Em 1967 o pensador francês Guy Debord publicou uma série de 221 pequenas teses intitulada “A Sociedade do Espetáculo”. Quase 60 anos depois, as suas teses parecem ter ganho novo significado à luz de novas construções sociais e tecnológicas em que a vida continua a ser “um imenso acumular de espetáculos”.
“O Espetáculo é uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. Na sociedade do Espetáculo vive-se e interage-se através de dinâmicas de representação e significação utilizando sobretudo a imagem. Como o próprio Debord elabora, “tudo o que foi diretamente vivido torna-se, em última instância, numa representação”. Apesar de Debord se referir à sociedade dos anos 60, é muito fácil identificarmo-nos com o que escreveu em pleno século XXI. Talvez não tenhamos consciência, mas o nosso quotidiano é dominado pela constante exposição e criação de imagens, representações da realidade geralmente confinados a pequenos espetáculos em ecrãs, em forma de posts, tik toks, reels, pins, tweets, memes. Se no tempo de Debord estas representações se impunham, sobretudo, em televisões, rádios e pouco mais, hoje multiplicam-se os pontos de contacto.
A partir do momento em que ligamos o telemóvel — geralmente cedo demais —, expomo-nos sem escapatória a uma abundância de retratos da sociedade partilhados, publicados ou reencaminhados no nosso círculo social online — onde cabe de tudo um pouco. Os ecrãs são janelas com vista para um mundo paralelo à realidade: o da representação.
A economia do espetáculo
O domínio desta encenação não se traduz apenas numa categoria mais distante de ‘sociedade do Espetáculo’, mas numa concreta economia do Espetáculo, condicionante de todas as nossas relações quotidianas. Diversos autores descrevem de forma díspar as relações económicas que hoje dominam o mundo — economia do conhecimento, da informação, da atenção, ou até mesmo da criatividade. Certo é que boa parte da economia atual obedece às dinâmicas de um espetáculo em que somos actores e espectadores, mas de que desconhecemos os bastidores.
Esta reflexão é indissociável do papel transformador da tecnologia e do enquadramento político em que foi desenvolvida a tecnologia que domina o nosso quotidiano hoje em dia. Em 1996 foi publicado o texto “Californian Ideology”, de Richard Barbrook e Andy Cameron, que reflete sobre as implicações das novas tecnologias de informação na sociedade e põe em confronto as hipóteses de uma ágora eletrónica, ideia original de Marshall McLuhan — um espaço virtual de comunicação e expressão livre —, e de um mercado eletrónico — um espaço virtual com potencial para praticar um mercado livre e competitivo.
Em 2022, o resultado deste confronto parece ser um modelo híbrido das duas elaborações. Por um lado, o espaço online, na sua generalidade, tornou-se, de facto, um espaço de partilha (quase) sem limites, mas discretamente condicionado pela recolha e aplicação de data com segundos interesses. Por outro lado, uma falta de incentivos para a criação e produção profissionais de informação é espelhada na economia através de métricas que monopolizam a esfera virtual. O verdadeiro contador do sucesso e critério de mediação passa a ser a monitorização constante de likes, follows, shares… meras ilusões de alcance que alimentam o risco de empobrecer o interesse e a curiosidade no espaço público online.
Autoras como McKenzie Wark sugerem que o modelo económico atual sofreu uma mudança tão drástica, que a melhor forma de o compreender é partindo do princípio que já não é um sistema capitalista. A autora chega mesmo a criticar a anexação perpétua de apêndices à caracterização de capitalismo — fordismo, capitalismo pós-fordista, capitalismo neoliberal, capitalismo de vigilância são alguns exemplos. Para Wark, existe uma nova luta de classes que se sobrepõe ao binómio capitalista contra o proletário, cujos meios de produção disputados não produzem exclusivamente bens de consumo. A nossa economia é uma economia de conhecimento, de informação e, em última instância, de atenção. E com a centralização da economia no domínio cognitivo emergiu uma classe mais poderosa do que a classe capitalista: a classe vetorial — assim apelidada representando os vetores de informação por que se rege o mundo hoje em dia nas suas diversas esferas.
A informação destes vetores é produzida por quem faz uso das plataformas digitais ou de qualquer outro instrumento de informatização, para gerir aspetos do seu quotidiano ou até mesmo do seu trabalho, a quem Wark chama de classe hacker. A infraestrutura que é fornecida pelas grandes plataformas é sustentada pela nossa sociabilidade. Quanto mais coisas se digitalizam, incluindo trabalhos, e quanto mais a nossa socialização se faz por meios digitais, mais nos tornamos hackers e produtores de informação, sem que globalmente tiremos proveito disso.
