Aviso: Este é um relato pessoal com descrições na primeira pessoa sobre dor e sofrimento físico e mental, se és vulnerável a este tipo de partilha pondera a tua leitura.
O médico Gustavo Carona publicou um texto no jornal Público sobre a sua experiência a viver com uma doença auto-imune que lhe afeta as terminações nervosas. No texto, o Gustavo descreve como foi viver inicialmente com os sintomas, como a situação se agravou e como lhe limitou muito a vida. É um relato impressionante e impactante, cuja leitura te recomendo se queres ter uma ideia do que é viver com dor crónica e não conseguir fazer nada em relação a isso. A minha saga tem vários pontos em comum mas é, na minha opinião, mais brutal que a dele. Ou talvez esteja a ser tendencioso porque está a acontecer comigo. O relato segue abaixo.
A história começa em Julho de 2020. Lembro-me bem desse dia. Estava de folga, acordei pouco antes do meio-dia, levantei-me e fui preparar o almoço; a esposa vinha almoçar às 13h. Depois da refeição, ela saiu para o trabalho e eu, que normalmente lavava a louça e arrumava a cozinha logo a seguir, decidi que ia “lontrar” primeiro um pouco no sofá e ver televisão. Nem meia-hora depois, senti uma dor acutilante na lombar. De início até pensei que fosse um músculo a rasgar. Mudei de posição mas a dor continuou. Levantei-me a custo e fui deitar-me na cama para estar mais confortável. A dor aliviou durante um bocadinho, mas voltou a intensificar-se num piscar de olhos.
No dia seguinte fui trabalhar, com alguns comprimidos no organismo para aliviar a dor. No meu trabalho passamos 8 horas sentados e sem grande possibilidade de estar noutra posição a não ser na hora da refeição ou numa das poucas pausas que nem sempre conseguimos ter. O primeiro dia de trabalho foi um pouco doloroso mas nada de muito limitativo. No dia seguinte estive outra vez de folga, mas as dores continuaram a aumentar. Ao terceiro dia fui novamente trabalhar, novamente com as dores a intensificarem-se. No dia seguinte, pior ainda. E assim continuou até que fui obrigado a ir ao hospital porque já tinha dificuldades em caminhar e dormir, por causa do seu nível crescente.
Na primeira visita ao hospital fizeram-me uma ecografia, porque pensavam que era pedra nos rins, e realizaram uma colheita de sangue para análise. O resultado dos exames não mostrou nada atípico. Uns dias depois acabei por ir novamente ao hospital. Para além da colheita de sangue da praxe (desde que isto começou, já me tiraram sangue suficiente para cozinhar umas quantas cabidelas), fizeram-me uma ecografia e um Raio-X. Yet again, nada nos exames. Desta vez, no entanto, o médico disse-me que deveria falar com a médica de família e pedir-lhe para me passar uma credencial para uma tomografia (TAC) e outra para uma consulta de reumatologia. Assim o fiz.
Neste período, fui medicado com dois opióides (tramal 150mg e palexia 100mg), um anti-inflamatório, um relaxante muscular e algo idêntico ao Ben-U-Ron mas ligeiramente mais forte. Este cocktail de comprimidos só ajudou a fazer do meu fígado foie gras mas não me tirou as dores. True story [gif do Barney Stinson a levantar o copo].
Uma semana e pouco depois, fiz a tomografia. A consulta de reumatologia veio quase dois meses depois, o que foi uma surpresa porque sinceramente só contava com ela daí a pelo menos 6 meses por força de todos os atrasos que a Covid-19 causou na altura. Na consulta, mostrei a tomografia ao reumatologista, que me disse que o que aparece não é significativo para a sintomatologia que apresento. De seguida, tocou em vários pontos do meu corpo e, de acordo com o relatório que ele escreveu, apresentei dor em 15 dos 18 pontos, tenho fibromialgia. É assim que ainda se faz o diagnóstico desta síndrome.
O que é fibromialgia? É uma síndrome, considerada de foro reumatológico (apesar de haver médicos que consideram que seria melhor classificada como neurológica), que causa dores musculares, rigidez, astenia, fadiga, entre muitos outros sintomas – e impactos, como no sono. A versão lusófona da Wikipédia tem uma explicação bastante boa desta doença, caso queiras um bom ponto de partida para saber o inferno que isto é.
