Internet em tempos de guerra: o fim do mundo hiper-conectado

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Internet em tempos de guerra: o fim do mundo hiper-conectado

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Se a internet foi a responsável pelas grandes transformações das últimas décadas, o seu protagonismo nesta guerra não é menor. A amplitude das consequências, tal como no ordenamento geopolítico, ainda são por agora difíceis de prever, mas os passos dados até aqui mostram como nada é fruto do acaso.

Nota prévia à leitura – este artigo está organizado em cinco capítulos: Uma Breve História da Internet Russa | A Bolha de Influência do Governo de Putin | Vigilância ou Bloqueio | Fora do Controlo Russo | O Perigo da Splinternet

A partir do nosso terminal, o mundo parece-nos inteiramente conectado, e nem sempre é fácil discernir com clareza as infraestruturas dessa ligação. A internet trouxe consigo a promessa de ligar todos os cantos do globo; no entanto, se nos nossos hábitos de navegação pessoal nada nos impede de chegar a lugares recônditos, acabamos por projetar inconscientemente a ideia de que há-de ser sempre assim. De que na internet não há sentidos proibidos, nem obstáculos físicos intransponíveis.

Fora da nossa imaginação ficam os limites impostos ao mundo digital acessível a partir de certas geografias, a vigilância exercida sobre quem navega e, não menos importante, a contraparte material que mantém ligada a internet. A guerra a que assistimos, numa dimensão altamente híbrida, a necessidade de controlo de narrativas e a forma como as sanções se podem vir a aplicar sobre a internet oferecem exemplos que completam o imaginário, ao fazer emergir problemas submersos na banalidade do quotidiano. Sendo a internet um dos grandes vectores de transformações da sociedade nas últimas décadas – bem como um potente meio de mobilização social e de circulação de informação –, olhar para a relação dos Estados com a internet oferece-nos uma perspectiva interessante sobre os seus intentos, não só no que toca à vigilância das suas populações, e das suas comunicações, como no que concerne à possibilidade de uma ligação global e livre.

Tinha passado pouco tempo do início da invasão da Rússia à Ucrânia quando começaram a surgir as primeiras notícias sobre o bloqueio dos principais sites ocidentais em território russo, acompanhadas de outras que davam conta de uma explosão no uso de VPNs e outros serviços que permitam contornar a proibição. Informações que ilustram uma alegada vontade dos internautas russos de se manterem ligados de alguma forma à rede global — e às plataformas na sua maioria norte-americanas —, mas que tem de ser enquadrado com a devida perspectiva. Começando pelo óbvio, lembremos que o alfabeto corrente na Rússia é o cirílico, o que, apesar dos potentes softwares de tradução e transliteração, reserva para a língua muitas idiossincrasias que tornam peculiar a experiência da internet. 

Uma Breve História da Internet Russa

Se pelo Ocidente os serviços digitais norte-americanos são os grandes detentores de quota de mercado e os grandes responsáveis por uma ampla maioria do tráfego online – desde o motor de busca da Google aos serviços sociais da Meta (ex-Facebook) –, na Rússia a distribuição está longe de ser semelhante. Apesar de ser muitas vezes apelidado de “Google russo”, a história de um dos gigantes da internet russa, o Yandex começou cerca de um ano antes do gigante norte-americano. Com cerca de cinco mil sites indexados e 4 GB de texto, o Yandex (acrónimo para Yet Another Indexer) foi o primeiro motor de busca da internet em russo, começando a operar a partir de 1997.

A sua história, do começo até à fundação, acompanhou Putin desde a primeira nomeação para Presidente, em 1999, e reflete de forma particularmente interessante as diferentes posições do poder russo em relação à internet. Depois de anos com baixas receitas e pouco retorno para o investimento, no começo, com a democratização da internet manteve-se a trajectória de consolidação da posição de domínio da Yandex no mercado da pesquisa, e os mais de 50% de quota de pesquisas em língua russa permitiram o crescimento da empresa – que, apesar das comparações com a Google, cresceu até para além desta. 

Com mais de duas dezenas de serviços disponíveis — desde o motor de busca, aplicações de táxi, entrega de comida, serviços de streaming, agregadores de notícias, serviços de alojamento pessoal em cloud, até um browser e um launcher para Android —, o Yandex tornou-se num verdadeiro intermediário central entre os russos e a internet. E um espelho das políticas do estado neste domínio. Inspirados pelos princípios de conexão e liberdade que marcaram o princípio dos tempos, desenvolvida por Arkady Volozh e Ilya Segalovich, o Yandex resulta de um trajecto semelhante àquele que conhecemos dos famosos fundadores das big tech americanas. Com a particularidade de que o algoritmo que desenvolveram era optimizado com base na morfologia das palavras russas e não na sua gramática. 

