho se foca em fortalecer os laços da comunidade onde vivem no Norte de Itália, em detrimento de grandes projectos com grandes orçamentos. Ele disse que os produtos que nos rodeiam são o resultado de relações e de que temos de quebrar com a ideia de génios do design – e muito menos de génios do design ao serviço do “capitalismo verde” – e repensar a ecologia do processo de design enquanto processo social e não apenas artístico ou autoral. Só assim poderemos fomentar a abertura de espaços intermédios onde possamos criar e implementar as ideias radicais que uma mudança radical tanto necessita como exige. Leyla Acaroglu lembrou a influência da cognição numa classe profissional que ainda é demasiado branca, masculina e europeia, apelando à criação de mais diversidade e equidade no design. Só assim, disse ela, poderemos gerar processos equitativos que desafiem viés cognitivos, de classe e outros. Ao mesmo tempo, esta falta de diversidade, aliada a uma procura por redução de diferença e de standardização, levam ao que chama de monocultura no design que, como outras monoculturas, torna esta actividade mais frágil, pobre e susceptível a ameaças.
Na sua palestra “A revolução da proximidade para uma cidade sustentável, bela e inclusiva”, o urbanista de origem colombiana Carlos Moreno expôs a sua “cidade dos 15 minutos”, que tem estudado na Universidade de Sorbonne e conseguido implementar em várias cidades do mundo, a começar por Paris. A sua contribuição para o festival pretendeu levantar a questão como podemos aproximar os princípios da NBE da vida quotidiana dos cidadãos urbanos. Incluiu, para isso, algumas observações e provocações relevantes, como “a distância é um vício, a densidade é uma virtude” e o aviso de que nas nossas cidades temos aceite o inaceitável — tais como longos tempos de viagem, edifícios mal usados e perda de interações sociais. Para ele, a construção de uma nova urbanidade e narrativa territorial passa por pensar em termos de cronotopia, ou seja, projectar a cidade a partir dos seus (novos) ritmos e das suas múltiplas funções, para promover a topofilia, ou o amor pelo lugar.
A sessão mais memorável do Forum deste Festival foi, sem dúvida, a última. O painel “Pensar para além das fronteiras: Como pode a NBE contribuir para uma transição global justa e equitativa?” juntou Sandrine Dixson, Presidente do Clube de Roma; Neil Khor, Chefe de Gabinete do UN-Habitat, Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos; Sheela Patel, fundadora e Directora da Sociedade para a Promoção de Centros de Recursos de Área (SPARC); Robert Piaskowski, vereador da cultura Cracóvia, e Dominika Lasota, activista do clima e justiça social e coordenadora da Fridays for Future na Polónia. Apesar de participar de forma remota, Lasota conseguiu incendiar o que já prometia ser um dos debates mais instigantes do festival, por incluir participantes não europeus e ambicionar falar do impacto na NBE no “resto do mundo”. Ela afirmou que temos de reconhecer as formas como os políticos do nosso sistema continuam a negar as suas responsabilidades. No seu entendimento, preferem ser cúmplices do estado russo, mas também amigos das empresas ocidentais de combustíveis fósseis, a tomar decisões tão necessárias como urgentes que não comprometam o nosso futuro. Acrescentou que outro mundo é possível mas que este nos tem sido ocultado por representantes desses poderes. E disse que as pessoas na sala, ou seja, no festival, têm a vontade e o poder de fazer alguma coisa mas que qualquer acção relevante só vai acontecer quando a UE disser não ao representantes dos lobbies e de empresas viciadas no lucro. Empresas essas que exigem ainda mais poder, nomeadamente nos novos e controversos projectos aprovados no âmbito do Green Deal Europeu. Lasota conseguiu o feito notável não só de aquecer o debate mas também de obrigar os restantes participantes a posicionarem-se de uma forma mais assertiva. A repórter da Bloomberg Maria Tadeo também contribuiu para que a conversa não arrefecesse.