Antes de sair do consultório – com alta dada pelo médico e uma palmadinha figurativa na costas, como quem diz “desenrasca-te, que já não é nada comigo” – foi-me recomendado exercício leve a moderado e coisas quentes, como botijas de água quente, na região que apresenta dor. Tentei fazer exercício leve mas não consegui aguentar as dores e tive de desistir da ideia. Já as botijas de água quente têm ajudado, ainda que apenas momentaneamente e o alívio seja pouco; deito-me com elas, acordo durante a noite com elas e passo o dia com elas; até faço queimaduras com elas, porque a única forma de me darem algum alívio é quando as coloco diretas na pele ou, no máximo, por cima de uma t-shirt.
Por esta altura, estava de baixa médica porque não conseguia trabalhar. Na maioria dos dias nem dormir conseguia, tal era (e é) a intensidade da dor.
O meu nível de dor continuou a aumentar e, por isso, acabei por ser forçado a pedir uma credencial para as consultas de dor à minha médica de família. Honestamente, já não me recordo quanto tempo passou desde a emissão da credencial até à consulta. Recordo-me bem, contudo, do desenvolvimento a passo de caracol que estas consultas têm, da medicação fraca demais que me receitaram, e do sofrimento que é enquanto aguardo para ser atendido – num local onde são feitas consultas de dor, as cadeiras são demasiado rijas e brutalmente desconfortáveis para quem sofre de dor crónica.
Em Dezembro, depois de começar a tomar canabidiol, consegui voltar ao trabalho. O canabidiol é conhecido por aumentar a resistência do organismo à dor e, dessa vez, teve o efeito pretendido. É verdade que continuei com dores, mas finalmente conseguia fazer a minha vida quase como fazia dantes e, como passei a part-time para conseguir gerir melhor as dores, conseguia trabalhar. Continuei a tomá-lo até que, em Março de 2021, fui obrigado a ficar de baixa novamente; agora, o canabidiol já não tinha qualquer efeito na diminuição do meu nível de dor. Voltei a dar-lhe nova oportunidade em Fevereiro mas, tal como aconteceu antes de ficar novamente de baixa médica, voltou a não ter impacto. Estou de baixa há um ano.
Por ter passado a part-time, não chego a receber €250 mensais da baixa médica. Este valor praticamente não dá para a medicação que tomo – que não é só para a fibromialgia, mas também para outras maleitas crónicas de que sofro – e para a consulta de reumatologia que tenho uma vez por mês. Agora, a Segurança Social quer parar o pagamento da baixa médica (mais detalhes abaixo), o que significa que vou deixar de poder ir às consultas e comprar a medicação, deixando-me numa situação ainda mais complicada e vulnerável que aquela em que me encontro neste momento.
Desde que as dores começaram, o meu sono nunca mais foi o mesmo. Já tive semanas em que, no total dos sete dias, dormi pouco mais do que deveria dormir num só dia. Foram muitos meses assim, em que só consegui dormir quando a exaustão era grande demais e apagava durante poucas horas. Ainda hoje o normal é ter, em média, dois dias por semana em que não consigo dormir devido à intensidade das dores. A intensidade da dor é agora, curiosamente, maior do que era, mas o organismo acabou por conseguir adaptar-se e, apesar de normalmente demorar seis horas, lá acabo por conseguir adormecer. Infelizmente, continuo a ter dias em que nem essa adaptação me vale.
O sono está muito longe de ser o único problema. Algo tão simples como sentar-me à mesa durante as refeições é um tormento. Na verdade, sentar-me, seja de que forma for, ou até estar de pé, é um tormento. Passo os meus dias deitado porque é a única posição que normalmente não me deixa ainda pior. Sinto-me sempre física e psicologicamente exausto, e com um nevoeiro mental denso constante. Tenho dias em que nem consigo abrir uma garrafa de gasosa porque estou com dores absurdas até nos dedos.
Apetece-me berrar até ficar sem cordas vocais.