O Yandex começou por ser desenvolvido como parte da empresa CompTek, vindo mais tarde – em 2000 – a isolar-se como uma empresa privada, tendo como acionistas iniciais a própria CompTek, os programadores responsáveis pelo desenvolvimento e a Ru-Net Holdings – um veículo de investimento fundado por uma série de investidores como o russo-canadiano Leonid Boguslavsky e o americano Michael Calvey, co-fundador de um dos maiores fundos de capital privado a actuar na Rússia, o Baring Vostok. A viragem para o negócio foi uma decisão natural, e depois da optimização do motor de busca, os esforços concentraram-se em desenvolver um sistema integrado de publicidade, o que viria a fazer com que a empresa obtivesse lucros pelas primeira vez em 2002 — o que desecandeara o alargar dos serviços prestados e a expansão geográfica.

O primeiro país a ser servido pelo Yandex e a ter uma representação local da empresa, depois da Rússia, foi mesmo a Ucrânia. Em 2005, a empresa anunciava os primeiros passos fora do solo russo, com a criação de um escritório de representação na cidade de Odessa (o centro de muito do desenvolvimento tecnológico ucraniano) e o lançamento do domínio Yandex.ua. Paralelamente ao alargamento dos serviços e da empresa – que, em 2008, chegou a culminar na criação dos Yandex Labs em Silicon Valley –, o negócio também se expandiu. Primeiro com o registo da empresa no Chipre e mais tarde nos Países Baixos, alavancando uma estratégia de aproveitamento fiscal, mas também criando redes de diversificação do capital. 

Em 2011, a empresa torna-se cotada em bolsa numa das Ofertas Públicas Iniciais mais bem sucedidas até então, mas no prospecto sobre o negócio com a empresa baseada em Moscovo já se lia que “negócios de alto perfil na Rússia, como o nosso, podem ser particularmente afetados por ações politicamente motivadas”.

O aviso era mais do que uma profecia, um eco de tempos recentes. Em 2014, pouco depois da invasão russa da Crimeia – e das revelações de Edward Snowden –, Putin apelidou a internet de ‘criação da CIA’ e, referindo-se diretamente ao Yandex, disse que estavam registados nos Países Baixos não só por questões fiscais mas por outros motivos também. O atrito entre o Kremlin e a empresa começava a ser evidente, especialmente no que toca aos responsáveis da empresa na Ucrânia que viam os dois países em Guerra. Mas não era só o Estado russo que exercia pressão. 

Em 2017, os escritórios do Yandex, já em Kiyv e Odessa, foram rusgados pela polícia local e acusados de recolher informação sobre cidadãos russos para prover aos serviços de informação russos. E mesmo apesar de a empresa negar qualquer implicação no caso, um decreto presidencial ordenou o bloqueio de todos os serviços da empresa russa em solo ucraniano, bem como de outros serviços populares vindos do país vizinho, como o VKontakte ou o Odnoklassniki – as duas redes sociais mais populares na Rússia. Mas esta história não ficou por aqui.

A Bolha de Influência do Governo de Putin

No ano de 2019, foi a vez do Kremlin voltar a falar do Yandex, desta vez para um surpreendente elogio de Putin à empresa e aos projectos desenvolvidos com parceiros estrangeiros. Segundo reportado pela imprensa internacional à data, as declarações do Presidente russo, que fizeram subir as acções da empresa listada na bolsa de Nova Iorque e Moscovo, resultaram de anos de negociações sobre a estrutura de governança da empresa. O Governo russo concordara com a https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração da empresa na criação de uma fundação de forma a permitir a continuação das operações e um olho atento do Kremlin (a quem é reservado o poder de suspender a https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração em caso de risco de segurança nacional).  

Se para uns o acordo pareceu justo, para outros foi o abrir de uma possibilidade que pode ditar um controlo imprevisível pelo poderes incumbentes russos – e a ilustração da mudança de cultura da empresa, eventualmente acelerada pela morte de Ilya Segalovich, um dos co-fundadores da empresa, amplamente elogiado pelos seus standards éticos pelo seu colega Volozh.

