Para Abril Xavier, sair de casa não é um ato comum. Ela maquilha-se atentamente em frente ao espelho, veste-se com as suas roupas mais escuras, coloca a peruca preta e abre a porta da frente com as suas longas unhas de gel. Por ser uma artista trans em Portugal, Xavier encara diariamente o limiar entre a sua invisibilidade e os muitos olhos que se prendem no seu corpo assim que pisa o chão fora de casa. Ela anda pelas ruas da zona onde mora e já virou personagem conhecida – o que nem sempre é positivo.
Xavier passou a enxergar a sua própria existência como uma produção artística e usa a sua imagem como uma maneira de reivindicar espaço. “Estou numa fase de encarar a minha persona social e a minha performance com o público lá fora como o meu trabalho. Gosto de pensar que isso acaba tendo consequências reais (e espero que positivas) na sociedade. Sair de casa é uma coisa bem simples para as pessoas, mas para mim, é exatamente o mesmo processo de criar uma obra. Há uma metodologia a ser aplicada, em que penso no que cada detalhe do meu visual pode significar”, diz a artista.
Nascida numa pequena aldeia de Famalicão, Xavier mudou-se para o Porto para estudar e decidiu permanecer na cidade para passar por sua transição num lugar em que se sentisse um pouco mais segura. Mas morar numa cidade grande tem um alto custo, e agora, apesar de formada em arte multimédia pela Universidade do Porto e de contar com diversos trabalhos produzidos, a artista precisa de manter um emprego fixo das 9h às 18h, deixando a expressão artística em segundo plano.
Se conseguir se sustentar como artista em Portugal já é bastante difícil, sendo uma pessoa trans, a situação fica ainda mais complicada. Frente à falta de oportunidades e financiamento, artistas como Xavier precisam de buscar trabalhos noutras áreas para poderem pagar a renda no final do mês. Ainda assim, numa rotina apertada, o fazer artístico não deixa de se exprimir, e arranjar-se para sair de casa passou a ser o maior projeto de Xavier. Um projeto que acaba por ser muito político, como é a maioria da sua produção, reclamando o espaço para pessoas trans em lugares que talvez não lhes seriam tão disponíveis – mesmo que façam parte do seu quotidiano.
Portugal e o preconceito silencioso
De acordo com uma classificação feita pela ILGA Europa, Portugal é o sétimo melhor país do continente para as pessoas LGBTQI+. O ranking compara 49 países europeus e leva em consideração leis e políticas públicas adotadas em cada um deles, analisando a realidade dessas pessoas de maneira geral. No entanto, cada letra da sigla LGBTQI+ acaba por ter pesos desiguais, e as políticas públicas nem sempre abrangem todas as necessidades. Em Portugal, o movimento a favor dos direitos de pessoas trans anda a passos lentos e, apesar da Lei da Autodeterminação de 2018, essa é uma comunidade que ainda luta pela despatologização da sua identidade de género.
É verdade que casos de violência física contra pessoas trans não são muito comuns em Portugal. No entanto, quando acontecem, percebe-se logo uma agressão que é específica. Exemplo disso é o caso da brasileira Gisberta Salce, que foi brutalmente assassinada em 2006, na cidade do Porto. Após dias de abuso e tortura por parte de um grupo de adolescentes, ela foi jogada num poço para morrer. “Não é só matar, vai além disso. Tem a morte de uma identidade, um desfazimento de um corpo. É uma mama arrancada, um cabelo arrancado, um estupro”, diz Hilda de Paulo, transfeminista decolonial brasileira que vive cá há mais de 10 anos.
Na rotina, entretanto, o preconceito aparece de outras maneiras. Portugal é um país silencioso, e as agressões acontecem na piada, nos olhares de lado, nos estereótipos e na falta de oportunidades. Dani Bento, representante do GRIT (Grupo de Reflexão e Intervenção Trans) da ILGA Portugal, diz que cá a violência é mascarada, encapsulada no que chama de “microagressões”. Mas, ao contrário do que pode parecer, o impacto nas vítimas ainda é tão grande que, para si, “na verdade, até podemos deixar de falar em ‘micro’ e realmente podemos falar em agressões, porque esses atos vão contra a integridade individual de cada pessoa. E, nesse sentido, a violência é normalizada”, complementa.
Uma das manifestações dessa violência subtil é a ausência de representatividade trans em lugares de destaque em Portugal. Liliana Rodrigues, aponta que, quando se trata de pessoas trans, Portugal ainda não tem muitos nomes a que se dá visibilidade. Na Academia, por exemplo, não há um professor ou professora que seja trans, e na política, o único nome que surge é o da Júlia Mendes Pereira. “Não há dúvida alguma de que as pessoas trans não estão representadas em determinados espaços. Há uma sub-representatividade dessas pessoas, seja no contexto das artes, como na Academia, na universidade, na ciência, e em tudo o que implica lugar de intelectualidade. Isso acarreta, nomeadamente, uma certa invisibilidade, porque as pessoas não têm acesso a um conjunto de situações”, diz a psicóloga e investigadora integrada da Universidade do Porto.
