[Este artigo foi publicado na 3ª edição da Revista do Shifter. Podes comprá-la, na sua versão física ou PDF, aqui.]
Será que um avatar ou o teu perfil nas redes sociais pode captar ou resumir tudo o que vales? Não, nunca. Acho melhor começarmos por aqui. A tua representação digital — por muito bom ou mau que sejas na sua gestão — nunca vai captar totalmente a tua existência. Vou fazer desta a minha premissa filosófica para este texto, onde vou tentar explicar porque é que avaliar uma pessoa (neste caso, a ti próprio) pelas redes sociais é um exercício falacioso e destinado a falhar a curto, médio ou longo prazo.
Lembro-me muitas vezes de um meme satírico que dizia qualquer coisa como “E se apagassem o Instagram? / Pooof, acabou-se a tua carreira como modelo.” Apesar de ser um golpe baixo dirigido a tantas modelos que proliferam na rede social outrora orientada para fotografias do Facebook, fez-me pensar no quanto podemos colocar um peso desnecessário nas redes sociais como canal único para criação de uma identidade pessoal. Estamos numa fase da humanidade em que as redes sociais parecem ter ganho vida própria. Uma sessão de notícias no telejornal revela-nos como acontecimentos digitais se tornam importantes na vida real, o ex-Presidente dos Estados Unidos da América mostrou o que é preferir o Twitter para se fazer chegar à população e imensa gente anda lá a perder tempo todos os dias. Ainda assim, não me parece que nada disso justifique que alguém se avalie a si próprio pelo seu sucesso no social-digital.
Aliás, até me parece que isso é bem mais de meio caminho andado para uma sensação de falhanço. Se compararmo-nos a alguém nunca é boa política, compararmo-nos a alguém através das representações digitais de ambos parece um exercício condenado à partida, dado o número de factores em consideração que ignoramos na hipotética análise.
Já todos ouvimos falar de dopamina e de como os likes podem ser uma espécie de moeda digital mas isso não significa que cheguem para sobrevivermos. Quando pensamos na forma como as redes sociais desequilibram a saúde mental, acredito que vale a pena falar dos dados. Um estudo da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) 1 aponta para a depressão entre os que mais tempo passam nas redes sociais, enquanto que uma investigação da The Lancet 2 parece provar que há uma maior queda para a distração entre utilizados assíduos de redes sociais, até em tarefas que estão a saborear. Dito isto, parece haver algo nas redes que por muito que capte o espírito da nossa vida, acaba por nos distrair ou desligar dela.
Com esta enunciação devidamente tratada, gostaria agora de falar de três fenómenos breves, todos eles sentidos na pele por mim, só para esclarecer que ainda não estou louco de todo, apenas preocupado com o impacto das redes sociais no bem-estar dos seus utilizadores, grupo em que me incluo. Procurei isolar situações em que me senti afectado ou em que fui informado pelas redes sociais para uma comparação idiótica entre seres humanos:
Achar que sou mais do que alguém porque sou seguido por x, y, z
Um fenómeno bizarro a que assisti, depois senti na pele e, por fim, me atirou para níveis de cringe tão exagerados que decidi escrever este artigo a explicar o meu ponto de vista. Quando alguém me perguntou se os cartazes do meu livro tinham tido sucesso, a minha resposta foi que o Vhils me tinha começado a seguir por causa deles.
Isto é patético não por ser Vhils, mas sobretudo por estar a legitimar o meu sucesso com o follow de alguém. Este não devia ser um critério, por muita admiração ou popularidade que um determinado seguidor tenha. Ainda assim, tenho ouvido muita gente legitimar os seus próprios perfis porque são seguidos por alguém popular ou talentoso ou digno de atenção. Como se o seguimento de alguém estivesse dependente de um critério objectivo ou expusesse o compromisso daquela pessoa perante outra ou a sua obra, mais do que um simples clicar no botão “seguir”.
Achar que sou mais do que alguém porque tenho mais seguidores
Please, nunca vejas o número de seguidores de alguém como uma base para o seu valor. A sério. Incluindo o teu, claro. Acredito que acreditar nestes indicadores numéricos como uma tradução do valor de alguém, ou de algo, seria altamente enganador e capaz de provocar um mal-estar deveras compreensível.
Nem todos os seres humanos estão igualmente obcecados pelas redes sociais, felizmente! Isto por si só torna este exercício inútil, mas mesmo dentro da guerra que é o social, não sintas que os números traduzem realmente afecto e impacto quando podem ser tão facilmente adulterados.
Para além disso, são só números. Posso garantir-vos que não trazem um nível de felicidade maior a quem os detém (mesmo quando podem ser monetizados, algo que também vai deteriorar ainda mais o conteúdo de quem os detém), não dão para trocar por pontos de combustível, nem para pagar as contas ao final do mês. Espero ter-me feito entender, mas reforço: o número de seguidores de alguém não determina o seu real valor.
Achar que sou mais do que alguém porque tenho muitos mais likes
Mais uma vez, indicadores numéricos não merecem ser observados como concretos quando estamos a falar das redes sociais. Toda a gente está a cinquenta cêntimos de comprar um bot, os likes são dos factores mais facilmente corrompíveis e muitas vezes dos mais incoerentes. E mesmo que não fossem, não deixam de ser uma reação imediata que não comprova o verdadeiro impacto de um conteúdo sobre alguém.
Lembrando Kanye West, que antes dos seus ataques psiquiátricos recentes estava numa luta contra a exposição do número de likes a todos os utilizadores, podemos perceber rapidamente que esta é uma ferramenta que provoca comparações, mal-estar e uma sensação de não sermos tão acarinhados como os outros. Mais uma vez, esta sensação é mentirosa.
No meu caso, fiquei algo em choque quando o instagram deixou de me dizer o número exacto de gostos numa fotografia, mas fiquei ainda mais boquiaberto quando percebi que continuavam a colocá-los em gavetas como “thousands of likes” ou “millions of likes”. Pareceu-me exactamente a mesma coisa.
Para terminar
Numa época em que a saúde mental é uma grande preocupação para todos nós, as redes sociais continuam a ser um factor de mal-estar, que parece exigir a obrigatoriedade da nossa participação e que, em certos círculos sociais, parece exigir que sejam uma continuação conceptual da nossa verdadeira essência. É o momento certo para cortarmos com esse disparate. E não devia ser preciso um documentário da Netflix para isso.
Acredita que a tua bolha será sempre uma bolha, por muito que lutes contra isso. Isto é, se lutares, claro. O que não falta neste mundo é malta que só depois do The Social Dilemma 3 é que se apercebeu que está a alimentar um algoritmo com cada clique. E não te deixes enganar, este algoritmo conhece os teus processos mais tortuosos, com quem é que te comparas, com quem é que te podes vir a comparar, e até como te contrariar quando tentares abandonar o vício.
Se estiveres feliz com o teu impacto, lembra-te do que me disseram uma vez — o teu reach é apenas uma pequena parcela da sociedade em que estás inserido. Até mesmo quando és o Cristiano Ronaldo e tudo o que dizes chega a milhões de pessoas, o valor e a relevância continuam por comprovar. Na verdade, este acaba por ser um argumento que revela o quanto os líderes de opinião não têm necessariamente as opiniões mais polidas para dar. Pela diferença de realidades entre nós, também diz muito sobre o quanto o exercício da comparação parece ser altamente desnecessário.