Com uma acção dourada (golden share) sobre o Yandex, o Kremlin começava a centralizar as principais plataformas russas junto da sua esfera de influência. Paralelamente, também o VKontakte (ou VK) parecia cada vez mais sobre controlo. Criada em 2006 por Pavel e Nikolai Durov, a rede social viu a sua independência progressivamente atacada.

Depois de, em 2012, Putin ter visto nas rede sociais surgir a teoria de que as eleições teriam sido fraudulentas, o regulador das telecomunicações emitiu uma lista de websites perigosos para as crianças onde constava, entre outros, o VKontakte, dando início às hostilidades. Mais tarde, em 2014, e perante a recusa em apagar conteúdos sobre os protestos Euromaidan, a tensão aumentou ainda mais. Os escritórios do VK acabaram por ser alvo de buscas por partes da polícia russa e Pavel Durov foi acusado de atropelar o pé de um polícia, o que os levou a abandonar o país e vender as suas participações na empresa. 

Quem comprou essas participações foi outra empresa tecnológica na Rússia, a Mail.ru, detida então pelo oligarca Alisher Usmanov que aproximou a https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração da rede social dos interesses do poder vigente. Em 2021, foram dados mais passos na mesma direcção: 45% das acções da holding que controla grande parte das acções de voto no https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração da rede social transitaram para a Sogaz, empresa próxima do conglomerado da empresa estatal Gazprom e com conexões a Putin, e o Gazprombank aumentou a sua participação de 35% para 45% na mesma holding e transferiu-a para a Gazprom-Media, o que levou à demissão do então CEO do VKontakte.

Vigilância ou Bloqueio

Segundo os dados do Statista, o Yandex é o site mais utilizado na Rússia, seguido de Google, YouTube e logo depois do VKontakte, o que mostra como o seu papel é central no tecido social digitalizado da Rússia. Mas também mostra como as plataformas americanas, neste caso, encontraram o seu espaço. No que a mensagens instantâneas diz respeito, o WhatsApp é mesmo a plataforma mais popular entre russos, seguido pelo Telegram. A relação do Estado russo com o Telegram é mais uma especialmente intrigante. 

Fundado pela mesma dupla que fundara o VKontakte mas já com estes a residir fora da Rússia, o Telegram teve um dos seus maiores crescimento de popularidade no momento em que o regulador das comunicações Roskomnadzor propôs bloquear. Em causa, estava a alegação de a aplicação não partilhar as chaves de encriptação com que protegia as conversas. E se a proposta chegou mesmo a avançar, levando ao bloqueio de dezenas de IP, fez com que milhares de pessoas se juntassem ao movimento apelidado por Pavel Durov, a face visível da dupla, de Digital Resistance. É que ao bloquear os IPs associado ao serviço de mensagens Telegram, a Rússia acaba a bloquear o acesso a outros websites. Um caso claro que demonstrou, por um lado, a capacidade de parte da sociedade russa de fugir aos bloqueios, usando VPNs, o que fez aumentar a utilização da app durante a sua suspensão, e, por outro, as contingências infraestruturais de uma tentativa de bloqueio do género.

Na ausência de capacidade de controlo, a vigilância é uma das formas primordias de exercer poder online. A erosão da sensação de privacidade entre os utilizadores é, por si só, um forte dissuasor de comportamentos dissidentes, bem como permite às autoridades identificar quem os pratique. Neste aspecto, o sistema implementado pela Rússia é de elevada sofisticação – tal como noutros países. O Система оперативно-разыскных мероприятий (em inglês, System for Operative Investigative Activities ou SORM), em vigor desde sensivelmente 1995, é sobretudo um princípio tecnológico que permite, numa explicação simples, criar uma janela para que as autoridades vigiem o comportamento de qualquer utilizador online numa determinada plataforma. 

Ao longo de décadas, este sistema de vigilância conheceu diversas formas e foi mesmo objecto de uma decisão judicial importantíssima no espaço europeu. Em 2015, o jornalista Roman Zakharov moveu um processo no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contra operadoras russas, acusando-as de reter os dados e metadados das suas comunicações. E se o caso serviu para fazer jurisprudência para que os países da zona Euro revissem as suas políticas de retenção de dados, no caso russo marcou um capítulo de discórdia e afastamento institucional. Na sequência da decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o Parlamento russo passou uma lei declarando inconstitucionais as deliberações do tribunal europeu contraditórias à Constituição do país e o sistema de vigilância viria a evoluir ainda mais.