Bebendo das ideias de Wark, pode dizer-se que se trata de um Espetáculo do qual “as novas forças de produção que emergem no nosso tempo são também forças de reprodução e circulação”, e no qual “temos de nos entreter uns aos outros” – ágora eletrónica – “enquanto os outros colhem a renda” – mercado eletrónico.
Os encenadores do espectáculo
Vivemos num mundo de entretenimento grátis. Pão e circo feitos de .jpegs, .movs, .gifs, .wavs. O Espetáculo é grátis para quem consome, mas tal não significa que não haja rendimento para quem controla o fluxo do entretenimento. Como Nick Couldry aponta, as relações sociais tornaram-se uma parte essencial do sistema económico com a conversão da vida humana em matéria-prima, na forma de data, para originar capital. Esta geração de capital por parte da classe vetorial é alimentada pelas novas dinâmicas sociais e económicas motivadas não pela posse, mas sim pelas aparências, como sugere Debord.
Num sistema capitalista tradicional o poder está no controlo dos meios de produção. No sistema vigente – chamemos-lhe o que quisermos -, o poder não está no controlo dos meios de produção, mas sim no controlo dos vetores de informação, que alimentam uma sociedade de aparências que troca entre si as novas comodidades: informação, imagens e representações do que parece ser e do que desejamos que seja. Uma sociedade que dá primazia às encenações (trends, daily/weekly vlogs, fake news, teorias da conspiração, clickbait, internet drama, cancel culture) e não tanto aos factos ou à relação entre eles. Em várias esferas da vida quotidiana: da cultura à finança.
O entretenimento constante segue uma fórmula de aparências em que mostramos aos outros que pertencemos à realidade social aprovada no meio online, que pertencemos ao Espetáculo. É neste mundo de aparências que a criação de conteúdos somada à criatividade ganha relevo. Todos possuem as ferramentas e as redes necessárias para produzir conteúdos que serão consumidos, na sua grande maioria, de forma gratuita pelos internautas que deambulam pelo infinito espaço online em busca de um escape à realidade offline. Mas nem todos possuem as ferramentas para tirar proveito dessa produção de conteúdos que, recorde-se, é a base de sustentação de gigantes plataformas tecnológicas.
A desintegração do espetáculo
Ao mesmo tempo que a diversidade de conteúdos online constrói o Espetáculo do século XXI, contribui também para a sua desintegração. A busca pelo entretenimento decorre em vários espaços online, sob diversas formas e feitios, quando e onde quer que estejamos. Assim, as infraestruturas que oferecem um lugar na primeira fila tratam também de fragmentar o palco, as luzes, o cenário. O teatro que vive nos nossos ecrãs é construído a régua e esquadro para que possamos assistir a cada vez mais espetáculos: o limite de caracteres num tweet, o limite máximo de tempo numa story, num reels ou num tik tok, ou a não contagem de dislikes num vídeo de YouTube. Quer estejamos à espera do autocarro, do almoço, de uma consulta ou, até mesmo, de ir dormir, temos tempo e recomendações para consumir mais e mais entretenimento. Na senda do pensamento de Wark, o Espetáculo atomiza-se e difunde-se não só pelo corpo social, mas também pela paisagem que o sustenta.
Além disso, a atenção do hacker é igualmente fragmentada em múltiplos pedaços, cada um deles traduzível para informação. As grandes plataformas otimizam, através da desintegração, a economia da atenção em que vivíamos, para a tornar mais rentável. Wark remata esta ideia argumentando que aquilo que eram as indústrias da cultura são agora substituídas por indústrias interesseiras. Em vez de produzirem imagens/conteúdo, tratam apenas dos algoritmos e das bases de dados da informação produzida e partilhada pelos espectadores/utilizadores. Assim, enquanto hackers servimos e somos servidos pelas dinâmicas que a desintegração do Espetáculo oferece. Marcas estabelecidas de bens de consumo, patrocinam marcas pessoais em ascensão, numa relação tão fluída quanto o fluxo de capital entre ambas. A relação entre marca e consumidor já não se faz através de um produto – pela posse –, ou através de uma acção de comunicação, mas sim através de uma encenação, da criação de um determinada imagem enquadrada na lógica do espéctaculo.
Ainda assim, o criativo não é um mero servidor económico para as grandes marcas e/ou plataformas — a ambiguidade desta relação é o que alimenta a sua crença de que pode ser mais do que isso. A evolução das tendências sociais e económicas na web parecem estar a transformar a economia da atenção – #KeepPostingOrTheyForgetYou #HitTheBellForNotifications – numa economia do criador – #LinkInBio #LinkInTheDescription. Originalmente, o hacker criativo aproveitava (e ainda aproveita) os recursos online ao seu dispor para criar e partilhar os seus conteúdos. O objetivo final é construir uma audiência de seguidores e para isso é necessário viver na atenção dos seguidores com múltiplos posts, não interessando se os conteúdos partilhados são de alguma forma privatizados ou regulados pelas plataformas.