Sheela Patel agradeceu a contribuição de Lasota e alertou para o risco do conceito da própria NBE poder ser aplicado de uma forma predatória fora da Europa. Patel, que faz também parte da Mesa Redonda de Alto Nível para a NBE, fundou em 1984 na Índia a SPARC, uma ONG que luta pelo reconhecimento do direito à cidade dos habitantes de zonas informais em mais de 30 países. Afirmou que há muito que pessoas como ela “somos tornadas em projectos” por europeus: “é esperado que as nossas vidas, destruídas ao longo de 4 gerações, sejam mudadas em 3 semanas.” Evidenciando que a expectativa da ajuda distorce expectativas, disse que estas pessoas não são vítimas cujos males possam ser tratados com um simples penso-rápido; pelo contrário, representam alguém com quem temos – europeus e não europeus – muito a aprender. Sandrine Dixson, consultora ambiental belga radicada durante muitos anos na Califórnia, disse que o alerta dado sobre os limites do crescimento em 1972 pelo Clube de Roma – organização que preside desde 2018 – não só não perdeu em relevância como ganhou em urgência. Dixson concordou de forma expressiva com Lasota na polémica questão da nova taxonomia para actividades sustentáveis proposta pela Comissão Europeia – e recentemente re-aprovada pelo Parlamento Europeu – que designou o nuclear e o gás natural como energias verdes. E disse que quando participou nesta discussão se posicionou incondicionalmente contra tal taxonomia. Dixson lembrou que a geração de Lasota é a primeira no mundo ocidental a ganhar menos e a viver pior que a dos seus pais; como tal, necessitamos não apenas de mudanças nos nossos estilos de vida mas sobretudo de exigir mais dos nossos políticos, acrescentando: “Temos de lhes dar de novo tomates e, caso elas não os tenham, temos de dizer-lhes para não se comportarem como homens.”
Neil Khor agradeceu a Lasota por ter “acordado” o painel e disse que também ele já foi activista [nomeadamente ao nível da defesa do património da sua cidade natal, Penang (Malásia)] e que também ele já foi o futuro. Mas lembrou também que apenas 10% dos fundos verdes são usados para a adaptação climática e que o orçamento total da ONU é menor que o da Coca-Cola. Robert Piaskowski, o mais jovem do painel a seguir a Lasota, de certa forma rematou uma conversa que mostrou que ainda muito há por fazer mas também que, sem uma maior participação cidadã, pouca margem de manobra existirá até para o tipo de acção e consciência que a NBE pretende fomentar: “Destruímos para construir novos símbolos.”
O Forum terminou com a cerimónia de atribuição dos prémios NBE 2022. Apresentada por Ruth Reichstein, do Conselho Consultivo da Presidente von der Leyen (sua mão direita para a NBE), esta cerimónia foi precedida por uma breve conversa com duas mulheres que segundo ela foram importantes para a reflexão da NBE: a activista grega Alexandra Mitsotaki, presidente e co-fundadora do Fórum Humano Mundial, e a arquitecta dinamarquesa Helle Soholt, co-fundadora e CEO da Gehl, a firma de arquitectos e urbanistas co-fundada por Jan Gehl, urbanista dinamarquês conhecido por desenhar as cidades – de Copenhaga a Nova Iorque – para as pessoas e não para os automóveis. Mitsotaki (que também pertence à Mesa Redonda de Alto Nível para a NBE) afirmou que temos de reconhecer que existe um telhado de vidro que separa os esforços das pessoas que estão no terreno e o poder de quem toma decisões acima desse telhado – tanto no sector político, corporativo ou mesmo das ONGs. Quebrar esse telhado tem de ser uma contribuição fundamental da NBE, a qual tem também o potencial de desafiar a abordagem tecnocrática associada à UE na atribuição de fundos e na resolução de problemas, como aqueles associados à agenda climática, através de uma maior abertura à sociedade. Soholt mencionou a importância do espaço público mas sobretudo de incluir e fomentar a capacidade das populações de tomar decisões sobre como o seu ambiente é projectado. Disse também que precisamos de acção em termos de planeamento e aprendizagem que permitam testar novos comportamentos e criar novas ligações entre todos os agentes envolvidos. Pode parecer conversa mole institucional, mas como Mitsotaki assumiu, ela mesma não acreditaria dois anos antes que estaria a falar, em Bruxelas e enquanto representante de uma organização da sociedade civil, neste evento.