Com várias iterações e contextos legais, o SORM atingiu um pico por volta de 2016 com a lei Yarovaya. Esta lei foi aprovada com a justificação do combate ao terrorismo e é a referida provisão que exige que apps como o Telegram a partilhar as suas chaves de encriptação. Mais concretamente, no caso das comunicações digitais, a lei obriga as empresas a conservar todos os registos durante seis meses e os metadados durante três anos, e a prover o acesso livre às autoridades perante requisição e sem necessidade de uma decisão judicial. 

Com um formato descentralizado que obriga operadoras e fornecedores de internet a armazenar os dados dos utilizadores para depois os deixar à disposição das autoridades, o sistema de vigilância russo depende da capacidade das empresas que para operar na Rússia têm de se sujeitar a essas condições. Contudo, não é sem alguma resistência dessas empresas que tudo acontece, até por questões práticas.

Parte do pacote legal Yarovaya, que entrou em vigor em 2018, previa um aumento da capacidade de armazenamento das operadoras de cerca de 15% ao ano, algo que segundo as associações do sector tornava a vigilância altamente dispendiosa, pondo mesmo em causa a capacidade de manter os serviços operacionais. A resposta do Governo russo às reclamações da indústria foi bastante reveladora da visão do modelo. Para atenuar as necessidades das operadoras, em 2021, o Ministro do Desenvolvimento Digital, Telecomunicações e Meios de Massas suspendeu durante um ano a necessidade de aumentar o espaço de armazenamento e de armazenar os dados referentes ao consumo de canais de televisão e estações de rádio públicas, bem como de serviços de streaming.

Por outro lado, também a resposta e a relação das empresas com este aparato é de assinalar. O New York Times publicou logo nos primeiros dias de guerra uma extensa reportagem sobre o envolvimento da finlandesa Nokia no aparelho de vigilância do Estado russo, ao que a empresa respondeu explicando que não colaborara directamente e proativamente nesse domínio e simplesmente se remeteu a cumprir a lei necessária para operar no país.

Fora do Controlo Russo

A mesma Gazprom-Media que detém as acções de voto na https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração do Vkontakte lançou, em Novembro de 2021, oYappy, uma plataforma desenvolvida internamente bastante semelhante ao TikTok e que está em franco crescimento localmente. A história do lançamento desta aplicação, ainda antes de iniciada a guerra, mostra como a Rússia tenta evitar que as plataformas de comunicação lhe escapem do controlo.

A tentativa de criar alternativas às principais plataformas tecnológicas é parte de uma estratégia ambivalente. Por um lado, tal como na questão do software, faz com que infraestruturas com bastante utilização não se tornem vulneráveis, por exemplo, a sanções económicas. Por outro permite tentar manter o controlo sobre a informação que circula no país. 

A importância de tecnologia resiliente a sanções ou a outras movimentações, ficou provada nos primeiros dias da ofensiva russa à Ucrânia. Depois de empresas norte-americanas e europeias começarem a suspender as operações em território russo, o Governo apressou-se a criar linhas de apoio ao desenvolvimento de tecnologia local. Num dos exemplos mais sonantes, a suspensão do Apple Pay valeu mesmo à empresa norte-americana um processo por parte de uma firma de advogados russo que reclama cerca de um milhão de dólares por ‘danos morais’. 

Por outro lado, a primeira acção do regulador das telecomunicações depois do início da guerra foi mesmo solicitar ao TikTok que apagasse conteúdo relacionado com as operações militares. Um alerta que se repetiu nos dias seguintes em direcção à Google e à Meta pela voz do Ministro dos Negócios Estrangeiros, acusando as empresas “sobretudo norte-americanas” de permitirem propaganda anti-russa, e que se viria a consumar umas semanas depois.

Perante a recusa da Meta em apagar conteúdos, ilegais à luz da lei russa, da sua plataforma Facebook, adiando mais uma vez uma discussão há muito premente sobre a moderação de conteúdos na Internet russa, um tribunal declarou a Meta (ex-Facebook) como uma organização extremista na Rússia. Uma decisão motivada pelas circunstâncias actuais e pelo atrito entre a https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração da empresa e o Estado russo que alega há muito a falta de vontade da empresa de cumprir a lei, nomeadamente no que toca à obrigação de representação local. 