Sacha Montfort, representante da TransMissão: Associação Trans e Não-Binária, também fala a respeito desse esvaziamento intelectual da comunidade. “Põem-nos num lugar muito pequeno. Tal como não pode existir uma pessoa negra intelectual, também não pode existir uma pessoa trans intelectual. Para eles, estamos ao lado dos animais, dos bichos, e dos objetos. Não é suposto sermos corpos com agência e discurso, isso não é esperado de nós”, diz.
Ao silenciar a voz de pessoas trans, Portugal mantém uma lente normativa que dá base à chamada transfobia estrutural, um preconceito já tão enraizado na cultura, que, ao ser manifestado, muitas vezes passa desapercebido. Essa normatividade é definida por Liliana Rodrigues como um imaginário coletivo capaz de diminuir tudo aquilo que fuja do que é conhecido como norma – no caso, as vertentes cis, hétero, branco e cristão. “É preciso limpar as lentes para começarmos a enxergar existências que já existem, mas que seguem sendo apagadas”, diz a investigadora.
Diante dessa realidade, Sacha aponta que a grande violência contra pessoas trans em Portugal é o isolamento. “Aqui sofremos mais de invisibilidade e de solidão”, diz ela. É por isso que uma das principais frentes de luta da TransMissão passa por fortalecer o senso de comunidade entre pessoas trans e não-binárias. Segundo Sacha, através desse trabalho, percebe-se também quão diversa é a comunidade e como isso é raramente contemplado quando se fala de representatividade. “É problemático querermos ver uma narrativa refletida em todas as pessoas trans, porque somos diferentes e temos formas diferentes de lidar com as situações”, diz ela.
A arte como lugar de inclusão?
O mundo das artes é conhecido por quebrar padrões e questionar o status quo. Se Portugal falha em representatividade de pessoas trans em todos os domínios, no meio artístico parece surgir uma brecha. Uma brecha aberta a muito custo, e ainda fina, estreita e incapaz de atingir os palcos mainstream, que em Portugal normalmente giram em volta de uma elite pequena e fechada. Ainda assim: uma brecha.
No segundo semestre de 2021, a residência artística No Entulho , organizada pela ArtWorks, juntou-se com a Pedreira, no Porto, para criar uma chamada voltada somente para artistas trans. A iniciativa foi inédita em Portugal, e resultou não só numa apresentação artística, mas também num debate entre o artista selecionado, Tiago Aires Lêdo, e Hilda de Paulo, curadora e artista que o deu suporte durante o processo.
Segundo a pesquisadora Liliana Rodrigues, essas medidas equivalem-se muito com as quotas, que ela define como uma medida de discriminação positiva, visto que possibilitam oportunidades para certas pessoas acederem a determinados lugares que normalmente lhe seriam privados. Mas o trabalho de inclusão não pode parar por aí. “A questão das quotas não é um fim em si mesmo, é um meio para atingir um fim, ou seja, uma medida que deve ser usada como meio-termo para depois chegar a uma justiça efetiva”, diz a pesquisadora.
As políticas de integração são necessárias para que todas as pessoas possam fazer escolhas conscientes do lugar onde querem estar, sem terem que se limitar ao que lhes é seguro ou acolhedor. Em Portugal, ainda há muito a caminhar quando falamos de integração de pessoas trans. “Se essas pessoas não existem nesses espaços, isso não é por acaso. Quando nós pensamos nas artes, pensamos numa reprodução da sociedade e, apesar de esse ser um espaço mais aberto em relação a outros domínios, ele também reproduz a sociedade na lógica dos seus preconceitos estruturais”, aponta Liliana.
Conscientes da necessidade de ir além da ideia da cota, a Pedreira tomou um cuidado especial durante a chamada da residência No Entulho. Para auxiliar na seleção, chamaram a artista trans Odete, com quem já haviam trabalhado anteriormente. Segundo Marina Rei, uma das representantes da Pedreira, é importante que essa integração aconteça de uma maneira a não objetificar esses artistas. Por isso decidiram incluir pessoas trans também no processo da residência, seja de seleção, seja no acompanhamento, como foi feito pela Hilda.