Já tive três reumatologistas diferentes a dar o mesmo diagnóstico: fibromialgia. O primeiro foi o de reumatologia do Serviço Nacional de Saúde, o mesmo que me disse que era fibromialgia e me deu alta, sem dar algum tipo de acompanhamento ou encaminhamento. O segundo foi no privado, que descreveu as minhas dores como violentas e, umas consultas depois, insinuou que a terapia não estava a ter efeito por minha culpa. O terceiro é o reumatologista com quem tenho consultas atualmente, na Covilhã, onde faço sessões de estimulação magnética transcraniana de baixa intensidade, uma vez por mês, desde Dezembro de 2021. Esta terapia tem sido a única que me permite ter algum alívio durante uns (poucos) dias e é por isso que faço, mensalmente, 200 quilómetros muito penosos para a Covilhã e outros 200 quilómetros para voltar a casa.
Apesar de tudo, tentei e tento, dentro do possível, manter sempre uma postura positiva e nunca baixar os braços. Até quando começo a não ver solução e me apetece pôr cobro à vida porque viver assim não é viver. Já houve um dia em que tentei subir o parapeito da varanda, por sorte lembrei-me de quem me é próximo e não me virou as costas, e desisti da ideia. Espero ter a mesma sorte da próxima vez (não é uma questão de “se”, mas de “quando”. a dor crónica desgasta a mente de uma forma atroz). Até quando algumas pessoas me viraram as costas; outras me dizem que estou a fingir; outras me dizem que as dores não são assim tão intensas; outras me sugerem as coisas mais imbecis que se podem imaginar (sim, claro, yoga ou pensar positivo vai mesmo resolver isto…). Até quando vejo alguns objetivos de vida tornarem-se impossíveis de realizar. Até mesmo quando a Segurança Social diz que vai deixar de me pagar a baixa médica, como fez em Fevereiro, e que devo fazer o pedido para a reforma, porque sabem bem que não atribuem reforma a quem é diagnosticado com fibromialgia, mesmo que essa síndrome torne coisas tão básicas como cozinhar numa tarefa hercúlea, como acontece no meu caso. Não sou só eu que digo isto: a Associação Nacional Contra a Fibromialgia e Síndrome de Fadiga Crónica disse-me exatamente isto por email, quando lhes expus a situação. Aliás, esta associação até tem isso escrito no site.
Alguns destes doentes podem necessitar de períodos de baixa médica prolongada para melhorar a sua condição de saúde. Por vezes esta baixa médica prolonga-se além do limite máximo estabelecido, o que leva a que estas pessoas fiquem com baixa não renumerada, o que os deixa mais vulneráveis. Em alguns casos, estes doentes são encaminhados para a reforma antecipada, o que se tem manifestado como um processo muito difícil e tem criado um vazio legal no apoio a estes doentes. – myos.pt
Por falar em Segurança Social, desde que começou a minha “aventura épica” – como me refiro, em jeito de brincadeira, à minha vida pós-fibromialgia, para não me enervar tanto com a vida que tenho desde então – já conto com umas histórias caricatas com juntas médicas. Em Dezembro do ano passado (2021), por exemplo, quando ia a sair de mais uma junta médica, um dos alegados médicos disse-me que a continuação do pagamento da baixa era «um presente de Natal». Senti-me completamente humilhado. Antes disso, tive outro que desatou aos berros comigo, qual besta, porque ousei responder à questão que o colega dele me fez. Entretanto, já vi pessoas a entrar nas salas onde realizam juntas médicas, com sacos na mão, e a sair de lá sem eles. Talvez tenha sido a a perda de memória a atacar e foi por isso que saíram sem eles, não é…?
Talvez esteja na altura da Segurança Social colocar médicos a sério nas juntas médicas, porque vários dos que tenho apanhado não parecem ter conhecimentos médicos. Alguns, inclusive, ignoram os relatórios que levo e/ou tratam-me mal. Poderia sempre apresentar queixa, mas tenho muito receio de retaliações por parte dos visados e dos colegas deles. O corporativismo tem destas coisas e nem eles nem ninguém são imunes.
Apetece-me viver mas não assim. Apetece-me berrar até ficar sem cordas vocais.
Se quiseres acompanhar a minha saga com a fibromialgia, tenho um blog onde escrevo, enquanto não voltar a ser pó de estrelas, em inglês, sobre o inferno que estou a viver, assim tenha energia física e mental para o fazer.