Se o Facebook – com alternativa à altura – foi bloqueado, o WhatsApp manteve-se activo, e sobre o Instagram rapidamente se começou a levantar a hipótese de retorno, num reconhecimento da importância relativa de cada uma destas apps. Numa das principais agências de notícias russas, lia-se em tom positivo que depois do bloqueio a população estava a utilizar menos a rede social e a ter mais ‘tempo livre’, mas a reação não parece ter sido assim tão pacífica. Dias depois do começo da guerra e da disrupção no digital, o download e uso de VPNs na Rússia disparou a que o Governo respondeu com um aumento das proibições às empresas provedoras destes serviços. 

No meio de toda esta disrupção, em que sanções impostas pelos Estados Unidos da América e União Europeia fazem empresas descontinuar o seu serviço na Rússia, e o controlo do Governo russo limita o que pode ser acedido na internet, teme-se pelo isolamento em termos informativos da população — algo para que o jornalista do Meduza, Kevin Rothrock, tem chamado à atenção. 

Empresas como a Cloudflare já reiteraram o seu compromisso em fazer os possíveis para manter as ligações entre a Rússia e o resto do mundo activas, mas o potencial do seu alcance é difícil de prever — bem como a resposta que pode estar a ser preparada. Segundo um extenso blogspot feito pela empresa norte-americana, e como acima referido, o Governo russo tem levado a cabo uma estratégia de localização da internet, promovendo até a criação de um sistema de domínios fora do sistema internacional (ICANN) – que poderá, no limite, levar à independência total da internet russa face à rede internacional, um cenário imprevisível, com consequências potencialmente drásticas e que volta às atenções para o papel das plataformas russas. 

Já no início das hostilidades, o ex-director do serviço de notícias do Yandex, Lev Gershenzon, apelava a todos os seus ex-colegas para que se demitissem, acusando-os de ser cúmplices de um crime terrível. Mais recentemente, o co-fundador do Yandex Arkady Volozh foi pessoalmente incluído no pacote de sanções e tornou-se o quarto executivo da empresa a abandonar – depois do CEO da empresa registada nos países baixos e de dois executivos americanos –  e declarou que as sanções eram “mal direcionadas e contra-producentes”, num sinal notório da tensão que domina o complexo tecido digital russo e das muitas pontas soltas com que se procura manter ligado ocidente.

O Perigo da Splinternet

A complexidade das relações que dão lugar à internet tem a mesma dimensão da complexidade das relações institucionais e materiais que permitem que tudo esteja ligado. Apesar das descrições habitualmente etéreas, subjacente ao horizonte praticamente infinito da internet, há uma série de infraestruturas interdependentes que podem agora estar em risco. 

Face ao escalar das tensões, volta a ecoar-se a possibilidade do fim da utopia e do surgimento declarado da ‘splinternet’ – uma rede mais fragmentada entre vários domínios, controlados por blocos políticos e com pouca interação e interoperabilidade. 

E se os ecos apontam sobretudo as críticas às políticas proibicionistas, é preciso observar que tanto podem vir de um lado como de outro. Tanto os bloqueios de acesso a sites estrangeiros como as sanções que impedem empresas de servir internautas em determinadas geografias convergem na mesma direção. E num dos momentos mais alarmantes chegou mesmo a falar-se da possibilidade de entre as sanções se incluir a suspensão do acesso russo ao BGP (Broader Gateway Protocol) – o protocolo conhecido como o ‘inter’ em internet –, que garante a comunicação entre os sistemas autónomos. 

Paralelamente a estes processos correntes, junta-se, claro está, o desenvolvimento de protocolos alternativos que podem aumentar ainda mais a diferença e a distância entre os ciberespaços. Se por um lado, é óbvio que estas tensões põem em causa o sonho débil de uma internet praticamente sem restrições, vale a pena reforçar neste ponto a forma como esta mesma internet se tornou parte central da vida de indivíduos e Estado. Quer para as populações que ficam com menos acesso a informação e a formas de comunicação fora do controlo dos Estados (como acontece na China ou na Coreia do Norte, por exemplo), quer para as infraestruturas em si – uma vez que a splinternet tornaria mais difícil prever e detectar ciberataques –, as consequências serão absolutamente moduladoras.

Se a internet foi a responsável pelas grandes transformações das últimas décadas, o seu protagonismo nesta guerra não é menor. A amplitude das consequências, tal como no ordenamento geopolítico, ainda são por agora difíceis de prever, mas os passos dados até aqui mostram como nada é fruto do acaso. E como a internet é mais do que um parque de diversões e um universo de conhecimento, uma infraestrutura cada vez mais crítica para todas as dimensões da vida de uma sociedade. Qualquer que seja o desfecho da guerra, com certeza que se fará sentir no universo digital.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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