Iniciativas como essa são essenciais e dão espaço para artistas trans poderem se expressar em lugares que talvez antes não seriam acolhedores para eles. No entanto, essas são o que Liliana Rodrigues chama de “ações de autoria”, em que uma determinada pessoa ou instituição faz um trabalho de integração pontual. “Esse tipo de ação é muito importante para a comunidade LGBT, mas é muito pouco estratégica. É preciso haver ações mais massificadas, trata-se uma questão de compromisso com as estruturas e com o facto de essas pessoas também terem esses direitos”. Para que a inclusão seja feita de maneira efetiva, é preciso que as instituições estejam verdadeiramente comprometidas com a diversidade e que tenham consciência de quão estreito é o alcance de uma quota. É necessário abranger o interesse com o diferente e a possibilidade de criar oportunidades de trabalho que sejam sensíveis à inclusão, sem que estereótipos sejam reafirmados.
Tiago Aires Lêdo, artista selecionado para a residência No Entulho, comentou ao Shifter que a experiência foi muito positiva e que se sentiu bem acolhido durante todo o processo. Segundo ele, a oportunidade faz toda a diferença na carreira de um artista, por isso acredita que devem existir mais iniciativas como esta. “É preciso reconhecer que existem pessoas que estão a ser excluídas dos processos centrais, de poder falar sobre a cultura a que pertencem e sobre a sua realidade. Iniciativas que se equivalem às cotas são uma maneira de tentar recuperar um bocadinho os lugares que estão sempre a ser retirados dessas pessoas”, diz.
No entanto, o artista aponta a importância de a inclusão acontecer de maneira a abraçar profundamente essas vivências, recusando o normativo e reconhecendo a existência de outras maneiras de se expressar. “Não podemos estar sempre num jogo de assimilação. É por isso que eu falo muito dessa coisa de reclamar espaço, porque não me interessa de todo ter o mesmo espaço de uma cultura cis-hétero-branca, etc. Interessa-me é que eles percebam que têm de se chegar um bocadinho atrás para eu poder caber. Não sou eu que tenho que me integrar no mesmo espaço que eles, o que eu quero é que, tanto eu, quanto todas as marginalidades que existem, tenham direito ao seu próprio espaço. Porque eu sei que não vou pertencer, e eu estou ok com a ideia de não pertencer, eles é que também precisam estar ok com o meu não pertencimento”.
Para Sacha, da TransMissão, haver esse espaço próprio para que artistas se possam expressar de maneira livre é primordial. É por isso que a associação organiza eventos esporádicos com a presença de diversos artistas trans, dando-lhes a oportunidade de mostrar o seu trabalho e a sua expressão, o que também acaba por possibilitar à comunidade uma maior identificação com o fazer artístico. “Nós precisamos da cultura, precisamos de nos sentir representados. Estamos sempre a ouvir músicas heteronormativas e a tentar identificar-nos lá. Também é bom termos os nossos próprios artistas, que vão falar das nossas vivências com uma sensibilidade mais parecida”.
Ao criar esse senso de comunidade e identificação, as pessoas se sentem mais abrigadas e menos sós. “A falta de identificação tem um impacto imenso na autoestima, porque a arte mainstream reforça muitas vezes os papéis masculinos e femininos, glorificando corpos e padrões de beleza que estão muito distantes dos nossos. A cada interação, reitera que somos diferentes, que somos anormais e que não existimos. Isso é muito violento”, diz Sacha. Por ser também um meio de bastante visibilidade, Dani Bento, do GRIT, reforça a relevância de encontrar pessoas trans no âmbito das artes, exprimindo as suas próprias sensibilidades. “É muito importante do ponto de vista do sentimento de pertença. Ver que aquela pessoa que está ali é uma pessoa trans, como eu, representa muito na nossa vida. É um salto enorme no sentido comunitário”, comenta.
Contudo, essa liberdade de expressão também deve abranger aqueles que não querem falar da sua identidade de género. Segundo Dani Bento, é muito comum que pessoas trans sejam vistas e entendidas unicamente a partir desse prisma. “Uma pessoa trans deixa de ser alguém que tem várias identidades e vários gostos, e passa a ser uma pessoa política. Por ser trans, a vida dela é altamente politizada, ela faz resistência política todos os dias, só por existir, e ainda está sempre a ser definida por isso. Esquecem-se de que há toda uma outra dimensão que a pessoa tem”.
Segundo a artista Xavier, essa cobrança em se falar de temáticas trans acontece principalmente quando a presença da quota surge como uma espécie de estratégia de marketing, objetificando corpos e existências trans de maneira disfarçada. “Enquanto nós estivermos lá só para preenchermos quota, não vai haver espaço para falarmos de outras questões. Quando houver uma normalização do que é ser uma pessoa trans, quando estiver na memória coletiva de que pessoas trans são pessoas normais e que a única ocupação delas não é ser trans, só aí é que vai haver espaço para falarmos do que quisermos”, complementa ela.