Como Clara Bergendoff descreve no seu artigo “From The Attention Economy To The Creator Economy: A Paradigm Shift”, publicado na Forbes, “A Economia da Atenção monetiza uma audiência à qual os criadores se dirigem, enquanto a Economia do Criador transforma essa audiência num ativo real: uma comunidade com a qual os criadores se envolvem.” É deste modo que as tendências atuais da Web2, e ainda de uma futura Web3 descentralizada, se tornam mediáticas ao prometer uma alteração no paradigma do Espetáculo – ou pelo menos da sua aparência.
A ideia subjacente passa pela crença de que é possível criar rendimento a partir do computador, e para isso nada melhor do que escapar ao modelo da economia da atenção e refugiar-se num sistema mais direto ou descentralizado. Ao notar esta tendência por parte dos criadores, plataformas como Tik Tok, Meta e Snapchat já estão a explorar mecanismos de compensação direta aos seus criadores de conteúdo. A economia do criador é vendida como a hipotética a emancipação dos criadores, a sua libertação das correntes das velhas plataformas digitais que dominavam a economia da atenção. Mas será que o sonho traçado para a Web, está de facto a concretizar-se? Com que condições?
O Bug do Espetáculo
Apesar dos esforços para alcançar uma Web completamente livre – neste sentido crítico em que cada um pode tirar os proveitos económicos das suas criações – existe uma falha de raciocínio que nos coloca numa posição delicada. Um erro de cálculo que fez evoluir o sonho da Web2 para uma economia de atenção e desta, por sua vez, para uma economia do criador sem alterar substancialmente as bases das relações. Aliás, como Francesca Bria refere: “A tokenização é a última manifestação do que podemos chamar a superfinanceirização” e “O discurso da Web3 aceita o status quo atual como um dado adquirido e move a discussão para todos os outros aspetos”. As pretensões românticas da década de 90 por uma Web democrática e livre ao serem patrocinadas por Capital de Risco depressa se moldaram a um sistema capitalista em que o dinheiro fala mais alto – em que o mercado livre é o corolário único da liberdade. E em que o quantificável continuou a ser o ditame das relações.
O romantismo deu lugar ao capitalismo e o capitalismo hackeou o Espetáculo — como se vêm em muitas das narrativas em torno da Web 3. Novas tecnologias que sustentam o mercado das criptomoedas e NFT, nomeadamente a blockchain e os smart contracts, com o objetivo de descentralizar o espaço online não são tão por si só tão atrativas quanto a possibilidade que lhes está associada de dinheiro fácil. Assim se explica, por exemplo, o mediatismo de moedas como a Luna, alavancada num sistema que prometia altas taxas de juro para quem investisse, como um activo financeiro comum, mas com uma promessa muito acima das suas possibilidades.
O hacker criativo depressa se torna o criativo hackado. A ideologia californiana, a adoração da pretensa neutralidade da tecnologia e da liberdade da década de 90, resulta numa compatibilidade híbrida em que o hippie quer ser rico e corrompe a sua liberdade social de forma a concretizá-la no mercado eletrónico.
Debaixo da pele de cordeiro esconde-se o lobo e, por isso, a promessa de uma web democrática esconde (e não muito bem) a promessa do dinheiro fácil. Porque no Bug do Espetáculo não há nada mais democrático do que o dinheiro, o criativo hackado passa o tempo a olhar para o seu próprio umbigo, e usa o ecrã que está entre a vista e a barriga como desculpa para falar numa comunidade de criadores, investidores, seguidores e/ou patronos. Uma comunidade que é feita de indivíduos separados pelas suas pretensões e que, ironicamente, facilita cada vez mais a sua separação.
“O que está a ser descentralizado é a habilidade para extrair valor e fazer dinheiro, incentivando a uma financeirização superior dos comportamentos sociais”, diz Francesca Bria.
No Bug do Espetáculo, este não é apenas um teatro a que assistimos pelos nossos ecrãs. É também um mercado de marcas, um banco de crypto e uma galeria de NFT. “Em vez de prever a emancipação da humanidade, esta forma de determinismo tecnológico só pode prever um aprofundamento da segregação social”, dizia a Ideologia Californiana de Richard Barbrook e Andy Cameron ainda nos anos 90.
Em última instância, o Hack do Espetáculo trata-se de uma perda gradual da qualidade do mesmo, de um mundo de influências mobilizado por dois objetivos que, no raciocínio dos criativos hackados, são o mesmo: a atenção e o dinheiro. E por isso, não há maior bug do que a crença na web como um espaço verdadeiramente democrático. Não há maior bug do que a alienação do Espetáculo: “O espéctaculo em desintegração substitui o monólogo de aparências com a aparência de um diálogo”, já dizia McKenzie Wark em “The Spectacle of Distintegration”.