Finalmente, os prémios. A plateia do Forum, que ao longo do festival raramente chegou a estar meio-cheia, encheu-se com os finalistas que vieram de todos os cantos da Europa. As comissárias Elisa Ferreira (Coesão e Reformas) e Mariya Gabriel (Inovação, Investigação, Cultura, Educação e Juventude) revezaram-se na entrega de um total de 10 prémios em 4 categorias diferentes. Estas categorias reflectem os eixos temáticos identificados na fase de co-design da NBE: Reconexão com a natureza; Recuperar um sentido de pertença; Dar prioridade aos lugares e pessoas que mais precisam dela; Moldar um ecossistema industrial circular e apoiar o pensamento do ciclo de vida. Cada uma das categorias tem duas vertentes paralelas: projectos já concluídos (30 000 euros para o vencedor, 20 000 euros para o segundo classificado) e”Novas Estrelas”, ou ideias de jovens talentos com 30 anos ou menos (15 000 euros para o vencedor, 10 000 euros para o segundo classificado). Todos os vencedores receberam também um pacote de comunicação que pretende ajudá-los a melhor divulgar o seu trabalho. Houve ainda dois prémios do público nas duas vertentes, entregues por Xavier Troussard, primeiro director da Unidade da NBE na Comissão Europeia.
Ao longo da cerimónia, que foi longa e surpreendentemente emotiva, vários vencedores enfatizaram nos seus curtos discursos de agradecimento o facto dos seus projectos serem fruto de esforços comunitários. Isso pode ter sido mais óbvio no caso do jardins plantados numa zona abandonada de Nicosia ou da Odyssea Academy, que integra populações vulneráveis num bairro degradado de Atenas. Mas também do projecto Reclaim Žižkov, que pretende reverter a gentrificação deste antigo bairro operário de Praga, ou edifício de co-habitação em Viena Gleis 21, projectado de forma participativa e de construção híbrida em betão e madeira, que inclui um centro comunitário e apartamentos “flexíveis” destinados a ocupações temporárias e solidárias (como de refugiados). O projecto REPLAY, único vencedor português, foi desenvolvido pela Zero Waste Lab (Lisboa) e a Precious Plastic Portugal (Porto). Este esforço colaborativo já recolheu, reparou e reciclou brinquedos usados em 11 cidades portuguesas, promovendo redes municipais de economia circular. Pretende também, como disse a co-fundadora do Zero Waste Lab Ana Salcedo ao aceitar o prémio, continuar a promover esquemas de produção de responsabilidade descentralizada e contribuir para desenhar uma melhor legislação relacionada com o eco-design e toxicidade de plásticos.
Quando a NBE foi anunciada em 2020 suscitou, além de uma atenção disciplinar e um interesse económico, várias críticas dirigidas sobretudo à Comissão Europeia. Estas críticas, como as reunidas numa carta aberta e posterior debate promovido pela Jan Van Eyck Academie de Maastricht, chegaram sobretudo da academia ligada ao design e às artes visuais. Ao associarem – não injustamente – a Bauhaus ao ápice de uma modernidade eurocêntrica e ocidental, bem como de um capitalismo industrial assente numa lógica extractivista colonial, estas críticas sobrestimam contudo o futuro legado da Bauhaus, que entretanto já tem um passado de quase um século. Contudo, estas críticas incorrem na mesma leitura enviesada daqueles que defendem acriticamente a Bauhaus enquanto uma espécie de mito. Elevando os seus professores e alunos a uma espécie de friso de heróis e divulgando, interpretando e vendido o seu trabalho de forma mais ou menos interessada (ou interesseira) como um conjunto de formas facilmente identificável e aplicável às estruturas e coisas com que ainda vivemos: o chamado estilo Bauhaus, que inclui desde telhados planos em betão e paredes de vidro à mobília “de autor”. Este estilo, moderno e universal, tem também sido interpretado criticamente como manifestação autoritária de um continente que há muito impõe ao resto do mundo uma forma certa de projectar, de viver e de fazer história. Em todo o caso, estas leituras que ou idolatram ou arrasam as pessoas que passaram pela Bauhaus têm pouca consideração pelo tempo e contexto em que elas viveram; é precisamente por subestimar o turbulento presente de quem participou desta experiência pedagógica radical – que tanto tem em comum com o nosso – que estas leituras subestimam também o quanto podemos aprender com a Bauhaus se a entendermos não como um mausoléu de modernidade mas como uma das mais cosmopolitas, perigosas e divertidas comunidades académicas já criadas.
O que esta primeira edição do Festival da NBE revelou é que isso é bem possível. Revelou também que mais de um século depois da fundação da “velha” Bauhaus e menos de dois anos depois do lançamento da “nova” Bauhaus, o próprio termo Bauhaus está a ser positivamente reapropriado, resignificado e reimaginado, por um conjunto muito maior e mais diversificado de cidadãos do que aquele que pertence ao sistema de design (ou a qualquer outro). E isso é um óptimo princípio.
Fotografias via The Festival of the New European Bauhaus
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