O hoje é produto do ontem
Se hoje existe uma brecha de inclusão, é fruto do trabalho de personalidades que lutaram pelas vidas trans em Portugal. A artista e curadora brasileira, Hilda de Paulo , tem-se empenhado nessa questão. Nos últimos anos, Hilda criou o projeto Arquivo Gis , em que documenta o seu trabalho de pesquisa das chamadas transcestralidades de Portugal, isto é, aqueles que lutaram pelos direitos de pessoas trans e não binárias cá em Portugal. Levando o nome de Gisberta, o intuito do Arquivo Gis é relembrar essas pessoas e reafirmar a história que fizeram. “Comecei a organizar esse projeto por sentir falta de conhecer as representações das pessoas trans e travestis de Portugal”, diz a artista e curadora. Reunindo matérias de jornal, entrevistas de televisão e livros biográficos e autobiográficos, Hilda visa traçar uma evolução do que é e foi a existência trans em Portugal.
“A gente tem que pensar que as pessoas de ontem é que abriram caminho para as que estão aqui hoje, e as que estão aqui vão abrir caminho para as que vão ir amanhã”, diz ela. Através dessa pesquisa, Hilda resgata nomes importantes da comunidade trans em busca de reconstruir a narrativa histórica, que até então reflete uma transfobia estrutural. “Se pensarmos na palavra ‘ancestralidade’, a gente vai pensar em algo que se refere aos antepassados, ao que se recebeu das gerações anteriores. É mais nesse sentido: o que essas gerações anteriores fizeram? A gente tem que fazer esse levantamento, porque se formos pensar na história e nos livros de história que vemos nas livrarias, não vamos encontrar essas informações”, diz ela.
Reclamar a existência histórica dessas pessoas é uma maneira de lutar contra a invisibilidade e, ao mesmo tempo, dar a sensação de pertença às pessoas trans. A fim de amplificar e dar mais corpo a essa pesquisa, Hilda estreia dia 31 de março no espaço cultural mala voadora, no Porto, a palestra-performance “O que vem depois da esperança?”. O espetáculo, com produção do Teatro Universitário do Porto, direção artística de Hilda de Paulo e dramaturgia de Ave Terrena, conta com uma equipa quase completamente trans e é atravessado pelo conteúdo coletado no Arquivo Gis. Segundo Hilda, o intuito é dar visibilidade, empoderamento, representatividade e sentimento de pertença à comunidade trans em Portugal, refletindo criticamente sobre como esses corpos foram construídos e representados mediaticamente através do tempo no imaginário português.
Além do espetáculo, Hilda de Paulo está a organizar o livro também intitulado “O que vem depois da Esperança?”, que será publicado neste ano pela Editora Urutau , em parceria com o Teatro Universitário do Porto. O livro também tem como base o conteúdo de pesquisa feito pelo Arquivo Gis e será uma antologia de textos teóricos, críticos e documentais a respeito da vivência e produção artística de pessoas trans em Portugal.
Arte é o que ainda está por vir
Pequenos focos de discussão e iniciativas inclusivas com certeza têm um impacto no panorama geral do país. No entanto, esse é ainda um movimento bastante lento e o caminho para uma mudança efetiva é mais extenso do que se pensa. Adicionar nomes de pessoas trans em programas de arte está longe de ser o suficiente, é preciso criar um debate e normalizar a existência dessas pessoas. Não só nas artes, mas em todos os lugares. Como aponta Liliana Rodrigues, a mudança tem de ser coletiva e interseccional, agregando todas as lutas e todos os espaços, criando uma sociedade mais acolhedora de maneira geral.
A arte, como diz o artista Tiago Aires Lêdo, tem qualquer coisa de premonitória, aponta a direção para onde a sociedade caminha. E o ideal é que essa direção nos leve a um lugar de cada vez mais inclusão. Iniciativas como a da Pedreira são apenas um primeiro passo para incorporar múltiplas vozes na criação desse futuro. “Era ótimo que não estivéssemos a fazer calls para grupos específicos, mas infelizmente ainda não estamos aí. Sabemos que não existe uma mudança séria a ser feita, por isso a nossa preocupação em criar esse espaço de diálogo e de abertura”, diz Marina Rei, representante da Pedreira.
O apoio de aliados de fora da comunidade é primordial para uma transformação verdadeira, mas é preciso chegarmos a um momento em que essas relações deixem de ser verticais e que a presença de artistas minoritários não seja baseada num espaço que lhes foi cedido. De acordo com Xavier, se quisermos chegar nesse lugar, ainda há muito a ser feito. “Para haver uma mudança real, as pessoas trans precisam estar incluídas em todos os patamares do que envolve criar esse meio artístico. Não só no patamar expositivo, mas também na curadoria, na tesouraria e em todos os lugares”, diz a artista.
Apenas quando pessoas trans puderem fazer parte do meio artístico como produtoras de arte, e não como uma espécie de produto dela, é que iniciativas inclusivas não serão mais necessárias e artistas trans poderão deixar de ser artistas trans para poderem ser apenas artistas.
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